Por Rangel Alves
da Costa*
O sertanejo é
um povo cantador por excelência. Em tudo há uma motivação para cantar. Tempo de
alegria ou de tristeza, instante de devoção ou de labuta, na ocasião das
saudades e reencontros, sempre surgindo um mote para ecoar sua vez pelas
paisagens ensolaradas ou de lua maior.
Não só nos
momentos de satisfação deve-se soltar a voz, já dizia a solitária senhora. E
outra chegava ajuntando que é no sofrimento, naqueles instantes de maior
angústia, que as dores tantas devem ser transformadas em canto. E assim porque
a coisa ruim sempre espera que a pessoa vá definhando em prantos e
entristecimentos, mas se sente que nem o sofrimento silencia a “cantiga de
espantação”, então o mal se sente “mangado” e vai embora.
Daí que mesmo
o sofrimento e as aflições pelas secas que se alastram, pela coivara viva na
terra tostada de sol, pelos bichos berrando famintos e as ossadas se juntando
os tufos de matos sem vida, não são suficientes para afastar a vocação musical
do povo das terras matutas. E em tudo e por todo lugar o aboio, a toada, a
ladainha, a reza de encomendação das almas, o canto das lavadeiras, a cantiga
de estender roupa em varal, a velha canção relembrada enquanto varre a casa e
faz a comida.
Mas muito
mais, pois o sertão e o sertanejo possuem um cancioneiro tão rico como sua
história, sua cultura e suas tradições. Canção de ninar pequenino, cantiga de
tanger bicho de vaqueirama, louvor pelas graças da vida, preces pelo
afastamento dos males, cantigas de lua e de sol, vozes tão saborosas quanto o
cheiro do café torrado em pilão e cuscuz de milho ralado em quintal. Vozes que
ecoam das igrejas, dos quintais, das malhadas, dos currais, das beiradas de
tanque, das casas com portas e janelas fechadas.
Ao pé do
balcão, entremeando-se os causos com relepadas de pinga, aquele que lida com
mato e bicho, não demora muito para soltar a voz num aboio dolente e
amargurado: “Ê, ê, ê, gado ô, eiá...Vaqueiro que fui pelo mundo/ Atrás da
bicharada perdida/ Galopei a vida num segundo/ Sem pensar em despedida/ Mas
hoje já velho e cansado/ Sem quem me ouça aboiar/ Sou cavalo atrofiado/ Sem
poder mais galopar/ É com o coração despedaçado/ Que me despeço do cantar/ Só
pedindo ao meu Senhor/ Para o sertão nunca calar/ O verso matuto aboiador/ ê,
ê, ê, gado ô, eiá...”.
Nas beiradas
de riacho de antigamente, mas também hoje em dia de vez em quando, as mulheres
se reunindo ao amanhecer para os afazeres de fateira, de lavadeira, de
limpadora de couro cru, e no vai e vem do ofício, enquanto molham e sacodem,
enxaguam e batem, soltam as vozes em cantigas passadas de geração a geração,
ecoando assim: “Acordo sem jardim para aguar/ Levanto cedo para lavar/ Pela
estrada vou caminhar/ É meu destino ensaboar/ É minha sina roupa limpar/ Mas
essa roupa é minha não/ É da riqueza, é do patrão/ A minha roupa não lavo não,
pois tá no corpo e não sai não...”.
Mesmo a morte
de parentes ou amigos não silencia os sertanejos, pois os velórios se
transformam em ocasiões para, através das incelenças, fazer a devida
encomendação das almas. Durante as despedidas, as lágrimas e os lamentos, são
misturados às vozes sofridas que ecoam: “Uma incelença que nossa Senhora deu a
nosso Sinhô/ Essa incelença é de grande valô/ Já é uma hora, os anjos vinhero
te vê/ E ele vai, e ele vai, e ele vai também com você./ Duas incelença que
nossa Senhora deu a nosso Sinhô...”.
Os cantos
religiosos estão enraizados na vida povo sertanejo. De fervorosa religiosidade,
adeptos de missas, batizados, procissões e tudo que expresse e fortaleça a fé,
os seus cantos de igrejas e caminhos soam com plangência verdadeiramente santa.
São cantos tão antigos e costumeiros na boca das beatas, “das passarinhas” e
dos coros, que parecem não saindo de vozes, mas nascidos dos recantos mais
vivos da alma. E quanta singeleza ao ouvir: “Ó, Minha Senhora e também minha
mãe/ Eu me ofereço, inteiramente todo a vós/ E em prova da minha devoção/ Eu
hoje vos dou meu coração/ Consagro a vós meus olhos, meus ouvidos, minha boca/
Tudo o que sou, desejo que a vós pertença/ Incomparável mãe, guardai-me e
defendei-me/ Como filho e propriedade vossa, Amém/ Como filho e propriedade
vossa, Amém...”. Na Consagração a Nossa Senhora, igualmente a consagração de um
povo que faz de sua fé e religiosidade a graça maior do viver.
Mas até mesmo
no dia a dia, nas horas distantes dos tantos ofícios e sacrifícios, a gente
sertaneja vai sempre procurando uma canção que surge quase sempre inesperada. E
por isso mesmo de vez em quando se ouve de alguma janela: “Se eu soubesse que
chorando empato a sua viagem/ Meus olhos era dois rios que não lhe davam
passagem...”. E na memória, quase chorando de saudade, como se ainda ouvisse as
meninas brincando de roda: “Se essa rua se essa rua fosse minha/ Eu mandava eu
mandava ladrilhar/ Com pedrinhas com pedrinhas de brilhante/ Para o meu para o
meu amor passar...”.
Poeta e
cronista
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