Um coronel
estranho. Necessário lembrar que, neste caso, o termo coronel está se referindo
aos antigos chefes locais do interior do Brasil, em geral grandes proprietários
rurais. O título parece ter a sua origem na antiga Guarda Nacional nos
tempos do Império. Com a descentralização política promovida na fase da
Primeira República (1889-1930), esses chefes locais fortaleceram ainda mais a
sua autoridade, manipulando as eleições e exercendo o controle do poder,
principalmente a nível municipal.
Delmiro
Gouveia (imagem acima) fugia desse modelo do coronel tradicional. Embora tenha
começado a sua vida ligado às atividades rurais, sobretudo a compra e venda de
couros no interior de Pernambuco, acabou conhecido como o industrial do sertão.
Abriu uma grande fábrica no interior do estado de Alagoas, nas proximidades da
famosa cachoeira de Paulo Afonso. Ao lado da fábrica, construiu uma vila
operária pioneira para abrigar os seus empregados. De coronel a empresário,
esta foi a trajetória deste personagem cuja morte está até hoje mal explicada.
Delmiro
Augusto da Cruz Gouveia nasceu em 1863, fruto de um relacionamento arrebatador
entre Delmiro Porfírio de Farias, mais conhecido como Belo, de 34 anos,
tropeiro e uma adolescente chamada Leonila Flora da Cruz Gouveia, que mal havia
completado os 14 anos. A paixão levou Belo a raptar Leonila. Foram meses
em fuga pelo sertão, pois a polícia e os jagunços enviados pelo pai da moça
estavam no encalço dos dois amantes. Em meio a essa fuga nasceram Maria
Augusta e o futuro coronel Delmiro. Logo depois, Belo foi
convocado para a Guerra do Paraguai e não retornou mais. A viúva Leonila
decidiu morar em Recife e ficou em dificuldades para criar os filhos,
pois a sua antiga família a renegara depois da união com Belo. Contudo,
pouco tempo depois, Leonila casou-se com o advogado Meira
Vasconcelos, para quem trabalhava como governanta.
Quando Delmiro
Gouveia completou 15 anos, sua mãe faleceu decorrente de problemas no coração.
A partir daí, o jovem Delmiro resolveu ganhar a vida e começou
a trabalhar. Tinha recebido as primeiras instruções em casa com a própria mãe e
o padrasto. Exerceu os mais variados tipos de serviço, como bilheteiro em uma
empresa de transporte urbano, condutor e depois, em 1881, tornou-se caixeiro no
comércio de Recife. Fez amizade com o comerciante de algodão Francisco Xavier
dos Santos, que o apresentou a um amigo, o tabelião Antonio Severiano de Melo
Falcão. Este último tinha uma filha de apenas 13 anos, Anunciada Cândida ou
Iaiá, por quem Delmiro se apaixonou. O casamento ocorreu em 1883 (na foto
acima, Delmiro e dona Iaiá).
A situação do
Nordeste nessa época não era das melhores e conseguir sobreviver não era fácil
para aqueles menos privilegiados. As secas começavam a dispersar uma parte da
população do sertão em direção à Amazônia, onde começava o ciclo da borracha. A
riqueza da economia açucareira era uma lembrança do passado e as atenções do
país estavam voltadas para o café, produzido no Sul. Contudo, a região
apresentava a possibilidade da produção e comercialização do couro obtido do
boi, cavalo, bode, carneiro, burro e até do jegue. A atividade atraia estrangeiros,
entre eles o sueco Hermann Lundgren, cuja família fundaria o império das Casas
Pernambucanas. Foi nessa atividade que Delmiro Gouveia começou a prosperar
e como representante da casa norte-americana Keen Sutterly & Co. Ltd.
. Logo depois de uma viagem aos Estados Unidos, Delmiro tornou-se o gerente de
todos os negócios da firma em Pernambuco.
Em 1894 voltou
aos Estados Unidos (na foto acima, Delmiro Gouvea diante das cataratas de
Niagara) para comprar as instalações da firma norte-americana que havia
encerrado as suas operações no Brasil. Delmiro também realizara outros negócios
paralelos no ramo dos couros, que incluiam a poderosa empresa de peles
norte-americana J. H. Rossbach Brothers.
Em 1897, era
um comerciante próspero e construiu uma bela casa em Apipucos, nas proximidades
de Recife. Delmiro tornava-se uma figura atraente na sociedade local e
envolvia-se frequentemente com outras mulheres. Embora na sociedade patriarcal
da época isso fosse algo comum, no caso de Delmiro ganhava muita notoriedade,
principalmente o seu gosto por cantoras de ópera, as quais homenageava com
presentes caros em sua própria casa. Sem condições emocionais de suportar esses
escândalos, dona Iaiá resolveu deixá-lo em definitivo.
Delmiro
Gouveia, ao contrário dos outros membros da elite dos coronéis, pensava em
diversificar os seus negócios e em 1898 firmou um contrato com a prefeitura de
Recife para instalar um Mercado Modelo, no antigo Derby Club da cidade. No ano
seguinte, o mesmo já estava sendo inaugurado. A novidade para a população
recifense: os preços inferiores aos dos outros lugares da cidade. O Mercado
funcionava durante a noite com luz elétrica e tendo atrativos como
carrosséis, teatro, hotel de luxo, velódromo e um sistema de transporte de
bondes puxados a burro para levar o público ao mesmo. Era quase uma antevisão
do moderno "shopping". Delmiro resolveu construir um palacete
para residir próximo ao seu empreendimento.
Apesar do
êxito popular de seu novo negócio, Delmiro Gouveia não estava sintonizado com a
elite política dominante em Pernambuco e que era liderada pelo então
vice-presidente da República, o Conselheiro Francisco de Assis Rosa e Silva. Um
de seus aliados era o novo prefeito de Recife, o qual colocou uma série enorme
de empecilhos ao funcionamento do Mercado-Modelo, como por exemplo, a proibição
para a venda de carne. A fim de resolver a desavença com o prefeito, Delmiro
viajou ao Rio de Janeiro para avistar-se pessoalmente com o vice-presidente
Rosa e Silva e recebeu deste a promessa de que a perseguição acabaria caso ele
e seus amigos apoiassem o governo de Pernambuco. Ao mesmo tempo, Delmiro tomava
conhecimento, ainda no Rio, de que um pistoleiro conhecido como João Sabe-Tudo
já se encontrava na capital para assassiná-lo. Logo depois, quando caminhava no
centro da capital, na Rua do Ouvidor, Delmiro encontrou o vice-presidente Rosa
e Silva na porta de uma loja e dirigindo-se ao mesmo, esbravejou contra a
ameaça de morte que estava sofrendo. Em seguida, em um ataque de
fúria, Delmiro agrediu o vice-presidente com a sua bengala, obrigando Rosa
e Silva a se esconder dentro da loja, diante de uma multidão que se aglomerava
e testemunhava o episódio.
A represália
veio logo depois, no dia 02.01.1900, quando o Mercado-Modelo do Derby amanheceu
em chamas. As autoridades locais acusaram o próprio Delmiro de ter mandado
atear fogo ao mercado para receber o dinheiro de um seguro e a polícia recebeu
ordens para prendê-lo. Delmiro teria dito depois que os
policiais o insultaram moralmente para justificar a sua reação e assassiná-lo.
Contudo, diante da pressão de seus amigos junto ao então governador, Segismundo
Gonçalves, Delmiro foi libertado, mas teve de abandonar a capital
pernambucana. O coronel ainda tocava os seus negócios, entre eles a venda de
couros e uma usina de açucar.
Delmiro
retornou dois anos depois a Pernambuco e conheceu uma moça de 16 anos chamada
Carmela Eulina do Amaral Gusmão (imagem acima), que muitos apontavam como filha
do governador em um caso extra-conjugal. Delmiro repetiu o ato do pai, raptou a
menor e levou-a para o interior de Alagoas, onde comprou uma fazenda e se
estabeleceu em um local chamado Pedra, às margens de uma estrada de ferro pouco
utilizada e distante 20 quilometros da cachoeira de Paulo Afonso. Sim, ele
foi processado por rapto e estava sendo procurado pela polícia.
Posteriormente, o processo foi anulado por interferência dos aliados de Delmiro
Gouveia. Eulina deu a Delmiro três filhos e permaneceu na fazenda, em Pedra,
por cinco anos.
Foi nesse
lugar, aparentemente inóspito, que Delmiro realizou o seu grande
empreendimento, o de explorar os recursos hidrelétricos da cachoeira de Paulo
Afonso e estabelecer um centro industrial naquele local. A fazenda que adquiriu
prosperou com a introdução do gado zebu e das vacas holandesas, além de cultivar uma
planta cactácea que teria vindo do Texas, conhecida como palma. A partir dessa
fazenda, Delmiro continuava a exportar couro para os Estados Unidos.
Sem acordo com
o governo local para a instalação da usina de eletricidade, Delmiro resolveu
explorar de forma particular a energia hidrelétrica no São
Francisco. Trouxe geradores até as margens do rio e os fez atravessar por
meio de uma ponte improvizada. Para colocar a primeira turbina, foi necessário
descer a mesma de uma altura de 84 metros. Alguns autores afirmam que o próprio
Delmiro orientou a descida pendurado em uma corda. Em 1913, a usina foi
inaugurada. Em seguida, veio a fábrica (na foto acima, a entrada da Cia.
Agro-Fabril Mercantil).
A indústria dedicou-se à produção de linhas de costura. Máquinas foram importadas da Inglaterra, técnicos vieram da Europa, mil operários foram contratados, além dos trabalhadores utilizados nos campos para a produção de algodão. Em meados de 1914, a fábrica já estava produzindo fios, linhas para crochê, bordado e ainda cordões brancos e coloridos (na imagem acima, os escritórios da empresa). Os produtos tinham a marca "Estrela" e dois gigantes puxando um fio como símbolo ou logotipo. Em pouco tempo, a produção aumentou e a fábrica exportava para alguns países da América do Sul.
Os anos correspondentes à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foram favoráveis aos negócios fabris no Brasil, diante das dificuldades de importação decorrente da guerra travada na Europa e Delmiro Gouveia soube tirar proveito dessa situação.
Outro aspecto
a destacar desse novo empreendimento de Delmiro Gouveia foi a vila operária
para abrigar os trabalhadores. As condições de vida dentro da mesma estavam
acima das que eram encontradas na maior parte do sertão nordestino. Eram 250
casas com luz elétrica, água e um sistema de esgotos (na foto acima, a antiga
vila com as casas). Mas as normas para viver lá eram rigorosas. Não era
admitida a presença da Igreja Católica e nem as datas religiosas eram
celebradas. Nem mesmo o carnaval era comemorado. O controle sobre os
trabalhadores era exercido até dentro das próprias casas, onde os
mesmos deviam seguir normas, como não usar chapéus e nem andar sem camisa.
O próprio Delmiro inspecionava as casas que deviam ficar com as
portas abertas. Aqueles que cometiam alguma falta grave eram duramente
castigados. O estilo autoritário de Delmiro feria muitos costumes arraigados na
vida dos trabalhadores, como a religiosidade. Por outro lado, médicos e
remédios eram disponibilizados e havia diversão, apesar do controle com
relação ao consumo de bebida alcoólica.
A alfabetização era obrigatória para as crianças e foram implantados cursos noturnos para os trabalhadores. O regime de trabalho era de oito horas diárias com descanso semanal aos domingos. Uma Caixa de Previdência foi implantada mediante uma contribuição semanal dos próprios trabalhadores.
A alfabetização era obrigatória para as crianças e foram implantados cursos noturnos para os trabalhadores. O regime de trabalho era de oito horas diárias com descanso semanal aos domingos. Uma Caixa de Previdência foi implantada mediante uma contribuição semanal dos próprios trabalhadores.
Não se têm notícia de morte violenta na fábrica localizada em Pedra, exceto uma, a do próprio Coronel Delmiro. Em 10.10.1917, às 9 horas da noite, quando estava na sua varanda lendo jornal, Delmiro foi alvejado com três tiros, um dos quais lhe acertou o coração. Três pistoleiros foram detidos e, sob tortura, incriminaram dois mandantes, que nunca foram presos, um dos quais por ter imunidade parlamentar. Dois outros suspeitos de encomendar o crime incluiam o pai de uma jovem que Delmiro seduzira e um amigo de Rosa e Silva, o vice-presidente que foi agredido pelo coronel.
Contudo, ficou
sempre no ar uma suspeita, a de que Delmiro Gouveia tivesse sido assassinado a
mando de seus concorrentes ingleses, mais precisamente da multinacional textil
Machine Cottons. Não havia dúvida de que o crescimento do negócio de Delmiro
incomodava esta empresa estrangeira. Os ingleses chegaram a boicotar os
comerciantes que comprassem as linhas Estrela. A Machine Cottons tinha feito
várias propostas de compra da fábrica de Pedra e sempre tendo resposta negativa
da parte do Coronel Delmiro. Contudo, nenhuma prova do envolvimento da
multinacional foi encontrada nos tiros que vitimaram o empresário. A
fábrica continuou prosperando até 1924, quando passou para os três filhos de Delmiro
Gouveia.
No governo do
presidente Washington Luís, a política liberal então adotada reduziu a taxa de
importação sobre linhas de costura. Diante da nova situação, em 1927, a fábrica
foi vendida pelos herdeiros para a firma Menezes Irmãos & Cia., a qual, em
1929, a revendeu para a...Machine Cottons, que substituiu a marca Estrela pelas
linhas da marca Corrente. Em 1930, a fábrica de Pedra foi desmantelada e as
máquinas jogadas no fundo do rio São Francisco.
Para saber
mais:
Marcovitch, Jacques. Pioneiros & Empreendedores: A Saga do Desenvolvimento no Brasil. São Paulo: Edusp e Editora Saraiva, 2007, vol. 3.
Crédito das imagens: Grandes Personagens da Nossa História. Abril Cultural, 1969, pags. 845-860.
Marcovitch, Jacques. Pioneiros & Empreendedores: A Saga do Desenvolvimento no Brasil. São Paulo: Edusp e Editora Saraiva, 2007, vol. 3.
Crédito das imagens: Grandes Personagens da Nossa História. Abril Cultural, 1969, pags. 845-860.
http://histormundi.blogspot.com.br/2012/11/coronel-delmiro-gouveia.html
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário