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domingo, 8 de maio de 2016

“O ESTADO DE S. PAULO” - 10/06/1956 CANGACEIRISMO


Declarações do diretor do Instituto Nina Rodrigues – A readaptação dos companheiros de Lampião - Deslocada para a zona cacaueira a sede do cangaço

A convite da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, veio a esta Capital, a fim de integrar a banca examinadora do concurso para provimento da cadeira de Medicina Legal daquele estabelecimento, o professor Estácio de Lima, diretor do Instituto Nina Rodrigues e catedrático de Medicina Legal das Faculdades de Direito e de Medicina da Universidade da Bahia.

Ontem, o ilustre professor concedeu entrevista exclusiva a esta folha, em que abordou o problema do cangaceirismo e expôs, de maneira sucinta, os estudos e pesquisas que se desenvolvem, no momento, no Instituto Nina Rodrigues, pois Oscar Freire, encarregado da sua organização, fora assistente no instituto baiano. Entretanto, atualmente as atividades do instituto de Salvador são mais amplas. Assim, no terreno da Medicina Legal, o estudo e a perícia ali estão intimamente associados, pois os assistentes do catedrático de Medicina Legal das Faculdades de Medicina e de Direito também são os médicos-legistas do Estado, o que não ocorre em São Paulo, onde coexistem o Instituto Oscar Freire e o Serviço Médico-Legal do Estado, este encaminhando àquele, para perícia, somente os casos mais raros, que demandem estudo. Em consequência, as atividades médico-legais, do ponto de vista do ensino prático, são mais amplas no Instituto Nina Rodrigues do que no Oscar Freire. Segundo o professor Estácio de Lima, o sistema de realizarem-se no Nina Rodrigues todas as perícias tem dado bons resultados, não se tendo verificado, outrossim, até agora, um único caso de quebra do sigilo profissional, por parte dos estudantes, que estão a par de todos os casos de natureza médico-legal ocorridos na capital baiana.

Por outro lado, mantendo a tradição do cientista cujo nome ostenta, o Instituto Nina Rodrigues continua sendo importante centro de estudos de criminologia, de etnologia e de folclore.

No campo da criminologia, preocupam-se especialmente o professor Estácio de Lima e seus assistentes, com o problema do cangaceirismo; no da etnologia, com o estudo do tipo de nordestino, e no do folclore, com o fenômeno da sobrevivência das religiões afro-brasileiras, sobretudo, com os candomblés de origem sudanesa.

CANGACEIRISMO

Interessantes observações fez o professor baiano acerca do cangaceirismo, durante a entrevista discorrendo, com erudição e apoiado em fatos e dados colhidos pessoalmente, sobre esse problema.

Ressaltou, inicialmente, estar absolutamente provado que o cangaceirismo é um problema de ordem social e não policial, donde é forçoso concluir-se que não se deve tentar resolvê-lo pela repressão policio-judicial. Removidas as causas de ordem mesológico-social resolve-se o problema.

A experiência demonstrou que todos os cangaceiros são indivíduos readaptáveis e, de fato, readaptam-se facilmente à vida social. Segundo o professor Estácio de Lima, foram recuperados e reintegrados na comunhão social todos os antigos companheiros de Lampião, verificando-se entre eles somente um caso de reincidência: antigo cangaceiro, que cumpria pena em uma prisão de Pernambuco, ao ser esbofeteado, revidou, matando seu agressor. Neste caso, ainda, se não se tratar de legítima defesa, circunstância que exclui a criminalidade, poder-se-ia falar na atenuante da violenta emoção provocada por ato injusto da vítima.

Membro do Conselho Penitenciário da Bahia, o professor Estácio de Lima ali tem como seu auxiliar, entre outros, Ângelo Roque, que, sob o nome de guerra de “Labareda”, era um dos mais famosos cangaceiros do bando de Lampião. Gozando de liberdade condicional, atualmente, Ângelo Roque reintegrou-se perfeitamente na sociedade, de mesma forma que seus antigos companheiros.

Segundo o professor Estácio de Lima, muitos destes cangaceiros do bando de Lampião são hoje pacatos motoristas profissionais, que conduzem, principalmente, os caminhões conhecidos por “paus de arara” e que trafegam entre São Paulo e os Estados do Nordeste.

Outro fato interessante é que entre eles subsiste a solidariedade do grupo e os membros do bando ainda continuam a respeitar seus antigos chefes. Como se sabe, o bando de Lampião dividia-se em pequenos subgrupos, de 10 a 12 homens, cada um com seu chefe. Jamais operavam juntos e somente no célebre ataque a Mossoró se empenhou o bando todo, junto. Divididos em pequenos grupos, os cangaceiros não só se locomoviam mais rapidamente como também podiam defender-se melhor, obrigando as forças policiais a se subdividirem também. Pois, ainda hoje, os antigos subordinados de “Labareda” não deixam de prestar-lhe conta de seus atos, apresentando-se a ele regularmente e dando notícias dos outros companheiros, porventura ausentes. Só que não o chamam mais pelo apelido; “Labareda” passou a ser “seu” Roque, o que é um indício de sua reintegração na vida social.

Em sua origem, o cangaceirismo é resultante de fatores de ordem mesológico-social. Irritados com a injustiça social, que se pode apresentar sob vários aspectos, e agindo de acordo com o punitivo código de honra do sertão, o sertanejo comete seu primeiro crime. Trata-se, então, de um criminoso ocasional. Perseguido, abriga-se à sombra dos “coronéis” e, aí, deixa de ser um criminoso ocasional, para entrar no grupo dos habituais. Desta à fase do bando armado e organizado, isto é, à fase do cangaço, o passo é pequeno.

Fator de importância fundamental na gênese do cangaceirismo nordestino, é, também, o econômico. Impotente para se fixar no meio hostil, uma vez que as melhores terras e as aguadas estão na mão dos grandes proprietários, o sertanejo é obrigado a emigrar, o que contribui ou determina, inicialmente, seu desajustamento. O arame farpado é, segundo as palavras do professor Estácio de Lima, um dos grandes inimigos do sertanejo, impedindo a sua fixação no meio em que nasceu.

DESLOCAÇÃO DA ZONA DO CANGAÇO

Prosseguindo, disse-nos o professor Estácio de Lima que, atualmente, a sede do cangaço se deslocou das regiões do Nordeste para a zona do cacau, espraiando-se na fronteira entre os Estados de Minas Gerais e Bahia. Aliás, é sabido que os cangaceiros, como medida de defesa, jamais se internam profundamente em território de um Estado, agindo sempre na periferia, ao longo das fronteiras, para escapar à ação das polícias militares estaduais, que não podem ir além dos limites de sua circunscrição.

Batidos pela seca, impotentes para se fixar na terra natal, os nordestinos procuram o sul, São Paulo sobretudo. Porém, muitos e muitos deixam a viagem em meio, localizando-se na zona cacaueira. Pelas suas condições, esta é uma zona favorável ao desenvolvimento do cangaceirismo, assemelhando-se, na opinião do professor Estácio de Lima, às zonas pioneiras do oeste norte-americano, ao tempo de seu devassamento. Os nordestinos, de passagem, recebem propostas interessantes dos donos das terras do cacau. Com seu trabalho, valorizam o solo, plantam cacau, para, afinal, serem despejados, sumariamente. Nesse conflito de interesses nasce o cangaceiro. Posteriormente, então, intervém o “coronel” e o processo caminha até o estágio final, do bando armado, do cangaço. Evidentemente, é esse um esquema simplista, mas que, a grosso modo, serve para compreensão do fenômeno.

Acentuou o professor Estácio de Lima a necessidade de os poderes públicos volverem sua atenção para os bandos de cangaceiros que se estão definindo na zona cacaueira, para resolver desde logo o problema, mas não em termos de repressão policial, mas sim levando em conta os fatores de ordem social, econômica e mesológica que estão na sua origem.

TIPOS ÉTNICOS BRASILEIROS

Os estudos etnológicos constituem uma das preocupações dos professores, assistentes e alunos do Instituto Nina Rodrigues. De acordo com o professor Estácio de Lima estão se definindo, no Brasil, cinco grupos étnicos, perfeitamente distintos: a) o amazônico; b) o gaúcho; c) o caipira mineiro; d) o paulista; e) o nordestino. Quanto ao paulista deve dizer-se que resulta de uma fusão de numerosos grupos estrangeiros e nacionais. A propósito, disse o professor baiano que São Paulo é a maior forja etnológica da América do Sul.

Desses cinco grupos apontados, o diretor do Instituto Nina Rodrigues julga ser o nordestino o mais definido, do ponto de vista étnico.

Para o professor Estácio de Lima outrossim, continua verdadeira a afirmação de Euclides da Cunha: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. De fato – disse – só dois animais suportam e conseguem sobreviver às longas caminhadas na zona semiárida do polígono das secas: o sertanejo e a cobra cascavel. E a prova de que o sertanejo é um forte é dada, segundo o professor Estácio, pelo biotipo do cangaceiro. Não se conhecem cangaceiros do tipo chamado pícnico, na classificação de Kretschmer. Todos são longilíneos, tipos secos e enxutos, músculos apenas, perfeitamente adaptados ao meio.

Para o professor de Medicina Legal da Bahia exageram e não levam em conta os fatos os que consideram o sertanejo um fraco. Se ele sobrevive em um meio hostil como o do Nordeste, na região batida pela seca, alimentando-se deficientemente, é porque se trata, mesmo, antes de tudo de um forte.

Duas observações:

1. O texto supra é parte da entrevista que, em junho de 1956, o famoso médico legista baiano, doutor Estácio de Lima, concedeu ao jornal "O Estado de S. Paulo". Assim procedi porque os demais temas tratados por ele (preservação do candomblé, violência em São Paulo, a lenda do Adamastor) não é de interesse do Grupo.

2. Em virtude da foto do jornal sair totalmente escura, copiei da internet a imagem de Dr. Estácio e do ex-cangaceiro Labareda, mencionado na reportagem.

Fonte: facebook
Grupo: O Cangaço
Link: https://www.facebook.com/groups/ocangaco/permalink/1219867038026412/

http://blogdomendesemendes.blogspot.com 

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