COM 96 ANOS E
MORADORA DE CAMPINAS, DULCE RELEMBRA DOR DE VIDA NÔMADE NA CAATINGA
Leonencio Nossa,
enviado especial
29 de julho de
2019
CAMPINAS
- É o trauma de uma violência sofrida há mais de oito décadas por uma mulher
que torna bem vivo o tempo do cangaço numa pequena casa do Jardim Márcia, na
periferia de Campinas.
Na cidade muito longe do sertão – pelo menos na geografia – mora Dulce Menezes
dos Santos, de 96 anos, violentada na adolescência por um integrante do grupo
de Virgulino
Ferreira da Silva, o Lampião, arrancada da família e levada para a vida
nômade na caatinga.
Aos 96 anos,
Dulce conta agressões que sofreu no tempo do cangaço Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO
O começo de
tarde paulista é frio para a senhora de corpo franzino e cabelos compridos, que
acordou da rápida sesta. Ela chega à sala para a conversa com a equipe do Estado.
Antes mesmo de sentar no sofá, comenta: “O sonho da gente não esquenta mais,
não”. O lamento vem junto com um leve sorriso. A filha caçula, Martha, diz: “Tá
faltando carne entre esses ossinhos, mãe”.
Dulce se
ajeita no sofá, com ajuda da filha. Martha conta que a mãe sempre evitou
visitas e não esconde incômodo com janelas e portas abertas – por onde entram o
frio e também a violência.
Antes de toda pergunta, solta uma frase que repetirá a cada resposta dada e a
cada interrupção na longa conversa. “Infelizmente aconteceu isso contra minha
vontade. Não fui porque quis ir.”
Era filha de
trabalhadores de uma fazenda de algodão em Porto da Folha, Sergipe. Tinha
quatro anos quando um besouro mordeu a mãe, Maria, que não resistiu. O pai,
Mané João, dizem, morreu de saudade seis anos depois. A menina foi morar com a
irmã Mocinha, em Piranhas, Alagoas, depois na
fazenda de outra irmã, Julia, e do marido dela, João Felix.
O lugar servia
de rancho de cangaceiros que adentravam o sertão. Ela estranhou os homens de
roupas de tecido grosso, cor de folha seca, cintos pregados de moedas, chapéus
de couro de aba para trás e com estrelas bordadas e bornais floridos. E bem
armados. Um dos que frequentavam a fazenda era o cangaceiro João Alves da
Silva, o Criança. Ao ver aquela menina num canto, acabrunhada, negociou a
compra dela com João Felix por um bornal de joias.
Criança avisou
a João Felix que levaria Dulce numa festa que seria organizada pelo amigo
cangaceiro Zé Sereno, numa fazenda vizinha. João Felix levou a mulher, Julia, e
a cunhada. Criança não esperou para se aproximar da menina, que estava na casa
da fazenda. Dulce já se assustou quando o cangaceiro entrou. “Tu vai ali
comigo, Dulce.”
Ele a puxou
pelo braço, arrastando para fora. “Cala a boca, se não te sangro agorinha
mesmo.” Do lado de fora, a jogou no chão. Entre pedregulhos e espinhos, Dulce
foi violentada e os convidados assistiram em silêncio. O cangaceiro passou a
noite vigiando a “mercadoria”. A música continuava e o som da sanfona e do
triângulo sufocava os soluços de Dulce. Arrependido, João Felix temia que
Criança, ao fim da festa, levasse Dulce embora. “Num vou desperdiçar bala em tu
não, homem”, disse o cangaceiro, com desprezo, segundo Dulce. “Esse cara me
carregou.”
Beira do rio
Naquele
tempo, Dulce flertava com Pedro Vaqueiro, garoto de Piranhas. Eles brincavam na
beira do São Francisco. “Eu era novinha, de 13 para 14 anos, uma criança”,
lembra. A violência vai e volta no relato de Dulce. “Fui a pulso, arrastada, se
não morria. O apelido dele era Criança (o nome do agressor sai mais forte
na voz dela). Deus queria que eu estivesse aqui agora, conversando com vocês”,
conta. “Com parabellum (pistola) na mão. E com medo de morrer, acompanhei.”
A notícia do
rapto chegou a Piranhas. Pedro Vaqueiro se desesperou. Dizem que ficou
desnorteado, sem rumo. Saiu de casa, desapareceu, relata Martha. A história
daqueles dias está num livro escrito pelo professor baiano Sebastião Pereira
Ruas, que foi casado com Martha. Dulce, a boneca cangaceira de Deus foi
escrito na forma de novela típica dos velhos contadores. O texto simples traz
luz ao debate sobre a violência contra a mulher no cangaço. A venda é para
ajudar Dulce.
Era filha de
trabalhadores de uma fazenda de algodão em Porto da Folha, Sergipe. Tinha
quatro anos quando um besouro mordeu a mãe, Maria, que não resistiu. O pai,
Mané João, dizem, morreu de saudade seis anos depois. A menina foi morar com a
irmã Mocinha, em Piranhas, Alagoas, depois na
fazenda de outra irmã, Julia, e do marido dela, João Felix.
O lugar servia
de rancho de cangaceiros que adentravam o sertão. Ela estranhou os homens de
roupas de tecido grosso, cor de folha seca, cintos pregados de moedas, chapéus
de couro de aba para trás e com estrelas bordadas e bornais floridos. E bem
armados. Um dos que frequentavam a fazenda era o cangaceiro João Alves da
Silva, o Criança. Ao ver aquela menina num canto, acabrunhada, negociou a
compra dela com João Felix por um bornal de joias.
Criança avisou
a João Felix que levaria Dulce numa festa que seria organizada pelo amigo
cangaceiro Zé Sereno, numa fazenda vizinha. João Felix levou a mulher, Julia, e
a cunhada. Criança não esperou para se aproximar da menina, que estava na casa
da fazenda. Dulce já se assustou quando o cangaceiro entrou. “Tu vai ali
comigo, Dulce.”
Ele a puxou
pelo braço, arrastando para fora. “Cala a boca, se não te sangro agorinha
mesmo.” Do lado de fora, a jogou no chão. Entre pedregulhos e espinhos, Dulce
foi violentada e os convidados assistiram em silêncio. O cangaceiro passou a
noite vigiando a “mercadoria”. A música continuava e o som da sanfona e do
triângulo sufocava os soluços de Dulce. Arrependido, João Felix temia que
Criança, ao fim da festa, levasse Dulce embora. “Num vou desperdiçar bala em tu
não, homem”, disse o cangaceiro, com desprezo, segundo Dulce. “Esse cara me
carregou.”
Líder e parte
do bando foram mortos em um ataque em 1938 Foto: ARQUIVO ESTADÃO
Massacre
Em 27 de
julho de 1938, Dulce estava num acampamento na Grota do Angico, Sergipe. Ali,
Lampião reuniu diversos subgrupos que agiam sob seu controle na caatinga, em
roubos, saques, achaques e agiotagens. Foi quando Dulce, adolescente, esteve
mais perto de Maria Gomes de Oliveira, de 27 anos, a mulher de Lampião, que
ficou conhecida por Maria Bonita. “Era boa pessoa a Maria. Ficamos poucos dias
juntas. Lampião tinha uma turma, Criança tinha outra, Balão tinha outra. Se
vivesse tudo junto, a polícia descobria pelo rastro. Agora, nesse dia estava
todo mundo junto. Tinha de acontecer, graças a Deus.”
À noite, Maria
chamou Sila e Dulce para conversar. Na conversa, elas viram, na caatinga
escura, uma luzinha amarela, que piscava longe. Chegaram a pensar que era
vaga-lume. Foram dormir sem falar para os homens sobre a luminosidade.
Pela manhã,
Dulce levantou com os gritos de Criança. Uma volante – grupos de policiais
formados para combater cangaceiros– tinha cercado o grupo. Em meio a tiros, ela
ouviu a voz de Maria Bonita, baleada, diante do corpo de Lampião. Dulce, Sila e
Enedina correram. Um tiro de fuzil acertou a cabeça de Enedina, miolos respingaram
em Dulce, que conseguiu escapar juntamente com Criança e outros 21 cangaceiros.
“No combate em
que mataram Lampião e Maria Bonita, eu estava. Nenhuma bala pegou em mim.
Morreu um bocado. Já esqueci quantos morreram”, conta – 11 cangaceiros e um soldado
morreram. “Era tiro demais. Gente caindo, entrando pelas pernas, passando em
cima de cabeças. Escapou quem tinha de escapar, porque nunca vi tanto tiro na
vida, meu filho.” A notícia da emboscada chegou rápido a Piranhas. Parentes de
Dulce foram ver se a cabeça da menina estava em exposição na escadaria da
prefeitura.
O historiador
João de Sousa Lima, de Paulo Afonso, na Bahia, desenvolve um trabalho para
localizar sobreviventes do cangaço, em especial mulheres. Os relatos delas
mostram que a história de crueldade do bando de Lampião ou das volantes
encobriu a da violência contra mulheres do grupo. Uma semana antes do massacre
de Angicos, Cristina foi assassinada por querer trocar de companheiro. Também
foram mortas de forma trágica pelo próprio grupo Lídia, Lili e Rosinha.
Mulher de
prefeito
Embrenhado na
caatinga, o grupo sobrevivente de Angicos, decidiu se entregar à polícia.
“Aí acabou”, diz Dulce. O ditador Getúlio Vargas concedeu anistia aos
cangaceiros. Criança e Dulce, nesse tempo, tiveram dois filhos. Foram trabalhar
na fazenda de João Anastácio Filho, o Jacó, na região de Jordânia, Vale do
Jequitinhonha, em Minas.
O livro
destaca que Jacó era influente. Casado, decidiu se aproximar de Dulce. Pôs
Criança para atuar como tropeiro e, assim, começou a afastá-lo da fazenda.
Depois de uma longa viagem, Criança foi alertado por companheiros que era
melhor ir embora. Ele levou os dois filhos. Do casamento com Jacó, Dulce teve
outros 18 filhos. Anos depois, ele foi eleito prefeito de Jordânia, hoje com 10
mil habitantes. “Foi o tempo que fui feliz. Por enquanto estou aqui, até a hora
que Deus me levar. Graças a Deus nunca maltratei ninguém”, diz. “Agora essa
turma do Lampião, meu Deus do céu, quando queria pegar mulher, se não fosse,
eles matavam.”
Com a morte de
Jacó, Dulce foi morar com a filha Martha em Campinas. A cidade grande também
seria de privações. Viu filho e netos serem assassinados. Ela volta a falar do
sertão e do cangaço. “Acabou. O Norte está sossegado, não está?”
Serviço:
DULCE, A
BONECA CANGACEIRA DE DEUS
Autor: Sebastião
Pereira Ruas
Editora:
Lexia, 227 PÁGINAS
Preço: R$
45
O livro é
vendido por Martha Menezes pelo telefone (19) 98872-6588
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário