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sexta-feira, 30 de março de 2018

AS CONVERSAS NO ALPENDRE DA FAZENDA ARACATI .


 Por Benedito Vasconcelos Mendes
Susana Goretti e Benedito Vasconcelos Mendes
       
Na Fazenda Aracati, o jantar era servido à tardinha, antes de escurecer, pois a casa não tinha energia elétrica. A iluminação era feita com lamparinas e lampiões a querosene. À boca da noite, depois do jantar e da oração diária da Ave-Maria (18 horas), o meu avô e todos da casa iam prosear no alpendre. Meu avô deitava-se em uma  rede branca, armada da coluna do alpendre para o torno de armar redes chumbado na parede. A rede era atada na coluna de aroeira do alpendre com sedenho ( corda trançada de cabelos de animais, como crina de cavalo e cabelos da vassoura de bovinos ). 

Minha avó deitava-se em uma rede vizinha, também armada de uma coluna para a parede. O vaqueiro Sales, Dona Lourdes, esposa dele, o vaqueiro Chicó, o Quinca Pescador e  mais alguns agregados da fazenda sentavam-se nos  bancos de aroeira do alpendre. As conversas, invariavelmente, versavam sobre fazendas, chuvas, gado, pescarias, caçadas, pegas de boi e sobre os preços da arroba de carne bovina, do quilo de  queijo de coalho e sobre o preço da garrafa de manteiga da terra, que eram noticiados pela recém-inaugurada Rádio Iracema de Sobral.  Estes eram os assuntos de maior interesse do meu avô e dos demais habitantes da fazenda. 

As novidades eram poucas, mas aqui e acolá surgia uma notícia que aguçava a curiosidade dos presentes, como a gravidez inesperada de alguma moça do distrito de Caracará (vila vizinha à Fazenda Aracati), uma queda de cavalo, um coice levado de uma vaca ou a chifrada dada por um touro,  em alguém da fazenda. 

Às vezes, a notícia principal era a morte ou doença de algum político ou de uma pessoa  importante residente em Sobral. Todas as noites, o Quinca Pescador contava uma de suas engraçadas estórias de vaquejada, pescaria ou de caçada, que agradava a todos, especialmente as crianças (netos do meu avô e filhos dos vaqueiros) pois, mesmo se sabendo que o relato não era verídico, era prazeroso de se ouvir. Os cachorros da fazenda, Japir e Tubarão, pareciam entender as estórias contadas por Quinca Pescador, pois eles o ouviam com redobrada atenção.  
                                                                           
Ao chegar no alpendre, meu  avô ia logo picar o fumo de corda, para abastecer o cachimbo de barro da minha avó. À luz de uma lamparina, ele picava o fumo de corda, com uma faquinha bem amolada, sobre um pedaço de tábua de craibeira. Minha avó só usava cachimbo à noite, antes de dormir. Ela dava cinco ou seis cachimbadas e ia para o seu quarto. 

O Sales, com um pedaço de fumo de corda na boca, cuspia de instante em instante, uma golda preta, na cuspideira (lata de doce de goiabada, cheia de areia), colocada ao lado do banco. O fumo de mascar estimula as glândulas salivares e provoca cusparada. O Chicó fumava cigarro de palha, que era preparado na hora. Ele picava o fumo de corda, colocava em um pedaço de palha fina de espiga de milho e enrolava e depois cortava as pontas, com sua faquinha bem afiada.  
                                  
Meu avô foi pegar seu corrimboque de guardar tabaco no caritó do quarto, tirou uma pitada de rapé de fumo, aspirou com uma das narinas e depois com a outra e em seguida deu três grandes espirros. Minha avó, às vezes, usava rapé de cumaru. Ela não gostava de rapé de fumo, embora fosse ela quem preparava o rapé usado por meu avô. Ela escolhia pedaços de fumo de corda, colocava em uma pequena tigela e levava ao forno para torrar. Depois ela pilava, peneirava em tecido de algodão e armazenava o torrado no corrimboque  de ponta de chifre de boi, com tampa de madeira.                                                                 

O Chicó gostava de contar suas bravuras nas pegas de boi brabo, que tinha participado na Fazenda Oiticica, quando lá morou, antes de sua vinda para a Fazenda Aracati. Meu avô apenas ouvia e dizia,  em tom de brincadeira, que o Chicó tinha desaprendido a pegar boi, já que ele nunca conseguiu sequer pegar um garrote solto na mata, depois que aqui chegou. 

As conversas prolongavam-se até às 8 horas da noite, quando o meu avô entrava em casa para dormir em sua rede e era seguido por todos. Todo mundo dormia em rede de tecido de algodão, pois na região, geralmente, não se usava cama. Eu ia para a rede  satisfeito, repetindo na memória a curiosa estória contada por Quinca Pescador.


Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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