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sexta-feira, 20 de junho de 2014

PEDAÇO DE ASA

Por Rangel Alves da Costa*

Ando meio entristecido. Só não digo que chorei pra ninguém ficar sabendo que sou tempestade de vez em quando. Mas não adianta nada esconder, pois todos percebem no meu olhar essa paisagem angustiada e melancólica.

Zezé, aquele mesmo molecote de “Meu Pé de Laranja Lima” disse um dia, lá no finalzinho do romance de José Mauro de Vasconcelos, que estava triste porque já havia se passado três dias que cortaram seu melhor amigo, o pé de laranja lima. E tenho de dizer o mesmo.

Digo o mesmo, mas não porque cortaram pelo tronco uma árvore companheira, e sim porque mexeram na minha asa, tocaram perigosamente na minha asa, cortaram um pedaço de minha asa. Só me resta agora um pedaço de asa. E logo agora que precisava fazer tanto com ela.

Não sou anjo, nunca fui nem jamais serei. Também não nasci com apêndices de penas presos às costas. Mas tenho asas desde que ainda meninote percebi - ou apenas imaginei - que podia voar. Bastava desejar realizar alguma coisa que minhas asas ficavam prontas para alçar voo.

Na verdade, nunca saí do chão com as asas que possuía. A certeza de sua existência estava na minha capacidade de levantar voo a qualquer momento que desejasse, eis que numa idade onde havia certeza que nada podia impedir a realização dos sonhos e planos. Eis uma idade que permite não somente asas como voos instantâneos em qualquer direção.


Ademais, havia sempre a noção de estar imune à tristeza, às angústias e aborrecimentos da vida, vez que sempre capaz de transformar tudo em alegria e felicidade. Assim, imaginava que bastava querer realizar algo grandioso e tudo seria possível. E assim porque tinha asas, porque podia voar a qualquer momento. E assim porque com as nuvens e os espaços ao alcance dos desejos e sonhos.

Aos poucos, contudo, com o avanço dos anos e o distanciamento cada vez maior da infância, acabei me sentindo cada vez mais rente ao chão, experimentando suas asperezas e já pisando nos primeiros espinhos. A partir daí, as asas que anteriormente pareciam querer esvoaçar ao sabor de qualquer vento, já nem eram mais percebidas com seu poder de me levar ao ar num simples querer.

Com o tempo, as asas dos sonhos, das miragens, viagens, idílios, fantasias, desejos, ludismos, e de tudo aquilo tão próprio das liberdades infinitas da infância, vão perdendo as forças, as penas, as hastes de sustentação ao imaginário, e tantas vezes terminam sumindo completamente. Mas as minhas continuavam me acompanhando, e assim porque jamais deixei de sonhar, de pensar muito além do presente, de fazer grandes voos no pensamento.

As asas continuavam comigo, não haveria como duvidar. O adulto jamais se separou da criança completamente, o homem jamais abdicou de também viver a doce e terna infantilidade de vez em quando. Impossível viver sem rebuscar do passado aquelas ilimitadas fronteiras da meninice.

Contudo, diante das responsabilidades surgidas, eis que as asas foram se recolhendo por conta própria, encurtando-se no imaginário, e só reaparecendo quando sinto a necessidade de sair da mesmice da vida, da normalidade angustiante, e me imaginar sendo menino novamente. Mas não mais, e infelizmente, com a força viva, alegre, bonita, contagiante, de outros tempos.

Agora só um pedaço de asa. Por mais que ela ainda continue completa em mim, sei que não posso mais dispor nada além de um pedaço de asa. Talvez apenas um pouco de plumas e sem a força suficiente para ir além do horizonte do meu olhar. Eis que o tempo, a idade, a força dos anos, pesam demais sobre o ser e acabam impedindo a leveza da completa libertação, acabam dificultando a viagem dos mesmos sonhos de antes.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com  

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