Por Brasília
Carlos Ferreira – Organizadora, 1992
Lauro
Reginaldo da Rocha era Mossoroense
“OITAVO DIA”
Na noite anterior – Sexta-feira da paixão – graça aos ideais cristãos da polícia fascista, não fui levado à sala das torturas. Não fiquei sabendo se lucrei ou se perdi com a benevolência religiosa dos tiranos, pois o meu desejo era que terminasse logo o suplício, qualquer que fosse o fim a mim destinado: viver ou morrer.
O “quadrado” deixou de emitir os seus gritos e gemidos infernais, o silêncio emendou com o da noite, até o dia seguinte. Agora só ouço a voz que vem de dentro de mim com uma força irresistível: ÁGUA! Tenho que beber água de qualquer maneira! A sede está me deixando louco.
Torno a pensar no vaso da privada. Já fui algumas vezes até lá, com o propósito de beber água, mas o investigador que me acompanha não dá oportunidade, fica grudado como um carrapato. Tenho que ter cuidado para não despertar suspeitas, o melhor é esperar a mudança da guarda.
Os acessos de sono são, agora, intermitentes. Nos intervalos surgiu um novo fenômeno até então desconhecido: a cabeça tomba repentinamente para frente, mas de maneira rápida, numa sacudidela incontrolável. Creio que é uma consequência dos cochilos e dos sustos produzidos pelas pancadas da correia de couro sobre a mesa. As sacudidelas transformaram-se num cacoete insistente e penoso. Mas, tiraram ao vigia a oportunidade e o prazer de estalar a sua correia, pelo menos até que outro acesso de sono volte a me atacar. Só o aperto na nuca não me larga e continua a progredir. As dolorosas pulsações e a peso na nuca são duas coisas difíceis de descrever, eu nunca havia sentido nada na vida que se assemelhasse àquilo.
O doutor Mariosinho é um médico atento ao “seu serviço”, tem vindo diariamente me examinar e suas conclusões são sempre as de que eu ainda possuo reservas suficientes para continuar a suportar os suplícios. E repete os elogios às minhas qualidades de nordestino resistente, acostumado a aguentar as durezas da vida. Talvez ele pense que o nosso corpo esteja revestido de uma couraça protetora toda especial, que nos torna invulneráveis e insensíveis. O médico policial é uma espécie de batedor da “turma do esculacho”: vem sempre na frente. Depois do seu “diagnóstico”, fui levado ao “quadrado”.
Os espancadores reiniciaram o seu trabalho com certa apatia, como se realizassem uma tarefa demasiadamente corriqueira. Depois foram se reanimando, como que estimulados por um estranho e cruel sentimento que aos poucos desperta e se agita em seu íntimo. Dentro em pouco são acometidos de verdadeira exaltação.
Os carrascos dão vazão ao seu sadismo, vão se reversando na pancadaria. Com a desidratação do organismo, o meu hálito se tornara insuportável. Parecia que estava poder por dentro. Percebi que o meu cheiro incomodava até mesmo os espancadores – eles que estavam habituados a lidar com a podridão e que pareciam sentir-se bem em revolvê-la. Passei a usar o meu mau hálito como auto-defesa, à moda maritacaca: disfarçadamente jogava o bafo na cara do algoz mais próximo. Ele recuava tonto. É tudo que posso fazer com vocês no momento, dizia comigo mesmo.
Em algumas ocasiões os “tiras” davam mostras de cansaço, faziam uma pausa, e o silêncio reinava por alguns minutos. Surgia, então, da sala vizinha – de onde comandava as operações – o detetive Veras e vinha incentivar seu sequazes: “Baixa o pau nesse f.d.p.! Ele está bancando o “queixo duro”, mas aqui não tem disso não. Ou ele fala ou vai ficar mudo pra sempre”.
A voz de comando era obedecida incontinente, os monstros caiam sobre mim feitos um furacão; socos, pontapés nas canelas, membros retorcidos, o mundo girava, o terreno fugia sob meus pés. O meu corpo transformara-se numa carcaça; mas o massacre prosseguia.
O que mais me revoltava eram os apelos à deleção: “Fala Bangu! Fala e te daremos água, cessaremos as torturas! “Eu pensava, Ah”! Se eu ao menos pudesse dizer alguns palavrões! Nem isso eu podia dizer, para desabafar. Eu tinha que “engolir” os insultos calados, minha única resposta era o silêncio. Apenas o silêncio.
Na oitava noite de torturas. Paguei o dobro pelo “descanso da Sexta-feira da Paixão.
CONTINUA...
Na noite anterior – Sexta-feira da paixão – graça aos ideais cristãos da polícia fascista, não fui levado à sala das torturas. Não fiquei sabendo se lucrei ou se perdi com a benevolência religiosa dos tiranos, pois o meu desejo era que terminasse logo o suplício, qualquer que fosse o fim a mim destinado: viver ou morrer.
O “quadrado” deixou de emitir os seus gritos e gemidos infernais, o silêncio emendou com o da noite, até o dia seguinte. Agora só ouço a voz que vem de dentro de mim com uma força irresistível: ÁGUA! Tenho que beber água de qualquer maneira! A sede está me deixando louco.
Torno a pensar no vaso da privada. Já fui algumas vezes até lá, com o propósito de beber água, mas o investigador que me acompanha não dá oportunidade, fica grudado como um carrapato. Tenho que ter cuidado para não despertar suspeitas, o melhor é esperar a mudança da guarda.
Os acessos de sono são, agora, intermitentes. Nos intervalos surgiu um novo fenômeno até então desconhecido: a cabeça tomba repentinamente para frente, mas de maneira rápida, numa sacudidela incontrolável. Creio que é uma consequência dos cochilos e dos sustos produzidos pelas pancadas da correia de couro sobre a mesa. As sacudidelas transformaram-se num cacoete insistente e penoso. Mas, tiraram ao vigia a oportunidade e o prazer de estalar a sua correia, pelo menos até que outro acesso de sono volte a me atacar. Só o aperto na nuca não me larga e continua a progredir. As dolorosas pulsações e a peso na nuca são duas coisas difíceis de descrever, eu nunca havia sentido nada na vida que se assemelhasse àquilo.
O doutor Mariosinho é um médico atento ao “seu serviço”, tem vindo diariamente me examinar e suas conclusões são sempre as de que eu ainda possuo reservas suficientes para continuar a suportar os suplícios. E repete os elogios às minhas qualidades de nordestino resistente, acostumado a aguentar as durezas da vida. Talvez ele pense que o nosso corpo esteja revestido de uma couraça protetora toda especial, que nos torna invulneráveis e insensíveis. O médico policial é uma espécie de batedor da “turma do esculacho”: vem sempre na frente. Depois do seu “diagnóstico”, fui levado ao “quadrado”.
Os espancadores reiniciaram o seu trabalho com certa apatia, como se realizassem uma tarefa demasiadamente corriqueira. Depois foram se reanimando, como que estimulados por um estranho e cruel sentimento que aos poucos desperta e se agita em seu íntimo. Dentro em pouco são acometidos de verdadeira exaltação.
Os carrascos dão vazão ao seu sadismo, vão se reversando na pancadaria. Com a desidratação do organismo, o meu hálito se tornara insuportável. Parecia que estava poder por dentro. Percebi que o meu cheiro incomodava até mesmo os espancadores – eles que estavam habituados a lidar com a podridão e que pareciam sentir-se bem em revolvê-la. Passei a usar o meu mau hálito como auto-defesa, à moda maritacaca: disfarçadamente jogava o bafo na cara do algoz mais próximo. Ele recuava tonto. É tudo que posso fazer com vocês no momento, dizia comigo mesmo.
Em algumas ocasiões os “tiras” davam mostras de cansaço, faziam uma pausa, e o silêncio reinava por alguns minutos. Surgia, então, da sala vizinha – de onde comandava as operações – o detetive Veras e vinha incentivar seu sequazes: “Baixa o pau nesse f.d.p.! Ele está bancando o “queixo duro”, mas aqui não tem disso não. Ou ele fala ou vai ficar mudo pra sempre”.
A voz de comando era obedecida incontinente, os monstros caiam sobre mim feitos um furacão; socos, pontapés nas canelas, membros retorcidos, o mundo girava, o terreno fugia sob meus pés. O meu corpo transformara-se numa carcaça; mas o massacre prosseguia.
O que mais me revoltava eram os apelos à deleção: “Fala Bangu! Fala e te daremos água, cessaremos as torturas! “Eu pensava, Ah”! Se eu ao menos pudesse dizer alguns palavrões! Nem isso eu podia dizer, para desabafar. Eu tinha que “engolir” os insultos calados, minha única resposta era o silêncio. Apenas o silêncio.
Na oitava noite de torturas. Paguei o dobro pelo “descanso da Sexta-feira da Paixão.
CONTINUA...
http://www.dhnet.org.br/memoria/1935/livros/bangu/04.htm#primeiro
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