Por: Rangel Alves da Costa(*)
AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 11 (SENTIMENTOS CANGACEIROS)
É próprio do ser humano ter sentimentos e, dentro da normalidade física e psíquica, poder expressá-los. Nada mais normal, ainda que não habitual em muitas pessoas, que tais sentimentos sejam proclamados através da dor, da saudade, do choro, da tristeza, da alegria, do amor, do enraivecimento.
Não somente as pessoas tidas como frágeis escancaram suas angústias e aflições; do mesmo modo, as alegrias e os regozijos não estão afastados daqueles que se mostram angustiados e aflitos. Tudo é uma questão de condicionamento psicológico e de propensão comportamental.
E por que esse preâmbulo psicológico, se à primeira vista nada tem a ver com aspectos cangaceiros que se pretende abordar? Ora, exatamente para dizer que aquelas pessoas entranhadas no meio do mato, combatendo, fugindo, perseguindo, matando e morrendo, comumente conhecidos como cangaceiros, também eram possuidoras de todos os sentimentos existentes nas pessoas citadinas.
Pode-se afirmar sobre a existência de uma psicologia cangaceira. Ora, se a psicologia é a ciência que trata da mente e de fenômenos e atividades mentais; é o mecanismo de aferição do comportamento animal e humano em suas relações com o meio físico e social, então se enquadraria bem na análise comportamental dos homens das caatingas.
Principalmente o meio físico e geográfico, aliado às constantes tensões, nervosismos, alto senso de alerta e preparo mental para agir rapidamente diante das situações mais inusitadas, tudo isso fazia com o cangaceiro fosse condicionado psicologicamente. E era tal condicionamento que o diferenciava dos demais, mas apenas no que dizia respeito a ver a realidade de uma forma mais negativista. E não sem razão diante do meio em que vivia e de tudo aquilo que o circundava.
Contudo, nada disso impedia que os sentimentos de cada um continuassem preservados intimamente. Quase sempre o cangaceiro se dividia em dois na sua guerra sertaneja: o que se transformava em verdadeiro animal, um bicho medonho na hora da luta, e o que se reencontrava nas horas de descanso e repouso, nos momentos de compartilhamento e de atitudes que beiravam a infantilidade.
Jovens na sua maioria, vez que muitos ali enveredaram nas lides com doze, treze ou quatorze anos, não conseguiam afastar de si os jeitos e atitudes de verdadeiros meninos sertanejos. Era preciso que os mais velhos, principalmente o líder Lampião, vez em quando estivessem gritando para que parassem com aquelas brincadeiras que poderiam descambar em confusão. Mas no mesmo instante, ao ecoar o grito chamando à ação, cada um se encouraçava ferozmente para a batalha.
Arrisco a dizer que possuíam sentimentos ainda mais aflorados do que muitos daqueles vivendo confortavelmente na suas casas. E arriscado afirmar isso porque logo suponho alguém dizendo que uma vez instalados no bando, vivendo os perigos de todo dia e compromissados apenas com a defesa e o ataque, logo se tornavam mais bichos do que homens e, por consequência, passariam a desconhecer qualquer tipo de sentimento que não o da vingança.
Creio que se pode encarar tal premissa por outro viés. O homem se transforma e embrutece totalmente, perde o senso humanista que deveria possuir, seja nas brenhas sertanejas ou em qualquer outro lugar. Daí que fazer parte de um bando de cangaceiros não é aspecto suficiente para tornar o ser humano distanciado daqueles sentimentos básicos e próprios de cada um.
Percorrer caminhos de sangue, ser amigo do bicho, conviver com o perigo, fazer emboscada, atirar pra matar, querer ver a destruição total do perseguidor, nada disso impede que o sentimento do homem continue sempre ativo no seu âmago. E ao fugir, ao se esconder, ao fazer tudo para não ser alvejado e tombar, outro sentimento se expunha expressivamente: o da autopreservação.
Quem gosta de si, quem procura se preservar, quem valoriza a sua realidade, ainda que seja a mais difícil e cruel, é o mesmo que gosta da vida e quer continuar vivendo. E que valia teria na vida esse homem sem ter sentimentos? O sentir nada mais é do que a afirmação do ser humano perante sua realidade. Se a realidade era cangaceira, matreira, cruel, traiçoeira, tantas vezes inimiga, ainda assim nada era levada adiante se não houvesse uma força maior justificando cada ação boa ou ruim.
Os anais da história, principalmente aquela menos compromissada com a verdade e a realidade dos fatos, estão repletos de situações e exemplos tentando desumanizar, senão bestializar a todo custo o indivíduo cangaceiro. A partir de situações pontuais, de atitudes impensadas de um cangaceiro ou outro – e, portanto, normais em se tratando de ser humano e sua propensão a erros -, páginas e mais páginas, depois repassadas de boca em boca, passaram a asseverar, de modo generalizado, a perversidade dos cangaceiros.
E tomam como justificativa episódios que foram desvirtuados, completa e negativamente transformados, para afirmar que aonde o bando de Lampião chegasse, ou até mesmo de outro grupo cangaceiro, as marcas de sangue ficariam, vidas seriam ceifadas, atrocidades cometidas a torto e a direito.
Por isso mesmo se tornou comum ouvir dizer sobre cangaceiros estupradores, bestas humanas desvirginando a infância e deixando famílias órfãs, perigosos arruaceiros que destruíam tudo por onde passavam, cabras que jogavam criancinhas para o alto e as esperava na ponta do punhal. Desse modo, foram criando situações imaginárias, de cunho desconceitual, com o único intuito de negativar, senão enlamear, o fenômeno cangaço.
Como já afirmado, santinhos também não eram. Perigosos sim, demais; potencialmente assustadores. Mas eis aí também duas faces para serem assim. Viviam numa guerra de vida e de morte, não chegavam aos lugares em festiva comitiva, havia uma necessidade de impor realmente medo por não saber o que encontrariam pela frente. Mas depois do reconhecimento do lugar, apenas um bando que geralmente seguia em direção à casa de um amigo que existisse por ali.
Verdade é que a maioria das pessoas se pelava só em ouvir o nome do bando de Lampião. O medo era tanto que bastava ouvir dizer que os cangaceiros se aproximavam e famílias inteiras abandonavam suas casas e corriam para os esconderijos nas matas, por um lado que certamente os cangaceiros não iriam. Isso aconteceu por diversas vezes na povoação sergipana de Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo. Bastava o bando despontar ao longe e o lugarejo ficava praticamente deserto.
Como muitos jovens haviam praticamente fugido de suas famílias para enveredarem nas lides cangaceiras, e também pelo medo que as mocinhas se encantassem com os jovens bandoleiros e fossem tentadas a segui-los, então os pais não viam outra opção a não ser gritar pelos seus e correr mataria adentro. Contudo, em situações como tais não há que confundir medo dos cangaceiros com ódio ao bando de Lampião. Desde aquela época o nome do Capitão era venerado e reconhecido como necessário para combater as muitas injustiças perpetradas naquele mundo de maioria desvalida.
Por último, ninguém pode negar que, pessoalmente, muitos cangaceiros cometeram atrocidades. Um dos mais cruéis talvez tenha sido Zé Baiano. Além de assassinar a pauladas a companheira e também cangaceira Lídia ao flagrá-la em adultério, ficou conhecido como o carrasco ferrador, pois costumava deixar nas faces das mocinhas sertanejas as iniciais do seu nome gravadas com ferro em brasa.
Tais, pois, são alguns dos muitos aspectos comportamentais dos cangaceiros que não podem deixar de ser considerados. Essencial para entender o homem perante o meio e na sua consequente ação. Aconteceu no cangaço e acontece na vida que o homem reflete o seu momento sem deixar de se refletir no espelho da alma, daquilo que é diferentemente do que imaginam que seja.
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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