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sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

OS DOIS CIRCOS

Por Rangel Alves da Costa*

Era um circo só, o Gran Circo da Lua, mas com duas realidades diferentes, mas muitos diferentes mesmo. Uma no espetáculo, na apresentação noturna debaixo da lona grande, e outra após o espetáculo e na vida comum daqueles mambembes. Era um circo pequeno, com poucas atrações, mas sempre uma festa incomum na cidade interiorana. O palhaço Alegria, o atirador de facas, duas dançarinas acima do peso, o malabarista, o cuspidor de fogo, a mulher barbada e as atrações principais de fim de semana: o globo da morte e o homem invisível. “Respeitável público, o Gran Circo da Lua lhes apresenta as maiores maravilhas do mundo...”, assim começava o espetáculo.

Sua chegada em qualquer cidade era um espetáculo à parte. Esperado e desejado pela população, que já sabia de sua chegada pelo velho carro com alto-falante em cima, anunciando para os próximos dias a presença do genial, do maravilhoso, do maior e mais fantástico circo do mundo, acabava sendo a novidade tão aguardada por todos, principalmente a criançada. E na data marcada, quando a meninada se alvoroçava correndo de canto a outro, então era a certeza da presença na cidade do maior espetáculo da terra. Portas e janelas se abriam, amigos mudavam as conversas debaixo dos pés de pau, toda a cidadezinha acolhia festivamente o comboio: dois carros velhos à frente e outros dois mais velhos ainda, estes carregando baús, caixas e sacolas, além de um caminhão desengonçado portando a maior parte da estrutura circense.

A cidade inteira se tomava de grande expectativa para a sua estreia. Nos afastados da cidade, nas proximidades do campinho, a acanhada estrutura ia sendo montada. Primeiro o cercado para ninguém entrar sem pagar, ao centro as vigas para as lonas e a cobertura, e depois quatro ou cinco degraus de arquibancadas de uma madeira já envelhecida demais para não apresentar perigo. E por último o camarim, o palco e o picadeiro, além de outras utilidades. A meninada não sossegava enquanto não via o circo em pé, a todo instante estava ali uma dúzia perguntando quando ia ter espetáculo. Mas pessoas de mais idade também circulavam pelos arredores numa vontade danada de avistar tudo pronto para a grande estreia.


Quando o carro de som passou anunciando o dia estreia, então não se comentava mais sobre outra coisa na cidade. Moça se enchendo de bobes, mulheres remendando roupas, homens engraxando os sapatos, a meninada se virando como podia para arranjar os trocados para a entrada. Meia entrada. Até os doze anos só meia entrada. E já chegando o entardecer, os alto falantes do circo foram ligados e os ecos musicais se espalharam pelos arredores. Não havia mais como duvidar da estreia tão esperada. E quando chegou sete da noite, horário marcado para o início, então a plateia silenciava por não poder gritar de tanta ansiedade.

“Respeitável Público, o Gran Circo da Lua, o maior espetáculo da terra, tem a honra de lhes convidar a uma viagem ao mágico, ao fantástico, ao inacreditável. E com vocês, diretamente de Las Vegas, as mais belas dançarinas...”. Entraram as duas rumbeiras rechonchudas, dando início ao grande espetáculo. Contudo, pobres atrações, remendos nas roupas, nas lantejoulas, nos brilhos e nos enfeites. O palhaço quase tombando de bêbado e um atirador de facas que, por ciúmes, quase acerta no coração da galega. Da soma de tudo, somente a pipoca e o algodão receberam os devidos aplausos de que os experimentou.

Ao fim do espetáculo, a vida. Preocupado pela bilheteria insuficiente para cobrir os custos da chegada até ali, o dono do circo logo avisou que dias difíceis os aguardava. Como, aliás, são todos os dias nos pequenos circos interioranos, que, por teimosia e amor à arte, continuavam erguendo lonas e chamando o povo às suas poucas e tristes atrações. Mas, enfim, adormeceram para a luz do sol do amanhecer. E a manhã os encontrou entristecidos, preocupados, desesperançados. No café da manhã, todos se virassem no pão e na manteiga. No almoço uma macarronada sem molho para todos. Nada de carne ou refrigerante, apenas ki-suco.

O palhaço, sumido de sua tenda desde o alvorecer, mais tarde retornou cheirando a aguardente barata. E novamente se recolheu entristecido, choroso, para novamente reescrever uma carta que nunca terminava. As lágrimas sempre molhavam o papel. Respeitável público, assim o grande espetáculo da vida, o maior espetáculo do mundo. Dois circos num só. O da ilusão e o da realidade.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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