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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

“O GLOBO”- 28/11/1958 - PARTE XX

Material do acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho 

COMO SE FORJA UM CANGACEIRO

A LEI DO NORDESTE

Não Melhorou a Vida no Rio de Janeiro – A educação Nordestina é Muito diferente – Dois Exemplos do Que é o Nordeste – Difícil Adaptar-se ao Modo de Vida Carioca

MUITA gente desejava escrever a minha biografia e me oferecia vantagens, mas eu nunca tive vontade de conta-la, até que um vespertino carioca me fez uma proposta interessante e eu resolvi embarcar para o Rio. Um repórter foi encarregado de escrever minhas aventuras, e eu ganhei alguns contos de réis. Se as reportagens não agradaram, não foi apenas culpa minha. Eu poderia ter falado mais do que falei, mas só me perguntavam coisas sobre Lampião, e sempre perguntas tolas, sobre fatos de todos conhecidos. Não me deixaram falar livremente, e eu andava ainda com receio de ter que voltar para a cadeia. Não sei por que, mas até agora ainda não me sinto muito seguro. Por mais que me digam que eu não posso ser punido por coisas que fiz dos onze aos quatorze anos, não me tranquilizo, pois a verdade é que já passei vinte anos atrás das grades...

PROPOSTAS TORTUOSAS

EU pensava que no Rio minha vida ia melhorar, mas tal não se deu. Sempre desperto curiosidade, mas, no fundo, ninguém tem vontade de me ajudar. É bem verdade que não sei ler, mas sei fazer tanta coisa... Infelizmente, para quase todos a minha especialidade ainda é matar. Não me faltaram propostas para ser guarda-costas de gente graúda e andar armado. Conheço bem essas coisas, pois isso acaba sempre em crime e, enquanto os graúdos ficam soltos, os miúdos vão para a cadeia.
Não sou homem dado a crimes, e a prova tem sido esses anos de liberdade que tenho gozado. Saibam os leitores que oportunidades não me têm faltado para fazer umas asneiras, mas a minha natureza é pacata, apesar do meu gênio não ser dos melhores, quando provocado. Eu só me tornei cangaceiro por uma fatalidade e creio que, conforme já narrei, qualquer garoto naquelas condições teria ingressado no crime.

O NORDESTE É DIFERENTE

A EDUCAÇÃO nordestina é diferente da que se adquire nas grandes cidades. Pouco depois de me libertarem, um homem assassinou um de meus irmãos no Nordeste, onde minha família vive. O criminoso não foi condenado, tal a razão que tinha. Pouco depois cheguei à cidade em que se dera o crime, e estive frente a frente com o homem que matara meu irmão. Ele estava assustado, mas eu logo o tranquilizei, pois me informaram meus outros irmãos como as coisas se tinham passado. A luta foi leal e o rapaz matou para não ser morto, o que, para um irmão, pode ser doloroso, mas era preciso ser justo, e eu até agora me orgulho de assim ter procedido.

Já o mesmo não se passou com outro crime em minha família, este bem recente. Uma de minhas irmãs pôs-se a namorar, no interior de Sergipe, um rapaz que não estava à altura de se casar com ela, que era menina decente e muito prendada. Um de meus irmãos compreendeu a situação e tratou de desfazer o namoro, que já estava se tornando sério. Energicamente interveio, e minha irmã, obediente, aceitou a decisão e deu o seu caso amoroso por terminado.

O rapaz, porém, não se conformou, e, enciumado, armou-se e matou no mesmo instante meu irmão e minha irmã! Quando me escreveram contando o caso, fiquei alucinado, pois o assassino estava vivo e solto. As regras morais de um nordestino não admitem isso. Quem procede assim tem que morrer, segundo aprendi desde menino. Que confirmem os meus conterrâneos se isso não é norma para nós. O crime foi brutal e covarde. O assassino estava solto e gabava-se do que tinha feito. Além do mais, o que me contrariava é que meus irmãos são pacatos e eu sabia que nenhum eles teria coragem para vingar os dois mortos. Teria que ser eu o vingador!

É DURO VIVER ASSIM...

POR outro lado, a ideia de voltar a ser assassino me apavorava, agora que tenho mulher e quatro filhos pequenos, sendo que, na ocasião, o quarto estava para nascer. Este infeliz iria conhecer o pai na cadeia! Sim, porque o assassino de meus irmãos estava solto, mas se Volta-Seca o matasse, seria preso e condenado! Todavia, era preciso eliminar o assassino!

Foi durante esse torturante dilema que um de meus irmãos, o mais pacato de todos, matou o assassino. Esse meu irmão devia ter pensado muito em mim, na minha família, na minha situação delicada. Não tenho dúvida de que pensou, pois, antes de liquidar o rapaz, mandou-me um telegrama que dizia: “Não precisa mais vir, Antônio. Matei o assassino de nossos irmãos”.

Eu nem cheguei a dizer que ia ajustar contas com o rapaz, mas eles sabiam que “essa era a minha obrigação”... E só Deus sabe como sofri para tomar uma resolução que, afinal, nem foi tomada.

Tudo depende da forma como se é educado. Onde eu nasci, um soco na cara, ou mesmo uma ofensa brincalhona à mãe de alguém, é caso de morte. Nas cidades tudo é suportado com esportividade e eu, aos poucos, vou me acostumando com a vida de cá. Mas que é duro viver assim, depois de ter aprendido a viver de outra forma, lá isso não tenha dúvida que é...

CONTINUA...

Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa Sobrinho

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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