Seguidores

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

OXENTE, MALANDRO!

Por Clerisvaldo B. Chagas, 21 de novembro de 2013. - Crônica Nº 1090


A dança dos olhos prossegue por toda a viagem. Quem respira a Geo vinte e quatro horas por dia, cola a vista na paisagem voadora. A flora nativa parece com os últimos soldados da batalha machadeira. Os mangues são divididos na área litorânea; canaviais recobrem a ex-mata atlântica; plantas anãs enraízam em terras vermelhas agrestinas; campos artificiais surgem nos lugares das caatingas e os animais silvestres não mais convivem com o homem. 


A Geografia corre trechos com o fush-fush continuado dos pneus. Somente as silhuetas dos montes mostram-se eternizadas. Nas costas do asfalto cinza, desenhos amarelos empurram os veículos para à direita. Para-choques carregam nas tintas a filosofia da estrada, os avisos educados, as advertências sutis, desabafos, gritos de guerra... Propagandas. As serras longínquas estão azuladas como indivíduos que nos enganam. A carreta tombada põe marco na curva perigosa, rangem as molas, gritam as borrachas.

“Vai com Deus”. “Olá companheiro”. “Mantenha distância”. “Só Jesus salva”... Vão ensinando os guerreiros das pistas nos seus escritos formais, tortos, capengas ou borrados. Uma brincadeira, uma piada, um riso dentuço, cobrem por vezes a fumaça do motor vencido. Atenção na curva, atenção na luta, atenção na vida. E na universidade móvel dos perigos, chama atenção à frase triunfal do espertinho, do gozador que se apega a existência montado no humor diário do que nada é sério. O motorista traseiro abre os dentes na frase daquelas tábuas móveis diante de si e leva o caso para os passageiros. Os dentes de todos acompanham a arcada do motorista na rigidez do indicador. Só uma senhora muito séria parece não gostar do fraseado que lembra atitudes filiais. Rendo-me à brincadeira do asfalto, pois nem só do trabalho vive o homem, mas também das frases de muitos vagabundos. Estava escrito com letras brancas na carroceria suja: “Mãe me mandou criar juízo... Mas eu não sei o que ele come”. OXENTE, MALANDRO!


http://clerisvaldobchagas.blogspot.com.br/2013/11/oxente-malandro.html

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

LOUCOS DE PEDRA E FLOR

Por Rangel Alves da Costa*

Todos, indistintamente, deveriam elogiar a loucura. Os que não têm um pingo de juízo, e como tal se reconhecem, com mais razão devem enaltecer a primaz insanidade; os que se acham normais, imaginando-se possuidores das perfeitas faculdades mentais, ainda mais deveriam elogiá-la, vez que estes certamente não sabem o que dizem.

Verdade é que o mundo está assentado num hospício de pedra e flor. Os Dom Quixote da vida, empunhando suas lanças e ameaçando moinhos de vento, empecilhos que são aos seus indefinidos objetivos, estão por todos os caminhos. Quixotescas, pois, são as ações empreendidas como normais e lastreadas na insanidade, na vontade cega de realização.

Ora, nesse mundo de loucos, há de ser envolto em insanidade para que as oportunidades e os reconhecimentos sejam possíveis. Os que tentam se manter como normais cometem a grande loucura de serem vistos como irremediavelmente insanos; e apenas de pedra, e não de flor. Há, pois, de experimentar a doidice para sair do marasmo, buscar encorajamento, para confrontar as ameaças e realizar. 

Daí que o humanista e teólogo holandês Erasmo de Roterdã tratou logo de reconhecer as qualidades da insanidade prodigiosa, da psicose construtiva, do delírio mais que consciente. Ora, porque a loucura é tão necessária quanto a sabedoria, e não há nenhum ato de grande inventividade que não tenha nascido de um gesto afeiçoado à loucura.



Na sua obra “Elogio da Loucura”, Erasmo vê essa manifestação comportamental como uma deusa que conduz as ações humanas. Em tudo está presente a loucura, mesmo nas instituições mais reservadas e sombrias e nas pessoas que tentam se revestir de um manto de inatacabilidade. E ela se torna mais importante ainda quando se assenhora desses inatacáveis para mostrar seus defeitos e imoralidades.

Colocando palavras na boca da loucura, Erasmo logo afirma que digam o que quiserem dela, que a difamem, que a denominem com as piores adjetivações, ainda assim ela estará presente para contagiar a todos, para fazer a alegria dos corações e mentes dos homens. Mas também para a confirmação da fragilidade da mente humana e sua tendência às ações negativas.

Impossível é deixar de reconhecer, de aceitar, de conviver, de ser a própria loucura. De um modo ou outro, ainda que sábios pretendam justificar os grandes feitos através da lucidez, é indiscutível que tudo nasce da ação instinto impensado, da criação segundo as circunstâncias, da maluquice despretensiosa que acaba dando certo.

E por que as pessoas consideradas como de maior sabedoria são vistas como verdadeiros loucos? Os cientistas geralmente não passam de doidos varridos, os filósofos se perdem nas próprias razões em busca de outras razões, os homens das letras não se conduzem pela normalidade, do contrário não estariam criariam nada de novo.

Tome-se como exemplo que muitos dos grandes feitos da História surgiram como verdadeiras insanidades. Atravessar mares desconhecidos em frágeis embarcações; montar em cavalos para cruzar fronteiras e vencer o mundo; fazer experimentos químicos e físicos utilizando o próprio corpo; ir de encontro ao teocentrismo e afirmar que a terra não é o centro do universo. Quanta loucura!

E diz Erasmo que a loucura se afeiçoa à própria existência humana. É criança, porque sem razão formada, delirante, extravagante, sem comedimentos nem impedimentos; é adulta porque se acha na idade e direito de fazer o que bem entenda e deseja e por isso mesmo comete os maiores deslizes, os maiores absurdos, as maiores displicências; e da velhice, pois nessa idade, quando deveria ser gozada a plenitude da razão, tudo volta a ser criança, nos atos e nas loucuras.

E vai caminhando a loucura com sua razão de ser, comandando os homens nas suas entregas impensadas, nos seus atos insanos, nas suas persistentes buscas de realização a todo custo. E por isso mesmo agindo como se não existisse o pensamento e a reflexão, a observância de princípios e das regras morais.

Até porque todo mundo sabe que tais princípios e regras existem, mas foge de seus ditames porque ninguém é louco de ser único na vida em qualquer coisa. Ademais, é na fuga, tão própria do ser humano, que se encontra a possibilidade de experimentar o que o corpo e a mente tanto pedem.

Assim a loucura é tudo e está em tudo. E o homem loucamente vai ao seu encontro no vinho, na mesa, nos quartos alheios. O que está normal, logo o homem procura um jeito de dar novo direcionamento; o que está transtornado, logo o homem agirá para fazer voltar ao lugar, ocasionando maior disparate; o que ainda não está nenhuma coisa ou outra, logo ele fará com que ocorra o contrário. Pois tudo na vida é assim, tudo loucura.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Bangu, Memória de um Militante - Lauro Reginaldo da Rocha - Bangu - Parte I

Por Brasília Carlos Ferreira – Organizadora, 1992
 Lauro Reginaldo da Rocha era mossoroense - Insurreição Comunista de 1935 em Natal e Rio Grande do Norte

A casa onde eu morava no morro da piedade, era uma meia-água modesta, localizada numa rua discreta com quintal na frente e nos fundos. O local era de meu agrado. Sossego completo, as crianças – três nessa época – dispondo de espaço e de sol. Havia uma saleta com a estante de livros, um convite ao descanso e a meditação.

Naquele dia passei a manhã em casa reunido e completando a matéria para o jornal. Ao meio-dia já estava tudo pronto. Fui chamado para o almoço, à mesa encontrei os meninos sentados, era um prazer ver aqueles tiquinhos de gente compenetrados, procurando manejar os talheres como pessoas grandes. Terminando o almoço, me despedi da mulher e das crianças e saí rumo à tipografia, seguindo o costumeiro trajeto. 

Na casa da rua Engenho do Mato encontrei o portão aberto. Estranhei este detalhe porque nós havíamos combinado que o portão seria mantido trancado – uma chave estava em meu poder – isto como medida de segurança, indicando “caminho livre”, e também para evitar que pessoas estranhas entrassem sem avisar e ouvissem o barulho da máquina. Pensei em não entrar, seguir em frente, o sexto sentido me alertava contra qualquer coisa de anormal, mas lembrei-me que este fato já tinha ocorrido por duas vezes, e tratara-se apenas de esquecimento. Resolvi então entrar. Subi cautelosamente os degraus. A porta de entrada estava encostada. Antes de bater olhei pela janela aberta que dava para a sala de estar. Policiais armados até os dentes estavam de tocaia, vinham acompanhando meus passos desde o portão. Esperavam apenas a minha entrada na sala e como se viram descobertos, avançaram feito loucos para a porta, de arma em punho. Num gesto instintivo tentei a fuga. Atiraram. Mas foi no justo momento em que eu pulava os degraus da descida, não me acertaram, continuei correndo, ate que fiquei encurralado, com uma cerca de arame farpado pela frente. Não era mais possível escapar, estava preso.

Fui conduzido até a tipografia. Num quarto estavam detidos Júlio, D. Alice e as crianças. Eu fui levado para o outro quarto, puseram-me numa cadeira, nela fui amarrado com as mãos para trás. A polícia resolvera manter-nos ali durante toda a tarde na esperança de que alguém mais caísse na armadilha – coisa que não aconteceu – e aguardando a escuridão da noite para conduzir-nos para a Polícia Central.

A turma que ali estava – logo vim a saber – era constituída justamente dos espancadores e torturadores da seção de explosivos: Cegadas, Pequenino, Monteiro e outros. Também aquelas caras não podiam negar. A ferocidade estava estampada nelas de maneira inconfundível. Um deles, o Cegadas, sentou-se à minha frente e iniciou uma brincadeira para ele, certamente, muito divertida: com a mão espalmada começou a bater em cima do meu coração. As cuteladas obedeciam a um ritmo determinado. No princípio não me incomodou mas com a continuação, comecei a sentir os seus efeitos. Os minutos foram passando, até que as pancadas começaram a abalar todo o meu corpo, produzindo um horrível mal-estar. Aquilo parecia não ter fim e só terminou quando o carrasco sentiu-se cansado.

Entendi que aquelas pancadas “inocentes” no órgão vital não passava de uma preparação visando quebrar a resistência física para os golpes decisivos que viriam depois. Para eles era apenas um aperitivo. À noite chegou um carro de Polícia. Eu e o Júlio fomos colocados nele, espremidos entre os “tiras”, e o veículo tomou o rumo do centro da cidade.

CONTINUA...

 http://www.dhnet.org.br/memoria/1935/livros/bangu/04.htm#primeiro

http://blogdomendesemendes.blogspot.com