Por: Rangel Alves da Costa(*)
AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 8 (CONFISSÕES DO VELHO COITEIRO)
Certa tarde decidi colocar em prática aquilo que vinha com intenção de fazer desde muito tempo. Coloquei a mochila da história no ombro, coloquei pilha no eco do tempo, me municiei de papel da memória e da caneta do destino. E segui adiante.
Sou historiador das veredas da vida e não um agente da verdade transformada. Por isso mesmo meu compromisso maior é pesquisar, colher o inusitado, o que ninguém já nem valoriza mais, para mostrar a desconhecida saga do povo sertanejo. Meu povo. E como sou feliz por ser desse povo.
Fui no passo certo, pelo caminho que certamente levaria até ele, um velho coiteiro que agora só dava refúgio e guarida, mantinha e acobertava, às velhas recordações de áureos tempos em que desfrutou da honraria de ser amigo e contar com a confiança do rei maior das caatingas nordestinas, o Capitão Virgulino Ferreira da Silva, Lampião abrasando o seu tempo.
Já o conhecia de outras conversas, de outros encontros no descompromissado entardecer sertanejo. Sempre de boa conversa, chegado a um proseado sobre fatos e coisas matutas, ficava um pouco relutante apenas quando a conversa puxada dizia respeito aos seus tempos de coiteiro a serviço de cangaceiros.
Tentava fugir do assunto, desconversar, sempre dizendo que havia sido um tempo que já havia morrido e que, portanto, estava sepultado na sua memória. Mas eu sabia que não era nada disso, que o velho coiteiro ainda respirava aquela vida perigosa de antigamente, ainda se orgulhava do trabalho realizado para ajudar seu amigo Capitão.
Um dia resolvi fazer com que o homem abrisse de vez o seu velho baú cangaceiro, contando tudo o que sabia e o que tinha vivido naqueles tempos de sol refletindo sangue esparramado pelas veredas sertanejas. Mas não somente isto, pois também um tempo de amizades, de confiança, de se acreditar na força que o sertanejo tem.
Cheguei embaixo do tamarineiro onde estava sentado numa cadeira de balanço e pedi licença para ficar por ali um pouquinho. Gritou que seu bisneto trouxesse um banquinho e depois disse que eu havia chegado em boa hora. Perguntei por que e o velho sertanejo me falou que não suportava mais ficar muito tempo sem dizer algumas verdades do seu percurso de coiteiro.
Pediu que trouxesse uma lapada de pinga, me ofereceu outro tanto, que prontamente aceitei com um sorriso, e depois passou a mão pelo queixo de barba branca por fazer e me pediu pra olhar em direção a uma mataria que se descortinava adiante. Acompanhou o meu olhar e em seguida disse que aquilo era nada diante do corrupio catigueirento e espinhoso de outros tempos.
Era uma mata muito mais fechada, perigosa, cheia de armadilhas, de espinhos graúdos e pontas de paus que pareciam faca amolada. Só entrava ali quem tinha mesmo alguma coisa a resolver. E era nos esconderijos dessa mataria que os cangaceiros procuravam se refugiar depois dos combates e das longas caminhadas, e estas muitas vezes feitas ali por dentro mesmo.
Por isso mesmo é que tanto precisavam do coiteiro, daquele que conhecendo onde estavam escondidos, passava a ter a incumbência de ser o contato entre eles e o mundo lá fora. Não somente isso, pois também aquele que fazia chegar ao coito tudo o que precisassem. Se Maria Bonita precisasse de uma máquina portátil de costurar, então lá ia o coiteiro providenciar.
Tanto levava como trazia carta e recado. Batia na porta do coronel dono do mundo sem medo porque chegava logo dizendo de quem estava a serviço. Em seguida transportava maços de notas graúdas, caixas de munição, sacos de alimentos. Tudo isso carregado nas costas ou no lombo dos jumentos, mas sempre com o cuidado maior do mundo para não ser descoberto pela volante que se espalhava por todo lado.
Era um serviço muito difícil e perigoso de ser feito. Coiteiro macho de verdade foi torturado e até perdeu a vida de bico calado. A polícia, não sabendo que ajudava Lampião e seu bando, simplesmente ia pegando qualquer e judiando. Gente que não sabia de nada mentia, dizia que a cangaceirada estava lá pra perto da Maranduba. Na verdade estava noutra direção.
Mas o silêncio era a lei que imperava para o coiteiro. Também não podia ser diferente, pois ou se fazia de mudo ou corria o risco de morrer pelas mãos dos próprios cangaceiros. E não foi só um não, mas muitos que foram degolados pelos bandoleiros apenas porque achavam que estavam sendo traídos.
E muitas vezes eram traídos mesmo. Traição foi o que mais ocorreu no cangaço. Daí a certeza de que Lampião possuía uma misteriosa proteção lhe acompanhando, avisando sempre quando o tempo ruim estava batendo na porta, cercando o coito. Coiteiro traía, dava o mapa do lugar, mas quando a macacada chegava lá o canto já estava mais limpo.
Só não se livrou de uma traição. Ao menos é o que dizem, mas coisa que não acreditava não. Conhecia aquele que passou para a história como o traidor de Lampião e nunca achou que ele teria sido capaz de ter feito aquilo. E se houve um traidor nessa história toda foi o próprio Capitão João Bezerra, comandante da volante que acabou praticando a chacina.
E traidor porque mancomunado com o próprio Lampião, tendo gente que até via uma verdadeira amizade entre os dois. Ora, os dois já tinham sido avistados jogando baralho juntos e no meio da mataria; trocavam bilhetes, mandavam recados.
Certa feita Lampião mandou emprestado, e sabendo que era verdadeira doação, um embornal cheio de dinheiro pro comandante da volante, da macacada.
E quem levou o dinheiro não havia sido outro não, mas o próprio coiteiro sentado ao meu lado. Então perguntei por que a volante comandada pelo Capitão João Bezerra atravessou o rio e matou o amigo Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros. E a resposta veio numa surpreendente revelação.
E disse que Lampião já sabia de tudo, até a hora do ataque da volante. E não saiu da Gruta do Angico a tempo porque não quis, o campo estava aberto pra ele seguir pra onde quisesse. Não foi embora porque já estava cansado daquela vida e preferiu se findar de uma vez a ir morrendo aos poucos.
Assim, Lampião só morreu porque quis. E a volante só atirou em quem estava ali porque João Bezerra havia afirmado que o grande Capitão não estava mais no lugar. Ao menos foi isso que ouvi do velho amigo coiteiro que já não existe mais.
(*)Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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