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quinta-feira, 9 de maio de 2013

Sinal de Cangaceira

Por: Maria Alice Amorim(*)

Sila, companheira de Sereno, passou dois anos no bando de Lampião e diz que valeram por uma vida

Tinha Ilda 14 anos quando Sereno raptou-a para casar-se com ela. O leito de núpcias foi o mato. Vida de cangaceira só tem glamour nas telas, é o que comprova Ilda Ribeiro de Souza - Sila, viúva de José Sereno,  remanescente do bando de Lampião e autora do livro, recém-publicado, Sila Memórias de Guerra e Paz.

O cangaceiro Zé Sereno

"A vida no mato era muito difícil para a mulher", recorda-se, sem nenhuma saudade. Acostumada ao conforto da casa dos sete umbuzeiros, Sila amargou a vida austera e nômade do cangaço, a aridez do Raso da Catarina e do marido mulherengo, a saraivada de balas logo a partir do segundo dia no grupo.

As mulheres - privilégio de quem era chefe - recebiam um punhal, uma mauser e lições de tiro ao alvo, mas normalmente não participavam dos tiroteios. "Quando cheguei no cangaço, a primeira coisa que José me ensinou foi desmontar o parabellum e colocar as balas", relembra Ilda Ribeiro. Quem não tinha índole de guerreira, tinha de guerrear do mesmo jeito.

Cozinhar era tarefa dos homens. O cardápio não podia ser variado e com frequência se comia carne de bode assada, farinha e rapadura. Não havia ritual de cozinheira, panelas para limpar, nenhum trato feminino no preparo das refeições. O que faziam, então, as cangaceiras, se não cozinhavam, nem participavam das estratégias guerrilheiras?

Costurar e bordar eram as atividades a que se dedicavam. Sila, exímia bordadeira de Poço Redondo, Sergipe, adorava o ofício. Bordava com todo gosto os bornais, preparava roupas com tecidos ofertados pelos fazendeiros amigos, em máquinas de costura portátil. O difícil era transportar a máquina. Nas fugas, era escondida às pressas, nos coitos, para posterior resgate.

A cangaceira era, antes de tudo, uma fortaleza. Engravidava, corria léguas, abordava, paria, ia embora, sem um pio, sem um ai. Os filhos nascidos no cangaço eram entregues a alguém que tratava de criá-los. "Maria Bonita entregou Expedita a um coiteiro, Dadá deu o filho a um padre de Maceió, eu entreguei meu João do Mato a Galdino Leite", dis Sila, acrescentando que o seu primeiro filho morreu com dois dias de nascido e somente muitos anos depois é que veio a saber.

"Nos últimos meses da minha gravidez, a força sergipana perdeu nosso rastro, pude descansar um pouco". Maria Bonita acompanhou Sila durante o trabalho de parto, e nasceu um garoto "forte e bonito", ao qual a mãe coruja teve que renunciar. Os cangaceiros padeciam fome e sede, não tinham nenhuma esperança de escapar com vida. Crianças numa rota desgraçada dessas era um complicador a mais.

Se o vigor físico era testado a todo o momento, o moral ainda mais. Não se podia chorar, não se podia criar os filhos, muito menos trair os maridos. " Não se aceitava traição nem de coiteiro, nem de macaco, avalie da própria esposa", arremata Sila. 

O cangaceiro Zé Baiano

Lembra-se do caso de Zé Baiano que marcou a ferro o rosto da mulher.

Mulher ferrada pelo cangaceiro Zé Baiano em 1935

Apesar de todos os reveses, ainda havia lugar para o companheirismo, a dança e a música, o laser. "A gente vivia como uma família, não havia maldade nenhuma, a gente se respeitava", avalia Ilda. E aí, nesse reduto familiar, a mulher tinha que ser forte, fiel, desprendida. A cangaceira transcendia a qualquer cardápio ou costura. Não se podia recuar ante a dureza daquela vida bors la loi. Mas o grupo tinha suas próprias leis, onde a mulher era indispensável aos que gozavam desse privilégio.

Muitas foram as cangaceiras que Sila conheceu e com quem conviveu. Dinda, Sebastiana, Maria de Juriti, Adília, Maria de Pancada, Verônica, Dadá, Dulce de Criança, Enedina de Cajazeiras. O que não a faz, entretanto, sentir falta desses "dois anos que valeram por uma vida" Tão pouco lambe os beiços ao lembrar-se de jacuba (rapadura). "Era uma vida muito triste, era uma vida de cão, mesmo", recorda a ex-bandoleira de Lampião.

A autora deste artigo é jornalista(*)

Fonte:

Diário Oficial
Estado de Pernambuco
Ano IX
Julho de 1995

Material cedido pelo escritor, poeta e pesquisador do cangaço:
Kydelmir Dantas

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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