Em seguida
segurando o rifle e o punhal em cada mão e levantando os braços para cima, a
cabeça erguida, fitando os longes do sertão na linha de todos os seus
quadrantes, exclamou cadenciado e bem alto:
-“De hoje em diante o luto é o rifle e o punhal! Vingar até morrer!”
Desceu os braços e apontando insinuante para Antônio e Livino:
- “Ainda é tempo para uma escolha. Quem não tiver natureza para isso que siga com João, as manas e as crianças”.
Antônio e Livino responderam que estavam no mesmo propósito de vingar até morrer. Por coincidência, o sol, como que atemorizado, se agachou e se escondeu, se incrisou naquele momento, deixando imensa mancha vermelha de agouro nos céus do sertão...
Profeticamente, o padre Epifânio Moura, vigário de Água Branca, ao saber do triste acontecido, exclamou: “Esse crime vai trazer muita desgraça para o sertão.” E de fato, tão revoltante crime lançou Virgulino e seus irmãos no cangaço. Criou Lampião!
Tem muito de parecente essa dramática decisão de Virgulino com os gestos espetaculares dos grandes conquistadores da História. Desde quando Virgulino se decidia a alguma coisa, levava ele sua execução ao máximo na distinção, excelência e perfeição!
Criança, tirava enxu cru, montava carneiro dador, liderava as brincadeiras; jovem, desbravejava marruá e poldro bravio, pagava boi no escuro, confeccionava, pra não se botar reparo, artefatos de couro; agora, como cangaceiro, iria continuar fazendo o mesmo. Seria até Rei!
Sim, “triste vida” essa uma que abraçava, sem tranqüilidade, cheia de perigos à base de lutas, vinganças e ódios... Mesmo assim, seria eminente! Mesmo assim, jogado fora da “lei”, que não a quiseram fosse para ele, seria Rei! Não eram chegados os tempos das profecias? Sim, o sertão e o mundo haveriam de fazer pausa de vírgula –Virgulino - de parar de assombro diante do Rei do Cangaço!
De vez que os três irmãos mais velhos se bandaiaram para o cangaço, caberia a João a responsabilidade das irmãs e do irmão caçula. Ordenou-lhe Virgulino se retirassem em viagem logo de manhãzinha, porque – “mais cedo do que se pensa – afirmou – essa terra onde se derramou o sangue inocente, vai começar a ser ensopada com o sangue dos assassinos...”
Pungente, ao quebrar da barra, a despedida. A família ali se dividia. Os irmãos choravam de dor e amargura pela morte recente dos pais, de saudade pelos irmãozinhos cujo destino dali por diante seria incerto, e de apreensão pela sorte ignorada dos três no cangaço abraçados. Beijaram-se, abraçaram-se, longa e afetuosamente entre lágrimas e partiram separados, dando-se adeus, tomando rumos diversos...
Virgulino e seus irmãos Antônio e Livino dirigiram-se ocultamente ao cemitério de Mata Grande. Enquanto um cabra, disfarçadamente, montava sentinela no portão do cemitério, os três irmãos entraram e, de joelhos diante da sepultura do pai, rezaram debulhados em lágrimas. Levantaram-se, conservando o olhar fixo na cova. É quando, ladeado por seus irmãos, estufado de consciente altivez, o pensamento buscando nos espaços do futuro uma nova cosmovisão de vida, fortemente bateu Virgulino o punho fechado no próprio peito e exclamou:
- “Eu sou Lampião!...”
Nesse momento se acendera um novo luzeiro iluminando todo o sertão do Nordeste!
A folhinha marcava 5 de julho de 1920, terça-feira. Data significativa anunciando a realização da profecia do nascimento de Lampião por Antônio Conselheiro. E a abertura de uma nova era na história dos sertões: a Era de Lampião!
Contava ele apenas vinte anos de idade.
Virgulino nascera e fora educado para o trabalho, o bem, o amor, a poesia...
Pegara em armas, não se definindo para o cangaço, mas para substituir, com os recursos da vingança, as recusas de uma justiça falha... Perseguições irreversíveis e injustiças gritantes o despojaram de tudo. O sertão – o seu mundo – tinha se perdido para ele!... Iria, então, reconquistá-lo a ferro e fogo: durante cerca de vinte anos estenderia seu Império... Os militares se assombrariam com suas táticas de insuperável guerrilheiro; os coronéis se encolheriam nos pactos e conveniências, submissos a seu poder; os inimigos desarvorados criariam aquele tipo de valentia do desespero e do medo. Os cabras reconheceriam o seu valor de chefe, líder e guia supremo. Os pobres e necessitados seriam compreendidos, estimados e favorecidos. A justiça se exerceria com eqüidade. E o mundo inteiro ficaria abismado diante de suas legendárias gestas cangaceirescas!...
Anos mais tarde, Virgulino Ferreira da Silva, Lampião, celebraria em famosa endecha, poesia épica, de sua lavra, do que fora essa sua grande decisão:
“Por minha infelicidade
entrei nessa triste vida
Não gosto nem de contar
a minha história sentida
A desgraça enche o meu rosto
Em minha alma entra o desgosto
Meu peito é uma ferida.
Aí peguei nas armas
Para a vida defender
Perseguido, aperriado,
Vi que era feio correr,
Vi a desgraça no meu rosto
Então senti-me disposto
Matar para não morrer.
Hoje sei que sou bandido
Como todo mundo diz
Porém já fui venturoso
Passei meu tempo feliz
Quando no colo materno
Gozei o carinho terno
De quem tanto bem eu quis.”
Notas
1. O almocreve trabalha na condução de tropas de burros e
jumentos que transportam mercadorias de uma localidade a outra, por mando e
paga dos comerciantes das cidades vizinhas e donos de fazendas. São muito
freqüentes em Minas, Bahia, Maranhão, Goiás, Piauí e Mato Grosso, onde as
tropas costumam percorrer, não raro e regularmente, distâncias de trezentos
quilômetros. O almocreve é um trabalhador especializado no terreno das
atividades da vida rural. Conhece e percorre a pé todos os caminhos e
“atalhos”; conhece a primitiva veterinária para a cura de bicheiras, dos
sestros, dos estrepes e das “picaduras” que a “cangalha” e seus adornos
provocam nas longas caminhadas. Ademais, “advinha” chuvas, presença de onça e é
um rastreador tão eficiente como o vaqueiro. O seu aprendizado é longo, pois,
em geral, o almocreve se inicia muito cedo, a partir de nove ou dez anos de
idade. É nessa fase que o menino aprende a fazer cordas, peias, arrochos, nós,
cabrestos e a jogar laços.
Vida difícil e miserável a do almocreve. Os
salários que recebe são ínfimos e nada representam diante do sacrificado
trabalho que realiza e da responsabilidade que assume na condução de uma tropa
de dez ou vinte burros, carregada de mercadorias “preciosas”. É o responsável
pelos burros, pelas mercadorias e pelo prazo de entrega. E tudo isso para
ganhar uma miséria. Essa miséria que lhe acompanha a vida toda não lhe permite
as mais modestas condições de sobrevivência humanas: atravessa a sua existência
descalço e reduzido a uma calça e camisa de pano rústico. Quando repousa, o
relento é o seu leito: o fogo ou o “borralho” lhe protege do frio e das cobras.
Passa sede e fome com freqüência e quando pode, quase sempre se alimenta da
“paçoca” ou farofa com carne seca, o que lhe definha a saúde e o expõe às
avitaminoses e a inúmeras enfermidades.
2. “A Paz é Fruto da Justiça” (Pio XII).
2. “A Paz é Fruto da Justiça” (Pio XII).
Houvesse “justiça” e não haveria Lampião...
Das instituições humanas é a mais falha, quando deveria ser a mais perfeita, porque básica e fatal.
“A lei a gente espicha como quer!” – dizia um certo juiz de direito.
A justiça – sempre com letra minúscula porque maiúscula só a Divina – é jogo de esgrima: vence o advogado mais atilado. Para libertar criminoso, a que chamam de “constituinte”, não tem escrúpulo o causídico de empregar a mentira. Isto porque a falta de consciência não lhe traz remorsos.
A corrupção e a subserviência de determinados “íntegros”, escudados na intocabilidade, transformam o título das peças e processados jurídicos em farsa.
Se não se justifica a atitude de Lampião em fazer justiça com as próprias mãos, a carência de justiça, entretanto, a explica.
3. Do cancioneiro religioso nordestino.
4. É a “música de couro” popular e folclórica do sertão. Entra em todas as festas sertanejas, aliás, quase todas religiosas. Festa sem zabumba não presta. O conjunto original é formado de dois pifeiros (tocadores de pifes ou pífanos, espécie de flauta de taquara ou bambu), bombo e caixa, tudo em construção rústica e no local. Em certos conjuntos acrescentam-se harmônico (fole, sanfona ou modernamente acordeão), rebeca, triângulo.
4. É a “música de couro” popular e folclórica do sertão. Entra em todas as festas sertanejas, aliás, quase todas religiosas. Festa sem zabumba não presta. O conjunto original é formado de dois pifeiros (tocadores de pifes ou pífanos, espécie de flauta de taquara ou bambu), bombo e caixa, tudo em construção rústica e no local. Em certos conjuntos acrescentam-se harmônico (fole, sanfona ou modernamente acordeão), rebeca, triângulo.
5. Quadrilha, popular contradança de salão, típica da época de São João e São Pedro. Os vários pares se defrontam uns com os outros. O “marcador” tira as marcas da coreografia, num “francês” característico.
6. Falar de Saturnino
A profecia: “Dentro de 50 anos, haverá de surgir, no sertão, um homem que,
apesar de religioso, será cangaceiro e dará muito trabalho aos governos!...”
Antônio Conselheiro.
7. Esta profecia realizou-se literalmente – quanto ao tempo, quanto à pessoa e quanto aos fatos – em Virgulino Ferreira da Silva – Lampião – o guerrilheiro místico.
7. Esta profecia realizou-se literalmente – quanto ao tempo, quanto à pessoa e quanto aos fatos – em Virgulino Ferreira da Silva – Lampião – o guerrilheiro místico.
http://www.samamultimidia.com.br/artigo-detalhes.php?id=2382
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Caro professor MENDES: Chegamos ao final da leitura da matéria DE VIRGULINO A LAMPIÃO. Importante Matéria. O que eu não tinha conhecimento era que Virgulino escrevia poesia. Esta, pertinente ao artigo em pauta, é de profunda análise.
ResponderExcluirAbraços,
Antonio Oliveira - Serrinha-Ba.