Por Aurélio Buarque de Holanda
De latas de
querosene mãos negras de um soldado retiram cabeças humanas. O espetáculo é de
arrepiar. Mas a multidão, inquieta, sôfrega, num delírio paredes-meias com a
inconsciência, procura apenas alimento à curiosidade. O indivíduo se anula. Um
desejo único, um único pensamento, impulsa o bando autômato. Não há lugar para
a reflexão. Naquele meio deve de haver almas sensíveis, espíritos profundamente
religiosos, que a ânsia de contemplar a cena macabra leva, entretanto, a
esquecer que essas cabeças de gente repousam, deformadas e fétidas, nos degraus
da calçada de uma igreja.
Cinco e meia
da tarde. Baixa um crepúsculo temporão sobre Santana do Ipanema, e a lua
crescente, acompanhada da primeira estrela, surge, como espectador das
torrinhas, para testemunhar o episódio: a ruidosa agitação de massas que se
comprimem, se espremem, quase se trituram, ofegando, suando, praguejando, para
obter localidade cômica, próximo do palco.
Aurélio
Buarque de Holanda
Desenrola-se o
drama. O trágico de confunde com o grotesco. Quase nos espanta que não haja
palmas. Em todo caso, a satisfação da assistência traduz-se por alguns risos
mal abafados e comentários algo picante, em face do grotesco. O trágico, porém
não arranca lágrimas. Os lenços são levados ao nariz: nenhum aos olhos. A
multidão agita-se, freme, sofre, goza, delira. E as cabeças vão saindo,
fétidas, deformadas, das latas de querosene - as urnas funerárias -, onde o
álcool e o sal as conservam, e conservam mal. Saem suspensas pelos cabelos,
que, de enormes, nem sempre permitem, ao primeiro relance, distinguir bem os
sexos. Lampião, Maria Bonita, Enedina, Luiz Pedro, Quinta-Feira, Cajarana,
Diferente, Caixa-de-Fósforo, Elétrico Mergulhão...
- As cabeças!
- Quero ver as
cabeças!
Há uma
desnorteante espontaneidade nessas manifestações.
- As cabeças.
Não falam de outra coisa. Nada mais interessa. As cabeças.
- Quem é
Lampião?
Virgulino
ocupa um degrau, ao lado de Maria Bonita. Sempre juntos, os dois.
- Aquela é que
é Maria Bonita? Não vejo beleza...
O soldado
exibe as cabeças, todas, apresenta-as ao público insaciável, por vezes uma em
cada mão. Incrível expressão de indiferença nessa fisionomia parada. Os heróis
de tantas sinistras façanhas agora desempenham, sem protesto, o papel de S.
João Batista...
Sujeitos mais
afastados reclamam:
- Suspende
mais! Não estou vendo, não!
- Tire esse
chapéu, meu senhor! - grita irritada uma mulher.
O homem
atende.
- Agora, sim.
A pálpebra
direita de Lampião é levantada, e o olho cego aparece, como elemento de prova.
Velhos
conhecidos do cangaceiro fitam-lhe na cabeça olhos arregalados, num esforço de
comprovação de quem quer ver para crer.
- É ele mesmo.
Só acredito porque estou vendo.
Houve-se de
vez em quando:
- Mataram
Lampião... Parece mentira!
Virgulino
Ferreira, o rei do cangaço, o "interventor do sertão", o chefe
supremo dos fora-da-lei, o cabra invencível, de corpo fechado, conhecedor de
orações fortes, vitorioso em tantos recontros, - Virgulino Ferreira, o Capitão
Lampião, não pode morrer.
E irrompe de
várias bocas:
- Parece
Mentira!
Cabeças nas
escadarias da Prefeitura de Piranhas
No entanto é
Lampião que se acha ali, ao lado de Maria Bonita, junto de companheiros seus,
unidos todos, numa solidariedade que ultrapassou as fronteiras da vida. É
Lampião, microcéfalo, barba rala, e semblante quase doce, que parece haver se
transformado para uma reconciliação póstuma com as populações que vivo
flagelara.
Fragmentos de
ramos, caídos pelas estradas, durante a viagem, a caminhão, entre Piranhas e
Santana do Ipanema, enfeitam melancolicamente os cabelos de alguns desses
atores mudos. Modestas coroas mortuárias oferecidas pela natureza àqueles cuja
existência decorreu quase toda em contato com os vegetais - escondendo-se nas
moitas, varando caatingas, repousando à sombra dos juazeiros, matando a sede
nos frutos rubros dos mandacarus.
Fotógrafos -
profissionais e amadores - batem chapas, apressados, do povo, e dos pedaços
humanos expostos na feira horrenda. Feira que , por sinal, começou ao terminar
a outra, onde havia a carne-de-sol, o requeijão de três mil-reis o quilo, com o
leite revendo, a boa manteiga de quatro mil reis, as pinhas doces, abrindo-se
de maduras, a dois mil-reis o cento, e as alpercatas sertanejas, de vários
tipos e vários preços.
Ao olho frio
das codaques interessa menos a multidão viva do que os restos mortais em exposição.
E, entre estes, os do casal Lampião e Maria Bonita são os mais insistentemente
forçados. Sobretudo o primeiro.
O espetáculo é
inédito: cumpre eternizá-lo, em flagrantes expressivos. Um dos repórteres posa
espetacularmente para o retratista, segurando pelas l=melenas desgrenhadas os
restos de Lampião. Original. Um furo para "A Noite Ilustrada".
Lembro-me
então do comentário que ouço desde as primeiras horas deste sábado festivo:
-"Agora todo o mundo quer ver Lampião, quer tirar retrato dele, quer pegar
na cabeça...Agora..." Há, com efeito, indivíduos que desejam tocar,
que quase cheiram a cabeça, como ansiosos de confirmação, por outros sentidos,
da realidade oferecida pela vista.
Desce a noite,
imperceptível. A afluência é cada vez maior. Pessoas do interior do município e
de vários municípios próximos, de Alagoas e Pernambuco, esperavam desde
sexta-feira esses momentos de vibração. Os dois hoteis da cidade, literalmente
entupidos Cheias as residências particulares - do juiz de direito, do prefeito,
do promotor, de amigos dessas autoridades. Para muitos, o meio da rua.
Entre a massa
rumorosa e densa não consigo descobrir uma só fisionomia que se contraia de
horror, boca donde saía uma expressão, ainda que vaga, de espanto. Nada.
Mocinhas franzinas, romanescas, acostumadas talvez a ensopar lenços com as
desgraças dos romances cor-de-rosas, assistem à cena com uma calma de cirurgião
calejado no ofício. Crianças erguidas nos braços maternos espicham o pescoço
buscando romper a onda de cabeças vivas e deliciar os olhos castos na
contemplação das cabeças mortas.
E as mães
apontam:
- É ali, meu
filho. Está vendo?
Alguns trocam
impressões;
- Eu pensava
que ficasse nervoso. Mas é tolice. Não tem que ver uma porção de máscaras.
- É isso
mesmo.
Cabeças
de Lampião e Maria Bonita
Os últimos
foguetes estrugem nos ares. Há discursos. Falam militares, inclusive o chefe da
tropa vitoriosa em Angico. Evoca-se a dura vida das caatingas, em rápidas e
rudes pinceladas. O deserto. As noites ermas, escuras, que os soldados às vezes
iluminam e povoam com as histórias de amor por eles sonhadas - apenas
sonhadas... Os passos cautelosos, mal seguros sobre os garranchos, para evitar
denunciadores estalidos, quando há perigo iminente. Marchas batidas sob o sol
de estio, em meio da caatinga enfezada e resseca, e da outra vegetação, mais
escassa, que não raro brota da pedra e forma ilhotas verdes no pardo reinante:
o mandacaru, a coroa-de-frade, a macambira, a palma, o rabo-de-bugio, facheiro,
com o seu estranho feitio de candelabro. A contínua expectativa de ataque
tirando o sono, aguçando os sentidos.
O sino toca a
ave-maria. Dilui-se-lhe a voz no sussurro espesso da multidão curiosa, nos
acentos fortes do orador, que, terminando, refere a vitória contra Lampião,
irrecusavelmente comprovada pelas cabeças ali expostas.
Os braços da
cruz da igrejinha recortam-se, negros, na claridade tíbia do luar; e na aragem
que difunde as últimas vibrações morrediças do sino vem um cheiro mais ativo da
decomposição dos restos humanos.
Todos vivem
agora, como desde o começo do dia, para o prazer do espetáculo. As cabeças!
A noite
fecha-se. Em horas assim, seriam menos ferozes os pensamentos de Lampião. O seu
olhar se voltaria enternecido para Maria Bonita. Que será feito dos corpos
dissociados dessas cabeças? O rosto de Maria Bonita, esbranquiçado a trechos
por lhe haver caído a epiderme, está sinistro. Onde andará o corpo da
amada de Lampião? A cara arrepiadora, que mal entrevejo à luz pobre do crescente,
não me responde nada. E Lampião? Sereno, grave, trágico. O olho cego,
velado pela pálpebra, fita-me. (1938).
Postado no
Grupo Lampião Cangaço e Nordeste
(*) Autor do
mais importante dicionário da língua portuguesa publicado no Brasil neste
século. Texto do livro esgotado "O chapéu de meu pai, editora Brasília,
1974.
Fonte: Diário
Oficial -Estado de Pernambuco-Ano IX - Julho de 1995
Material
cedido pelo escritor, poeta e pesquisador do cangaço: Kydelmir
Dantas
http://cariricangaco.blogspot.com.br/2015/12/feira-de-cabecas-por-aurelio-buarque-de.html
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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