Por Benedito Vasconcelos Mendes
Susana Goretti e Benedito Vasconcelos Mendes
Na Fazenda Aracati, o jantar era servido à tardinha, antes de
escurecer, pois a casa não tinha energia elétrica. A iluminação era feita com
lamparinas e lampiões a querosene. À boca da noite, depois do jantar e da
oração diária da Ave-Maria (18 horas), o meu avô e todos da casa iam prosear
no alpendre. Meu avô deitava-se em uma rede branca, armada da coluna do
alpendre para o torno de armar redes chumbado na parede. A rede era atada na
coluna de aroeira do alpendre com sedenho ( corda trançada de cabelos de
animais, como crina de cavalo e cabelos da vassoura de bovinos ).
Minha avó deitava-se
em uma rede vizinha, também armada de uma coluna para a parede. O vaqueiro
Sales, Dona Lourdes, esposa dele, o vaqueiro Chicó, o Quinca Pescador e
mais alguns agregados da fazenda sentavam-se nos bancos de aroeira do
alpendre. As conversas, invariavelmente, versavam sobre fazendas, chuvas, gado,
pescarias, caçadas, pegas de boi e sobre os preços da arroba de carne bovina,
do quilo de queijo de coalho e sobre o preço da garrafa de manteiga da
terra, que eram noticiados pela recém-inaugurada Rádio Iracema de Sobral.
Estes eram os assuntos de maior interesse do meu avô e dos demais habitantes da
fazenda.
As novidades eram poucas, mas aqui e acolá surgia uma notícia que
aguçava a curiosidade dos presentes, como a gravidez inesperada de alguma moça
do distrito de Caracará (vila vizinha à Fazenda Aracati), uma queda de
cavalo, um coice levado de uma vaca ou a chifrada dada por um touro, em
alguém da fazenda.
Às vezes, a notícia principal era a morte ou doença de algum
político ou de uma pessoa importante residente em Sobral. Todas as
noites, o Quinca Pescador contava uma de suas engraçadas estórias de vaquejada,
pescaria ou de caçada, que agradava a todos, especialmente as crianças (netos
do meu avô e filhos dos vaqueiros) pois, mesmo se sabendo que o relato não era
verídico, era prazeroso de se ouvir. Os cachorros da fazenda, Japir e Tubarão,
pareciam entender as estórias contadas por Quinca Pescador, pois eles o ouviam
com redobrada atenção.
Ao chegar no alpendre,
meu avô ia logo picar o fumo de corda, para abastecer o cachimbo de barro
da minha avó. À luz de uma lamparina, ele picava o fumo de corda, com uma
faquinha bem amolada, sobre um pedaço de tábua de craibeira. Minha avó só usava
cachimbo à noite, antes de dormir. Ela dava cinco ou seis cachimbadas e ia para
o seu quarto.
O Sales, com um pedaço de fumo de corda na boca, cuspia de
instante em instante, uma golda preta, na cuspideira (lata de doce de
goiabada, cheia de areia), colocada ao lado do banco. O fumo de mascar
estimula as glândulas salivares e provoca cusparada. O Chicó fumava cigarro de
palha, que era preparado na hora. Ele picava o fumo de corda, colocava em um
pedaço de palha fina de espiga de milho e enrolava e depois cortava as pontas,
com sua faquinha bem afiada.
Meu avô foi pegar seu corrimboque de guardar tabaco no caritó do quarto, tirou
uma pitada de rapé de fumo, aspirou com uma das narinas e depois com a outra e
em seguida deu três grandes espirros. Minha avó, às vezes, usava rapé de
cumaru. Ela não gostava de rapé de fumo, embora fosse ela quem preparava o rapé
usado por meu avô. Ela escolhia pedaços de fumo de corda, colocava em uma
pequena tigela e levava ao forno para torrar. Depois ela pilava, peneirava em
tecido de algodão e armazenava o torrado no corrimboque de ponta de
chifre de boi, com tampa de madeira.
O Chicó gostava de contar suas bravuras nas
pegas de boi brabo, que tinha participado na Fazenda Oiticica, quando lá morou,
antes de sua vinda para a Fazenda Aracati. Meu avô apenas ouvia e dizia,
em tom de brincadeira, que o Chicó tinha desaprendido a pegar boi, já que ele
nunca conseguiu sequer pegar um garrote solto na mata, depois que aqui chegou.
As conversas prolongavam-se até às 8 horas da noite, quando o meu avô entrava
em casa para dormir em sua rede e era seguido por todos. Todo mundo dormia em
rede de tecido de algodão, pois na região, geralmente, não se usava cama. Eu ia
para a rede satisfeito, repetindo na memória a curiosa estória contada
por Quinca Pescador.
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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