Seguidores

segunda-feira, 27 de junho de 2016

NOTURNOS

Por Rangel Alves da Costa*

Já são mais de sete horas da noite. Um pouco mais. Depois de alguns poucos fogos do São João, agora o silêncio na rua nua, vazia, triste, sonolenta. Mas muito mais por causa da chuva do que qualquer outra coisa. Chuviscou o dia inteiro, e agora a chuvarada se fez mais forte. Sempre acontece assim ao anoitecer dos invernos e dos dias de nuvens prenhes.

Ouço a chuva lá fora enquanto escrevo. Nunca faço assim, pois busco o maior silêncio possível enquanto rabisco pensamentos e memórias, mas hoje me vejo dividido em dois sons diferentes: da chuva descendo lá fora e da música clássica chegando da vitrola na estante logo atrás. A chuva ora mais forte ora mais fraquejante, a música apenas ouvida, baixinha, como se estivesse distante.

Contudo, impossível escrever em meio à chuva e à música clássica. Tal receita é, comprovadamente, perigosa demais aos sentimentos. Chuva e música invadem o âmago, o espírito, a alma, como se desejassem possuir o ser inteiro. Seus acordes fazem voar, fazem chorar, fazem sorrir, fazem delirar. Seus suaves ecos trazem nostalgias, recordações, lembranças vivas e tantas outras que ressurgem para afligir.

Na noite, os pingos caindo, a rua molhada, o asfalto negro em espelho d’água, a ternura jamais imaginada noutro instante do dia. A rua da velocidade, do barulho, da gente passando, da gente correndo, da algazarra do dia a dia, se transforma em sentimentalista assim que chove cai. As portas fechadas, as pessoas recolhidas, os caminhos vazios, tudo faz aumentar a sensação de uma paz aflitiva, de uma meiguice dolorosa, de uma alegria entristecida.

A chuva na noite tem o dom de provocar tudo isso. Como uma doença que sempre desperta após o entardecer, assim as sensações afloradas quando a chuvarada começa a cair debaixo do negrume da noite. Sem lua, apenas a luz amarelada dos postes refletindo os pingos que caem, não há olhar que não se faça poeta, não há coração que não se aflija, não há pensamento que não se encha de recordações. E todo o ser se entrega à magia do noturno molhado, se derramando na rua e escorrendo por toda a alma.


A chuva em si já é melodia. Através dela ouve-se a sonata, a sinfonia, o prelúdio, a valsa vienense, o piano em viagem pelos ares, o violino em voo distante. Na rua molhada um grande salão, ou apenas uma sala escurecida com candelabros e incensos, e em meio a tudo, sobressaindo-se a toda paisagem e a tudo que surja, a doce música, a bela música da chuva, uma orquestra de cordas e de sensações.

Vejo-me assim. Lá fora a doce música, a orquestra se derramando, e aqui dentro, pertinho de mim, a outra música nascida dos grandes mestres. Imensa admiração por Bach, Chopin, Mozart, Beethoven, Vivaldi, Lizst, Ravel, Brahms, Haydn, Wagner, Stravinsky, Paganini, Mahler, mas em noturnos assim, como o chuvoso de agora, guardo preferência por Strauss e suas famosas valsas, Tchaikovsky e sua belíssima Valsa do Lago dos Cisnes, mas principalmente Offenbach. Não há como não se encantar com sua Barcarolle, intermezzo de Os Contos de Hoffmann.

Em noites assim, ouvir Barcarolle é um navegar, é um voar, é um distanciar-se de tudo e continuar planando pelos sentimentos devassados em sorrisos e lágrimas, em dores e alegrias, em abraços e beijos e acenos de adeus. Barcarolle é barca que se alonga águas adentro do espírito, é nau que singra nas distâncias da alma. E nesse azul imenso, em busca de uma ilha qualquer jamais encontrada, navegando vou ao soprar da memória.

Mas a música e a chuva me impediram de prosseguir com o texto. Por motivos óbvios, fechei os olhos e deixei que tudo fluísse ao seu açoite e remanso. Acordei umas três da madrugada e a chuva ainda caindo como na noite anterior. E a mesma música em mim, dentro de mim. Até que a manhã desperte de vez e a rua molhada deixe de ser poesia para ser somente caminho.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com


DENÚNCIA !

Por Kydelmir Dantas

E por falar em Direitos Autorais, com a palavra os conhecedores: Também temos esse 'problema' na Literatura de Cordel. Com o advento da internet, alguns 'poetas cordelistas' estão fazendo "ctrl C-ctrl V", mudando os títulos e publicando como se "seu" fosse. Não é de hoje que um jovem poeta do Cariri cearense - João Peron - está multiplicando cordéis com o tema Cangaço, sem a autorização dos seus autores - Cocriz, Antonio Francisco e Kydelmir Dantas - que são de Mossoró... Copiando aos milhares e vendendo nas feiras populares de outros estados, menos do Rio Grande do Norte. 


Recebemos cópias de exemplares, através de amigos, adquiridos nas Feiras de Caruaru-PE, Salvador-BA, São Luís-MA e tivemos conhecimento destes em outros locais. Através da editora Queima-Bucha, do Gustavo Luz, sediada em Mossoró, encaminhamos carta protesto ao vendedor de cordéis o mesmo sequer teve a hombridade de respondê-la... Mas continua com a cara-de-pau d'um golpista que teima em copiar e vender ao seu bel-prazer. Pedimos que compartilhem entre os cordelistas, poetas e defensores de uma cultura ora tipicamente nordestina. E em respeito aos verdadeiros autores. Saudações cordelísticas.

Kydelmir Dantas
Conselheiro Cariri Cangaço
Cordelista - Mossoró , RN

http://cariricangaco.blogspot.com.br/2016/06/denuncia-por-kydelmir-dantas.html

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

IGNÁCIO CARVALHO OLIVEIRA “INACINHO”.

Por Geraldo Júnior

Filho do casal cangaceiro Moreno e Durvinha. Inacinho nasceu no dia 03 de janeiro de 1938 nas mediações da cidade pernambucana de Tacaratu. Poucos dias após seu nascimento seus pais foram obrigados a entregá-lo para adoção, escolhendo para tal tarefa o Padre Frederico Araújo (Padre Velho) da cidade de Tacaratu/PE.

Em 1940, Moreno e Durvinha decidem abandonar o cangaço e rumam em direção ao estado de Minas Gerais, onde se estabeleceram, constituíram família e reconstruíram suas vidas, dessa vez longe das armas.

Moreno e Durvinha adotaram novas identidades e passaram a viver escondidos e sem manter contato até mesmo com familiares próximos, por todo o tempo que permaneceram escondidos.

Foram necessários sessenta e seis anos para acontecer o reencontro entre pais e filho, encontro que só foi possível graças à luta incessante da irmã Neli Maria da Conceição (Lili Neli) que sempre manteve a esperança de encontrar e conhecer o irmão deixado para trás há tantos anos.

Em 2005, Inacinho reencontra seus pais e finaliza assim a busca de tantas décadas.

Recentemente realizei um entrevista com Inacinho e quem desejar assistir é só procurar no Youtube o título FILHOS DO CANGAÇO – INÁCIO CARVALHO OLIVEIRA.

Geraldo Antônio de Souza Júnior (Administrador do Grupo O Cangaço)
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=602639616566605&set=gm.1252030238143425&type=3&theater

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

POLÍGONO DAS SECAS X CANGACEIROS

Por Raul Meneleu Mascarenhas

Maria Christina Matta Machado no ano de 1978 lançou pela Editora Brasiliense o livro As táticas de guerra dos cangaceiros e em sua conclusão que transcrevo abaixo, e em entre parágrafos, aponho uma poesia (em negrito) que fiz em 1981 e publicada em livro (já esgotado) e que tem o título de Aboio da Agonia que mostro a vida do sertanejo naquela época de seca nos sertões nordestinos, onde 1.348 municípios formam o polígono das secas e estão situados nos Estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe, compreendendo grande parte do Nordeste brasileiro. 


São repetidas crises de prolongamento das estiagens e, consequentemente, nem sempre, objeto de especiais providências do setor público. Não para combate-la pois são forças da natureza, mas para criar projetos que amainassem para o homem do campo as agruras dela. Por quanto tempo isso abateu-se sobre esse polígono? Talvez alguns milhares de anos, pois é inerente nessa parte do mundo e isso já era conhecido desde as incursões de desbravadores em sua ocupação de terras desde o descobrimento do Brasil. Quem sempre pagou caro por esse fenômeno natural foi o homem pobre, que sempre desde o início da humanidade foi usado, e continua a ser usado por aqueles mais afortunados. É o siclo da natureza.


Hoje estamos em melhor situação que aquelas vividas pelos que fizeram parte da saga dos cangaceiros, que foi um movimento de revolta daqueles que foram injustiçados de alguma forma pelos senhores do sertão. Lógico que entraram nesse movimento, criaturas de índole perversa e má, que o fizeram por formação bandida, mas a grande maioria foi por motivos de perseguição, por não baixarem suas cabeças para fazer as vontades dos coronéis.


Vejamos com interesse, em comparar o ontem e o hoje, e tiremos lições. Viajemos nas asas da imaginação e vivamos um pouco do passado, olhemos para o presente, e vejamos o que no futuro existirá em relação ao homem residente no polígono das secas. Com certeza essa conclusão de Maria Christina Matta Machado no ano de 1978 em seu livro As táticas de guerra dos cangaceiros os ajudará a fazer essa viagem. Ela diz...

...Em 1938, poucos antes de morrer no cêrco de Angico, Virgulino Ferreira, ou Lampião, como queiram, usou de uma frase que ficou histórica para todos aquêles que se interessam em estudar o problema do cangaço no Nordeste, e o desenvol-vimento do sertão: 


"Num adianta nada. O sertão continua o mesmo". 
Árvores retorcidas, secas e mortas,

Maria Christina Matta Machado noano de 1978 lançou pela Editora Brasiliense o livro As táticas de guerra dos cangaceiros e em sua conclusão que transcrevo abaixo, e em entre parágrafos, aponho uma poesia (em negrito) que fiz em 1981 e publicada em livro (já esgotado) e que tem o título de Aboio da Agonia que mostro a vida do sertanejo naquela época de seca nos sertões nordestinos, onde 1.348 municípios formam o polígono das secas e estão situados nos Estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe, compreendendo grande parte do Nordeste brasileiro. São repetidas crises de prolongamento das estiagens e, consequentemente, nem sempre, objeto de especiais providências do setor público. Não para combate-la pois são forças da natureza, mas para criar projetos que amainassem para o homem do campo as agruras dela. Por quanto tempo isso abateu-se sobre esse polígono? Talvez alguns milhares de anos, pois é inerente nessa parte do mundo e isso já era conhecido desde as incursões de desbravadores em sua ocupação de terras desde o descobrimento do Brasil. Quem sempre pagou caro por esse fenômeno natural foi o homem pobre, que sempre desde o início da humanidade foi usado, e continua a ser usado por aqueles mais afortunados. É o siclo da natureza.

Hoje estamos em melhor situação que aquelas vividas pelos que fizeram parte da saga dos cangaceiros, que foi um movimento de revolta daqueles que foram injustiçados de alguma forma pelos senhores do sertão. Lógico que entraram nesse movimento, criaturas de índole perversa e má, que o fizeram por formação bandida, mas a grande maioria foi por motivos de perseguição, por não baixarem suas cabeças para fazer as vontades dos coronéis.


Vejamos com interesse, em comparar o ontem e o hoje, e tiremos lições. Viajemos nas asas da imaginação e vivamos um pouco do passado, olhemos para o presente, e vejamos o que no futuro existirá em relação ao homem residente no polígono das secas. Com certeza essa conclusão de Maria Christina Matta Machado no ano de 1978 em seu livro As táticas de guerra dos cangaceiros os ajudará a fazer essa viagem. Ela diz...

...Em 1938, poucos antes de morrer no cêrco de Angico, Virgulino Ferreira, ou Lampião, como queiram, usou de uma frase que ficou histórica para todos aquêles que se interessam em estudar o problema do cangaço no Nordeste, e o desenvol-vimento do sertão: 


"Num adianta nada. O sertão continua o mesmo". 

Árvores retorcidas, secas e mortas,
na caatinga, alto sertão.
Os galhos do umbuzeiro,
muito triste meu irmão.

O sertão talvez progredisse, porque o elemento humano é bom e trabalhador, possuindo energia suficiente para lutar por seus direitos, por sua terra e família. Se não o conseguiu, foi tão sómente porque interessava aos poderosos manter o "status quo", para manter seu "progresso", explorando o trabalho de muitos, e levando a inércia ao sertão. O desvio de comportamento dos cangaceiros é uma prova do potencial de energia sertaneja. Representaram, eles, todo um sentimento de revolta contra a injustiça. Eram homens que não baixavam a cabeça. 

O povo da terra rachada do sol,
gente velha e acabada,
pois no sertão meu irmão,
os jovens vão de arribada.

"Lá, nas fazendas de cana, eles apanham de relho na cara, aqui, eu só queria vê isso. Home que apanha e num reage, num é home não" — disse-me Ângelo Roque, vulgo Labareda, ex-cangaceiro de Lampião.

Os bodes berram na caatinga,
pedindo a chuva do umbú,
meu coração ressequido chora,
pensando em quem arribou para o sul.

Mas em 1938, entra em decomposição o cangaço, movimento armado contra a injustiça, porque a repressão policial foi maior, e melhor armada, e as estradas possibilitaram a fuga do sertanejo, que, em vez de matar para ser morto em seguida, preferiu tentar novas terras ... 

Tudo seco no sertão,
chuva que é bom, não vem não,
esperando o que Deus quiser,
aguardando uma motivação...

Em 1940, com a morte de Corisco, e a rendição de outros chefes como Ângelo Roque e Zé Sereno, o bando de Lampião deixa a caatinga para passar à História. Agora, quando a injustiça é ainda praticada pelo coronel, e pelas autoridades, nada resta ao sertanejo, senão abaixar a cabeça e ficar amôrfo, parado, angustiado. Ou então, colocar a trouxaria nas costas, e seguir pelas estradas, as mesmas que extinguiram o cangaço. 

...de esperar os que se foram,
e aguentar mais um pouquinho,
o sol castigar o chão,
que se racha devagarinho.

O sertanejo parou. Por que não luta mais? Por que se tornou um passivo? Houve alguma melhora na sua condição de vida? Não há mais abuso do coronel, ou o homem enfraqueceu? Virou água o sangue do sertanejo? — Não?... Agora, há uma esperança. Em vez de embrenhar-se na caatinga, fugindo e matando, o melhor é seguir as estradas à procura de outras terras, onde se possa plantar, onde se possa colher. E o caminhão vem trazendo, para favelas e para mocambos, cangaceiros e místicos frustrados. 

Já mandei minha mulher,
que se foi com meus filhinhos,
de retirada pr'onde chove,
nem que seja um bocadinho.

Vieram para trabalhar num mundo que não é o deles. É a terra tão cobiçada, a floresta de cimento armado, tão dura e tão fria... E ele olha para cima, sem saber que é pequeno demais para viver. 

Nas fábricas: "Não aceitamos favelados". 

O gado berra, o caboclo grita,
que já não aguenta mais,
até o aboio de seu peito,
já não é como o de atrás.

Se aceitassem já seria difícil. Eles não têm mão-de-obra especializada, e além disso... êles são favelados. São párias da sociedade. São fracos... são sertanejos e estão sós neste mundo que não é o seu. Tudo que deixaram pra trás, foi um chão duro, que mesmo assim dava milho, dava feijão e... o gado vivia. Era só poder ficar... Era só poder viver ... mas no sertão tudo endureceu.

Árvores secas... mortas,
terra rachada; muitos vão de arribada.
Coração seco; caboclo sem aboio.
Tudo isso é o sertão; terra abandonada.

O sertão de pedra no chão, virou pedra de cimento armado, e êle ficou só... 

...Só numa luta que apenas ele tem dentro de si, uma luta de que ninguém quer compartilhar. Hoje, em plena era espacial, chegamos à dura conclusão de que o sertão continua na mesma miséria. Sua lavoura ainda é feita com os mais incipientes meios.

Não experimentou ainda a melhoria da técnica na agricultura, e o sertanejo ainda olha para os céus, pedindo à "chuva que nos acuda". Ao homem da cidade, essa espera pode parecer uma inércia, o que não corresponde à verdade. O sertanejo não pode esperar outra coisa a. não ser a chuva... Sem ela, não há plantação e, conseqüentemente, haverá fome. Daí ele aceitar, tranquilamente, os fenômenos sobrenaturais. O misticismo passa a ser, assim, a fôrça-maior no sertão. 

E que fôrça poderia ele esperar numa região onde não existe o mínimo de garantia? Com a seca vem a tragédia para o camponês. O coronel despede os empregados, para que seu gado não morra de fome. O gado do coronel precisa pastar na rocinha de milho e feijão, que até então pertencia ao empregado. 

O sertanejo, de um momento para outro, perde sua roça, que representa sua alimentação, fica sem teto e sem trabalho, parque nessa época ninguém vai empregá-lo. Isto acontece hoje, com muita freqüência, e o coronel, senhor absoluto das suas fronteiras, não encontra qualquer resistência. Muito pelo contrário, êle tem até ao seu lado o pistoleiro, seu capanga, que é contratado para "resolver" as diferenças políticas, mas que também pode ser usado contra "um empregado rebelde". 

Na época do cangaço, era diferente. O coronel temia que um dos seus vaqueiros se transformasse em cangaceiro, e voltasse para a vingança. A par disso, não se deve esquecer que todo cangaceiro foi um vaqueiro, e que compreendia muito bem a submissão imposta ao camponês, pelo coronel. Sabia perfeitamente, que o dono da terra, na época da seca, negava qualquer alimento ao povo, que comia raiz de mucumã para sobreviver, enquanto o gado do patrão se alimentava na roça feita pelo próprio empregado, despejado da terra. 

O gado, fonte de renda para o senhor, servia-se inicialmente, da roça do empregado despedido, e se a seca continuasse dura, sua alimentação era na base do xique-xique, do faxeiro e do mandacaru. Isso era trabalho para dois ou três empregados. O resto, o coronel mandava pra rua. Nessa época de seca, é comum o quadro de miséria pelas estradas. Homens e mulheres famintos, crianças com barrigas estufadas, gente morrendo... Filas de retirantes com suas trouxas às costas, fugindo da terra que os repeliu. 

"As serpentes e os ratos, passeiam pelas estradas e por dentro das casas, enfurecidos, loucos". 

Eles também não têm o que comer e, se não mordem aquela gente, é porque sabem que não há mais carne; o pouco que sobra está podre. A poeira nem deixa mais ver as caras; podem ser pretas ou azuis, que ninguém sabe. É tudo igual. E eles ficam sem ter uma saída. Se ficam morrem, se vão destroem-se. 

Tudo se arrepia nessa desolação. Até os gravetos se abrem pro céu pedindo perdão. É só um pouco d'água, e eles podem voltar. A seca em tudo bole, mata tudo de arrastão. Criança que já andava, volta a engatinhar e fica abobada. A barriga estufa, a perna afina... é só osso. O coronel sabe disso, mas nunca deu importância. Ele jamais saiu de sua terra por causa de seca. Este fenômeno jamais o atingiu pessoalmente. 

Os cangaceiros também nunca sofreram qualquer problema com a seca, porque eles roubavam aquilo que o coronel negava aos empregados. Lampião, por várias vezes, acudiu o sertanejo, matando o gado, fosse lá de quem fosse, para alimentá-lo. Lampião não foi o flagelo do sertão, mas o flagelo dos coronéis. 

E o sertão continua com os mesmos problemas. Muita coisa se pensou em fazer . Muita coisa se quer fazer. Muito tempo já passou e muita desgraça ocorreu; muita vida foi ceifada; muita desonra existiu; muita tristeza, muita luta. E muito nordestino sai de suas terras, muita gente morre de fome. Muito pouco desenvolvimento aconteceu. Muito pouco se fêz, numa terra tão grande. 

O sertão continua, embora quase desaparecendo na poeira e na chuva. O nordestino sai. O que aconteceu? Onde está a máquina do progresso? Onde está o desenvolvimento? Onde estão as escolas? Onde está a vida, se não se pode lá viver? A verdade é que o coronel de ontem é o mesmo de hoje, com a mesma mentalidade medieval, com os mesmos costumes, e acreditando ainda na sua prepotência, com o mesmo orgulho, e representando o maior entrave para o desenvolvimento social, econômico e político do Nordeste. E o sertão continua a ser a mesma terra castigada, e o sertanejo hoje é um submisso. Que será do sertão? Como poderá Ele progredir? 

, alto sertão.
Os galhos do umbuzeiro,
muito triste meu irmão.

O sertão talvez progredisse, porque o elemento humano é bom e trabalhador, possuindo energia suficiente para lutar por seus direitos, por sua terra e família. Se não o conseguiu, foi tão sómente porque interessava aos poderosos manter o "status quo", para manter seu "progresso", explorando o trabalho de muitos, e levando a inércia ao sertão. O desvio de comportamento dos cangaceiros é uma prova do potencial de energia sertaneja. Representaram, eles, todo um sentimento de revolta contra a injustiça. Eram homens que não baixavam a cabeça. 

O povo da terra rachada do sol,
gente velha e acabada,
pois no sertão meu irmão,
os jovens vão de arribada.

"Lá, nas fazendas de cana, eles apanham de relho na cara, aqui, eu só queria vê isso. Home que apanha e num reage, num é home não" — disse-me Ângelo Roque, vulgo Labareda, ex-cangaceiro de Lampião.

Os bodes berram na caatinga,
pedindo a chuva do umbú,
meu coração ressequido chora,
pensando em quem arribou para o sul.

Mas em 1938, entra em decomposição o cangaço, movimento armado contra a injustiça, porque a repressão policial foi maior, e melhor armada, e as estradas possibilitaram a fuga do sertanejo, que, em vez de matar para ser morto em seguida, preferiu tentar novas terras ... 

Tudo seco no sertão,
chuva que é bom, não vem não,
esperando o que Deus quiser,
aguardando uma motivação...

Em 1940, com a morte de Corisco, e a rendição de outros chefes como Ângelo Roque e Zé Sereno, o bando de Lampião deixa a caatinga para passar à História. Agora, quando a injustiça é ainda praticada pelo coronel, e pelas autoridades, nada resta ao sertanejo, senão abaixar a cabeça e ficar amôrfo, parado, angustiado. Ou então, colocar a trouxaria nas costas, e seguir pelas estradas, as mesmas que extinguiram o cangaço. 

...de esperar os que se foram,
e aguentar mais um pouquinho,
o sol castigar o chão,
que se racha devagarinho.

O sertanejo parou. Por que não luta mais? Por que se tornou um passivo? Houve alguma melhora na sua condição de vida? Não há mais abuso do coronel, ou o homem enfraqueceu? Virou água o sangue do sertanejo? — Não?... Agora, há uma esperança. Em vez de embrenhar-se na caatinga, fugindo e matando, o melhor é seguir as estradas à procura de outras terras, onde se possa plantar, onde se possa colher. E o caminhão vem trazendo, para favelas e para mocambos, cangaceiros e místicos frustrados. 

Já mandei minha mulher,
que se foi com meus filhinhos,
de retirada pr'onde chove,
nem que seja um bocadinho.

Vieram para trabalhar num mundo que não é o deles. É a terra tão cobiçada, a floresta de cimento armado, tão dura e tão fria... E ele olha para cima, sem saber que é pequeno demais para viver. 

Nas fábricas: "Não aceitamos favelados". 

O gado berra, o caboclo grita,
que já não aguenta mais,
até o aboio de seu peito,
já não é como o de atrás.

Se aceitassem já seria difícil. Eles não têm mão-de-obra especializada, e além disso... êles são favelados. São párias da sociedade. São fracos... são sertanejos e estão sós neste mundo que não é o seu. Tudo que deixaram pra trás, foi um chão duro, que mesmo assim dava milho, dava feijão e... o gado vivia. Era só poder ficar... Era só poder viver ... mas no sertão tudo endureceu. 

Árvores secas... mortas,
terra rachada; muitos vão de arribada.
Coração seco; caboclo sem aboio.
Tudo isso é o sertão; terra abandonada.

O sertão de pedra no chão, virou pedra de cimento armado, e êle ficou só... 

...Só numa luta que apenas ele tem dentro de si, uma luta de que ninguém quer compartilhar. Hoje, em plena era espacial, chegamos à dura conclusão de que o sertão continua na mesma miséria. Sua lavoura ainda é feita com os mais incipientes meios.

Não experimentou ainda a melhoria da técnica na agricultura, e o sertanejo ainda olha para os céus, pedindo à "chuva que nos acuda". Ao homem da cidade, essa espera pode parecer uma inércia, o que não corresponde à verdade. O sertanejo não pode esperar outra coisa a. não ser a chuva... Sem ela, não há plantação e, conseqüentemente, haverá fome. Daí ele aceitar, tranquilamente, os fenômenos sobrenaturais. O misticismo passa a ser, assim, a fôrça-maior no sertão. 

E que fôrça poderia ele esperar numa região onde não existe o mínimo de garantia? Com a seca vem a tragédia para o camponês. O coronel despede os empregados, para que seu gado não morra de fome. O gado do coronel precisa pastar na rocinha de milho e feijão, que até então pertencia ao empregado. 

O sertanejo, de um momento para outro, perde sua roça, que representa sua alimentação, fica sem teto e sem trabalho, parque nessa época ninguém vai empregá-lo. Isto acontece hoje, com muita freqüência, e o coronel, senhor absoluto das suas fronteiras, não encontra qualquer resistência. Muito pelo contrário, êle tem até ao seu lado o pistoleiro, seu capanga, que é contratado para "resolver" as diferenças políticas, mas que também pode ser usado contra "um empregado rebelde". 

Na época do cangaço, era diferente. O coronel temia que um dos seus vaqueiros se transformasse em cangaceiro, e voltasse para a vingança. A par disso, não se deve esquecer que todo cangaceiro foi um vaqueiro, e que compreendia muito bem a submissão imposta ao camponês, pelo coronel. Sabia perfeitamente, que o dono da terra, na época da seca, negava qualquer alimento ao povo, que comia raiz de mucumã para sobreviver, enquanto o gado do patrão se alimentava na roça feita pelo próprio empregado, despejado da terra. 

O gado, fonte de renda para o senhor, servia-se inicialmente, da roça do empregado despedido, e se a seca continuasse dura, sua alimentação era na base do xique-xique, do faxeiro e do mandacaru. Isso era trabalho para dois ou três empregados. O resto, o coronel mandava pra rua. Nessa época de seca, é comum o quadro de miséria pelas estradas. Homens e mulheres famintos, crianças com barrigas estufadas, gente morrendo... Filas de retirantes com suas trouxas às costas, fugindo da terra que os repeliu. 

"As serpentes e os ratos, passeiam pelas estradas e por dentro das casas, enfurecidos, loucos". 

Eles também não têm o que comer e, se não mordem aquela gente, é porque sabem que não há mais carne; o pouco que sobra está podre. A poeira nem deixa mais ver as caras; podem ser pretas ou azuis, que ninguém sabe. É tudo igual. E eles ficam sem ter uma saída. Se ficam morrem, se vão destroem-se. 

Tudo se arrepia nessa desolação. Até os gravetos se abrem pro céu pedindo perdão. É só um pouco d'água, e eles podem voltar. A seca em tudo bole, mata tudo de arrastão. Criança que já andava, volta a engatinhar e fica abobada. A barriga estufa, a perna afina... é só osso. O coronel sabe disso, mas nunca deu importância. Ele jamais saiu de sua terra por causa de seca. Este fenômeno jamais o atingiu pessoalmente. 

Os cangaceiros também nunca sofreram qualquer problema com a seca, porque eles roubavam aquilo que o coronel negava aos empregados. Lampião, por várias vezes, acudiu o sertanejo, matando o gado, fosse lá de quem fosse, para alimentá-lo. Lampião não foi o flagelo do sertão, mas o flagelo dos coronéis. 

E o sertão continua com os mesmos problemas. Muita coisa se pensou em fazer. Muita coisa se quer fazer. Muito tempo já passou e muita desgraça ocorreu; muita vida foi ceifada; muita desonra existiu; muita tristeza, muita luta. E muito nordestino sai de suas terras, muita gente morre de fome. Muito pouco desenvolvimento aconteceu. Muito pouco se fêz, numa terra tão grande. 

O sertão continua, embora quase desaparecendo na poeira e na chuva. O nordestino sai. O que aconteceu? Onde está a máquina do progresso? Onde está o desenvolvimento? Onde estão as escolas? Onde está a vida, se não se pode lá viver? A verdade é que o coronel de ontem é o mesmo de hoje, com a mesma mentalidade medieval, com os mesmos costumes, e acreditando ainda na sua prepotência, com o mesmo orgulho, e representando o maior entrave para o desenvolvimento social, econômico e político do Nordeste. E o sertão continua a ser a mesma terra castigada, e o sertanejo hoje é um submisso. Que será do sertão? Como poderá Ele progredir? 

http://meneleu.blogspot.com.br/2016/06/poligono-das-secas-x-cangaceiros.html

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

A MORTE DO PAI e DA MÃE de LAMPIÃO

Por Raul Meneleu Mascarenhas
Raul Meneleu Mascarenhas e esposa - cariricangaco.blogspot.com

Não querendo faltar com o respeito aos direitos autorais do Padre Maciel, mas solicitando todas as desculpas, transcrevo uma parte da vida e morte desse homem que passei a admirar, que foi José Ferreira e desta mulher que seguiu seu amado esposo, Dona Maria Lopes, em cuidados com seus filhos, e suportarem tantas injustiças, somente e grandiosamente, para proteção deles.

Bico de pena de Lauro Villares com retratos da época

Também fica registrado aqui nesse blog sem pretensão, a não ser no interesse em mostrar as perseguições sofridas por estas duas almas (que Deus as tenha), fatos acontecidos e testemunhados por pessoas que o autor entrevistou.

Quando li esses dois relatos escritos por esse autor, que pesquisou por 30 anos e somente por insistência de amigos, produziu essa preciosa obra, dividida em 6 livros, atinei em registar e incentivar os amigos a lerem essa obra.

Faço isso para aqueles que não tiveram a oportunidade que estou tendo em conhecer a história desde o princípio da saga guerreira de Lampião e de seus irmãos, Livino, Antônio e depois Ezequiel (quando se deu a morte da mãe e do pai, ele era menininho), que o acompanharam nessa aventura.

Fica também registrado o meu repúdio, aos perseguidores e destruidores de uma família humilde do sertão nordestino. 



Vamos à história, pelas mesmas letras, do livro 'LAMPIÃO, SEU TEMPO E SEU REINADO' de Frederico Bezerra Maciel.

MORTE DE D. MARIA LOPES

21 de maio de 1920.

Mãe de Virgulino Ferreira da Silva dona Maria Sulena da Purificação ou Maria Lopes - 
Acervo José Mendes Pereira -  Foto redesenhada por Diin Laden

Ainda escuro, entre o primeiro e segundo canto dos galos, reuniu José Ferreira a família e seus haveres — tão pouco: uma pequena trouxa para cada um! — e partiu, de mudança pela terceira vez* — “os Proscritos!”  Conduzia sua esposa enrolada em desgastado cobertor, de algodão e montada no velho e serviçal Condave. Os seis filhos atrás, olhos arregalados de pavor a que já estavam afeitos, pés no chão para não acabar com as apragatas muito gastas e remendadas, tiritando de frio apesar do exercício do caminhar.

No arrasto da vida e do destino escuros, quiném aquela noite impenetrável, arrastava José Ferreira a família e a miséria. Seguia ele na frente, trôpego, puxando o animal; na outra mão, levantada para alumiar o caminho, o butirão aceso, feito de garrafa de meio litro, com gás e grossa torcida de molambo fumacento.

Caminhava devagar como vagaroso era o seu maginar e raciocinar diante da prepotência do destino nos enigmas das ditriminações divinas. Já perto de chegar, voltou-se, consolador, para sua esposa e disse com resignação e fé:

— "Maria, é preciso aceitar a vontade de Deus!" 

Ela, desde a chegada, continuava sempre amurrinhada. Não se sabe se do cansaço da viagem, embora curta, ou porque sorrateiramente se aproximava a sua hora derradeira. O certo é que, não fossem as tramas ocultas dos perversos, atiçando perseguições e injustiças, não estaria ela assim desacabando a saúde e a vida.

* A primeira mudança da fazenda Ingazeira (Vila- Bela) para a fazenda Poço Negro (Floresta), a quatro léguas de distância; — a segunda, do Poço do Negro para a fazenda Olho d'Agua de Fora (Água Branca, Alagoas), vinte e duas léguas; — a terceira, de Olho d'Água dê Fora para a fazenda Engenho (Mata Grande, Alagoas), quatro léguas; — total: trinta léguas ou sejam cento e oitenta quilómetros! Perseguiram assim José Ferreira ponto por ponto até matá-lo! Dal em diante a família Ferreira não teria mais descanso, tornar-se-ia como Ahasvero, o judeu errante. A perseguição em cima, sem parar. Que se perseguissem os três — Virgulino, Antônio e Livino — que se lançaram no cangaço, compreende-se. Mas a familia que nada tinha a ver com isso? Perseguição inominável! A familia vagueou por Águas Belas, Bom Conselho, Juazeiro do Padre Cícero, Picos no Piauí E com Eurico de Sousa Leão caiu na diáspora!

Não se adornava a natureza sua a uma vida assim acuada por toda parte. Sentia-se desinfeliz, sem poder viver. Inda bem ali não chegara e já as perseguições recomeçaram. Não tinha vindo para ali fugida delas? E ei-las de novo! Sempre injustas, e agora grumitadas pela autoridade. Foi mesmo muito pior ter vindo para Alagoas. O arreliado e vendido comissário de Matinha de Água Branca, o famigerado Amarílio, querendo desarmar seus filhos dela para desmoralizar, corregendo as casas e desassossegando as famílias, prendendo sem motivo e torturando um inocente, botando emboscada, atacando à bala, doido para ganhar mais dinheiro matando... Nessas aflições todas, teve durante o dia dois passamentos. Botaram-lhe até vela na mão, maldando estivesse nas últimas e não resistisse mais.

José Ferreira também agoniado, com as mãos apertando a cabeça e sem encontrar canto para aquietar o juízo, exclamava: "Não! Não é possível viver aqui! Não passo mais um dia nessa terra. Vou falar com o delegado de Mata Grande, que é meu amigo, para poder ficar por lá". Diante da melhora, súbita e surpreendente, da esposa, andando embora devagarinho e pegada, comendo e conversando alegre — não sabia ninguém que era a "visita da saúde" precedendo a morte! — resolveu José Ferreira, de madrugada, selar dois burros e com seu filho João ir logo à Mata Grande trazer remédios e falar com o delegado, seu amigo. Os três filhos mais velhos, tendo espalhado antes que iriam ao brejo de Triunfo, na verdade continuavam ocultos no mato por causa da policia. 

Aproveitando a manhã, alegre e de esperança, daquele dia 22 de maio de 1920, conduziram as filhas a mãe para fora, no terreiro de frente da casa, a modo de ela despairecer, tomar um arzinho e uns esquentes do sol brando. Ficou ela sentada numa cadeira, distraindo-se feliz com Ezequiel e Anália, os dois caçulinhas, a brincarem de pega no terreiro. Não demorou muito tempo, deu-lhe nela inexplicável cansaço seguido de sonolência. As três filhas, cada qual com um pote de barro na cabeça, tinham ido vexadas ver água na cacimba. Naquele momento instante, voltando, notaram que sua mãe, de repente, pendia a cabeça de lado e virava os olhos para cima, enquanto o queixo afrouxava entreabrindo a boca.

Compreenderam a evidência do desenlace... 

Num sufragante, Virtuosa segurou a mãe pelas costas, levantando-a um pouco para Angélica retirar a cadeira. Ali mesmo foi ela deitada, a cabeça no colo de Virtuosa que se Sentara no chão. Posição essa mais favorável para ajudar a doente a desafogar o peito e a respiração, fazendo passar a agonia. Pela terceira vez — não sabendo que era a derradeira, Mocinha vigiou a vela benta e lhe colocou acesa na mão.

Ezequiel e Anália agarraram-se ao regaço da mãe, chorando e chamando:

— "Mamãe! Querida mamãe!"

Talvez para sua consolação, nesse instante derradeiro, tenha ela ouvido dos lábios infantis de seus caçulas essa doce palavra que traduzia inteiramente tudo o que ela fora na vida — mãe! 

O semblante sereno, o olhar fugindo para a eternidade, tendo diante de si a imagem do Senhor Crucificado apresentado por Angélica, que a custo repetia entre soluços:

— "Meu Jesus, misericórdia”, entregou sua alma ao Criador. 

— "Sem o mínimo estremeço o modo de um passarim!"

Mocinha apagou a vela. Soprava uma aragem macia e refrescante aliviando aquelas almas transidas de dor... Uma poeira de luz emoldurava aquele quadro de tragédia em terra estranha e de exílio... Lá para o meio-dia chegaram José Ferreira e João, simultaneamente com os três chamados de seus esconderijos. Encontraram a morta deitada numa cama de vento, amortalhada, com os lábios sorrindo para a morte, de vez que há muito deixara de sorrir para a vida!... Na dor e na lágrima lamentaram todos a desdita. Os três filhos perseguidos, às pressas colheram cravos amarelos e bugaris, enfeitaram o leito da mãe defunta e se esconderam de novo. Não podiam ficar velando. 

Somente à noite, assim mesmo cismados e precavidos, voltariam para o velório. A família e vizinhos entre lágrimas e soluços de todos, inteiraram a noite fazendo a sentinela com os cânticos lúgubres das incelenças e o ofício das almas.

No dia seguinte domingo, pela manhã, conduzida numa rede pelos filhos, que se revezavam, foi feito o enterro, estrada a fora rezando, e sepultada numa cova do cemitério do povoado de Santa Cruz do Deserto*, após lhe terem o esposo e filhos beijado o rosto frio. Três coroas, lembranças do esposo, dos filhos e dos parentes, além de muitos buquês levados pelos acompanhantes, floriam a sepultura, que mais parecia um canteiro de festa, e de vida.** 

* Povoado de Santa Cruz do Deserto no município de Mata Grande (cfr. cap. 24).

** Enviado, cor urgência, de Engenho para Vila Bela, um pombeiro, a fim de avisar aos Ferreiras das ribeiras do Pajeú e do São Domingos esta morte. Dona Mariquinha Ferreira, filha do Cândido Ferreira e prima de Virgulino, ao receber a dolorosa notícia — e ela bem se recorda que ainda na penúltima semana de maio de 1920 — exclamou, os olhos rasos de lágrimas: — "Tá! Maria Lopes morreu..." E ela mesma afirma que José Ferreira foi morto trinta e oito dias depois. 

MORTE DE JOSÉ FERREIRA
(29 de junho de 1920)

Pai de Virgulino Ferreira da Silva - Acervo José Mendes Pereira
Foto redesenhada por Diin Laden
Penúria...

O pobre do José Ferreira, com tanta coisa amarga e trágica sem trégua se sucedendo, ficou desatinado, abatido, sem gosto pra nada na vida, curtindo os penares da dor e da saudade e os sobressaltos de uma desgraça ameaçadora e iminente. Chamou os três filhos que continuavam ocultos, e lhes disse: — "Vocês aqui não podem mais ficar. Vão para Pernambuco que depois eu tomo o mesmo caminho". Não podia, de súbito, se afastar de perto da sepultura da finada esposa. Seguiram os três filhos para Espírito Santo do Moxotó, onde ficaram; trabalhando na propriedade de seu Terto. José Ferreira vendeu os dois burros para comprar roupa de luto para todos de casa.

A diligência do diabo...

Cartas do delegado de Água Branca — comprado por Zé Saturnino — ao Chefe de Polícia de Alagoas, carregando em cores os assucedidos mais recentes: a revolta dos Porcinos; a invasão de "perigosos bandidos" vindos de Pernambuco, onde cometeram "muitos crimes"; o caso do soldado Jagunço em Mata Grande; a desfeita à polícia em Água Branca quando ela, "com bons modos", procurou desarmar aqueles "criminosos bandidos", os quais ao depois desfeitearam o comissário de Paricônia;. um "bandido, ainda jovem, comprando armas"; "a ameaça e o terror ganhando as populações"... Alarmado diante de tudo isso, resolveu o Governo cortar pela raiz todos esses males. Para tal, determinou ao delegado de Viçosa, 2° Tenente José Lucena, famoso por excessos de severidade, fazer uma diligência por aquelas bandas conflitadas. Ao chegar em Água Branca, foi Lucena inteirado de tudo o que ocorrera. Inclusive por carta de Zé Saturnino tivera conhecimento do nome dos "três perigosos bandidos e criminosos": os irmãos Virgulino, Antônio e Livino, além de Antônio Matilde, que, armados, haviam descido do Navio para aquele município alagoano. De primeiro, dirigiu-se Lucena à fazenda Chupete, para perguntar ao Capitão Sinhô pelos irmãos Ferreiras. — "Despachei eles para o Coronel José Abílio, de Bom Conselho; não costumo ter bandido comigo" — descartou-se o capitão. Carecia não se inocentar. Lucena não ofendia coronel e protegido da política de cima. Mas somente cabra solto, isolado ou de grupo. Seguiu, então, Lucena, na pista deles, em direção de Santa Cruz do Deserto.*
* Da fazenda Chupete seguiu Lucena no sucaro dos Ferreiras guiado por Zé Batista Quirino e outros mais da mesma família. Zé Batista sabia exatamente paro onde se havia mudado o velho José Ferreira. Tinham os Quirinos transações com os Ferreiras em razão do carguejamento de mercadorias. A aproximação dos Ferreiras com os Marcos, inimigos dos Quirinos, levou estes à denúncia de traição. Além de seus soldados, compunham a tropa de Lucena alguns cachimbos, juntamente com Amarílio e os Quirinos.

O assassínio... 

Na casa de José Ferreira, só tristeza. Tinha ele ido ao cemitério e não compreendia por que desta vez chorara muito mais do que das outras. Revelara aos filhos o que dissera à falecida, já na cova enterrada, que não havia mais sentido para ele continuar a viver. Queria ir pra de junto dela. Repassou, de minúcia e fagueiro, os bons tempos de antanho, de paz e ternura. Recordou particularmente a última festa; do Senhor São João, há dois anos atrás, em que a finada, tão bonita e saudável, tão vistosa e alegre, dançara com ele... Hoje, era ele mais morto do que ela morta! No dia seguinte, 29 de junho, terça-feira, precisamente 38 dias depois da morte de D. Maria Lopes, de manhãzinha, o tempo chuviscoso, ele com mais João e as três meninas fora adjutorar, como alugados, os trabalhos de um roçado vizinho, a modo de trazer para casa alguma coisa de ganho para o de-comer carecente. Voltara logo para casa José Ferreira, cansado e escanchado em Condave, trazendo dependurados, de cada lado das ancas do velho burro, dois sacos contendo quatro mãos de milho plantado em São José e colhido agora para o São João.*

* A mão de milho em Alagoas: 25 espigas não debulhadas; em Pernambuco: 50.

Ao chegar no terreiro de frente da casa, bem perto do lugar em que a esposa falecera, apeiou-se. Correram pressurosos e choramingando de fome os dois menores e lhe tomaram a bênção. Abraçou-os o pai, afetuosa e longamente, acarinhando e beijando. Em seguida tirou os sacos e derramou as espigas num balaio. De cócoras, apanhava as espigas, tirava a palha, que avoava para Condave comer. Debulhava o milho numa gamela para depois fazer xerém no pilão, facilitando assim o trabalho das meninas que, ao regressarem, era só preparar o angu. O qual dessa vez não seria comido puro. Tinha ele comprado um bom taco de carne de bode e um litro de farinha. O "café" (almoço) seria sustancioso.

Estava José Ferreira dessa maneira entretido quando, escornetando a concha da mão na orelha, ouviu um tropel. Com mais, estava sua casa cercada de soldados. A uma distância de três braças gritou Lucena para o velho José Ferreira: — "Cadê os seus três filhos bandidos?" Ferido em seus brios e honra, José Ferreira retrucou, com todo o desassombro e altivez, alto, firme e pausadamente: — "Não, sinhô! Bandidos, não! Meus filhos não são bandidos. Querem forçar eles a ser. Mas eles são é home!..." — "É assim que responde a um oficial, velho malcriado, cachorro da mulesta" revidou furioso Lucena. 

E, sem mais, descarregou ele próprio a pistola no peito daquele pobre velho, pacifico e indefeso, que caiu, por estranha coincidência, ali, no mesmo chão onde falecera sua esposa. Na queda, de chofre e de bruços, por cima do balaio, o corpo esparramado, o braço direito estirado segurando na mão um cabucé, torceu o rosto de lado e balbuciou:

— "Coma... coma..." 

Pareceu, nessa única palavra, que a derradeira preocupaçao de seu coração paterno era desafaimar 'as crianças. Elas, as crianças, apavoradas, dispararam, aos berros, por dentro do mato. Um soldado para agradar ao comandante deu na direção delas um tiro de fazer medo, provocando gargalhadas nos seus companheiros de selvageria. Lucena vasculhou a casa de Zé. Ferreira, encontrando de arma apenas um quicé!

Ao retirar-se notou dois homens ,vindo, desconfiados e irriquietos, na sua direção. Sem saber nem perguntar quem eram, ordenou uma descarga de fuzil, matando um e ferindo o outro, que correu. Uma senhora e u'a moça que vinham a certa distância ficaram levemente feridas. Não era ele o senhor absoluto da vida e da morte?! 

Os dois eram o velho Fragoso e seu irmão Zequinha. Aquele, viúvo e dono da fazenda Engenho, onde, por caridade, cedera uma humilde casa de morador para José Ferreira ficar até que resolvesse seu destino. A senhora era a dona da casa e a moça sua filha. Atentando nos disparos, tinham ido ver, desarmados, o que acontecia, sendo seguidos pelas duas mulheres.*

* É absolutamente autêntica, _ com todos os seus pormenores, a descrição. 'assassínio doi. pobre; manso e indefeso velho José Ferreira., assim como das outras circunstâncias. Em vez de debulhando milho, alguém fantasiou José Ferreira tirando leite de uma vaca ...

Vezo da polícia, para justificar seus crimes: alegar que houve "resistência". Assim fez Lucena: O cúmulo do grotesco: o alquebrado velho José Ferreira enfrentando sozinho uma formidável volante e "tiroteiando" com uma quicé, isto é, com um toco do facas Quando João Ferreira, filho da vítima, em entrevista, usou a palavra "tiroteio", entendeu dizer que houve tiros de um lado, o da volante.

Quase profético o Padre Epifânio Moura, vigário de Água Branca: — "Esse crime vai trazer muita desgraça para o sertão". O povo: — "Mataram dois cidadãos de bem só pru gosto de matar!" — "É do esperar que não fique nisso, não". E, de fato, o povo não se enganou. Tão revoltante crime lançou Virgulino e seus irmãos no cangaço. Criou Lampião! A situação piorou. Diante do ressurgimento do cangaceirismo, agora em forma diferente, recrudescido e desafiador. Chamou o Governador alagoano aquele homem de sua confiança, o único, a seu ver, que enfeixando poderes absolutos e indiscriminados, poderia liquidar, de um golpe, todo aquele mal, muito embora enegrecendo o seu nome e o da História. Este homem: — Segundo Tenente José Lucena de Albuquerque Maranhão. Esteve confabulando no Palácio do Governo, em Maceió, no dia 4 maio de 1921. Depois destituído da delegacia policial de Viçosa, iria com carta branca, acabar com o banditismo em todo o estado. E assim e vexado com uma poderosa volante de vinte e quatro homens, deixaria no dia 10 de maio, a cidade de Palmeira dos Índios “na direção do sertão.” A ação repressiva de Lucena chegou a ser "desumana", conforme ele próprio reconheceu. (Cfr. Adendo ao capítulo 45.)

A desolação da abominação! *

Alarmados pelos tiros, João Ferreira e as três irmãs abalaram para casa. 

No maior desespero reviraram o cadáver, fecharam-lhe os olhos e o conduziram para dentro de casa. — "Mas, cadê Ezequiel e Anália?" — "Onde estavam escondidos?" — "Ou será que foram roubados?" — perguntavam-se angustiados uns aos outros, noutro desespero somado. . Feito loucos, saíram João e Angélica às procura deles, chamando-os repetidamente com toda a força dos gritos. Encontraram, enfim, os coitadinhos, com bem cem braças, num estado horrível, assombrados e atordoados, rasgados dos espinhos e tocos de pau, sujos de terra, quase sem mais falar de tão roucos, caídos no chão, semimortos de fome e pavor! Tragédia de rara concepção ou de difícil visualização nesse quadro desumano de miséria e barbaridade! — "Pareciam (as crianças) dois filhotes de ema perdidos no mato, piando de fome!..." Atirados os irmãos aos ombros, retornaram às pressas. No entanto, o grave da situação era que ninguém cia vizinhança, com medo de Lucena, queria se aproximar, para amortalhar e sepultar as vítimas. João Ferreira mandou comunicar o triste acontecido ao delegado de Mata Grande, Maurício de Barros** que atendeu prontamente e pessoalmente veio ao local, providenciando, por sua conta e risco, o enterro, mas de um modo tão atabalhoado, dadas as circunstâncias de terror, que João Ferreira nem viu quando os corpos, altas horas da noite, candeeiro aceso na frente, foram levados! - "José Ferreira também era filho de Deus e não bicho para os urubus..." — dissera Maurício, essa destemida autoridade e mais tarde integrante da polícia pernambucana. Sem que, ninguém da família assistisse, José Ferreira foi sepultado numa cova do cemitério de Mata Grande, na manhãzinha do dia 30 de junho de 1920, a última quinta-feira do mês.***

Unidos à mesma gleba do Pajeú, que os viu nascer, unidos numa vida de vinte e seis anos de amor conjugal; unidos ao mesmo chão do Moxotó em que expiraram o último alento, deveriam seguir o mesmo destino de continuar diante de Deus. 

* Naquela época, culto sacerdote-vigário, corajosamente vergastou do púlpito e censurou severamente, condenando esses abomináveis fatos, tomando por tema de confronto as Sagradas Escrituras no famoso texto, cap. 9, v. 27, do profeta Daniel": — "O maldito Coronelismo, simbolizado no deus pagão-político, prepotente, cruel e desumano foi erigido sobre o altar da Justiça — divina por natureza — sob à qual procuravam se abrigar os humildes e ofendidos, os pobres e fracos, cuja vida é um perpétuo holocausto de seus direitos sagrados! Profanação, na linguagem bíblica chamada de "abominação da desolação" ou desoladora e horrorosa abominação".

**. Maurício Vieira de Barros. Lampião, a 29 de novembro de 1930, o prendeu juntamente com um soldado, nas Negras (Aguas Belas), quando ainda estavam deitados e dormindo. Levou-os presos até Pau Ferro (hoje Itaíba) município de Águas Belas. A porta da casa de Maurício, disse Lampião: — "Vou matar o soldado. Você não, porque lhe devo um grande favor: enterrou meu pai! Lhe poupando a vida, paguei a dívida. Se continuar a me perseguir e eu lhe pegar você não tem jeito, não. Morre, visse?!" Apesar das súplicas de Maurício, Lampião matou ali mesmo o soldado e soltou o prisioneiro. Maurício havia verificado praça na Polícia Militar de Pernambuco, chegando a ser sargento. Foi comandante de volante. Era perverso, cometendo muitos crimes. Etelvino Lins, Interventor do Estado, expulsou-o da polícia. Chamava a atenção seu bigodão, Ainda vive com seus noventa anos.

*** Defronte da igreja de Santa Cruz do Deserto visitou o autor deste livro um velho, em sua casa, o qual ajudou no enterro e, sem registro de óbito, no sepultamento de José Ferreira em Mata Grande, território da jurisdição policial do delegado Maurício Vieira de Barros. O nome do velho, o autor não guardou, mas tem como testemunhas o Dr. Tarcísio de Freitas então engenheiro chefe do DNOCS, emt Palmeira dos Índios.

http://meneleu.blogspot.com.br/2014/10/a-morte-do-pai-e-da-mae-de-lampiao.html

http://blogdomendesemendes.blogspot.com