Por Vicente Cascione
Dezembro, 1978. São Paulo, num dia igual a todos os outros.
Chego, enfim, ao edifício. O porteiro seco e carrancudo, exige-me documentos, referências, e me submete a um rosário de perguntas. Para tentar descontrair o ambiente e quebrar o gelo, digo, desastradamente, ser um ladrão. Então, não escapo de uma revista pessoal, sob vigilância de um outro cidadão, parceiro da primeira sentinela implacável.
Pelo telefone da portaria perguntam ao habitante do 13º andar se eu tenho permissão para subir.
Permissão concedida, subo, chego ao destino, deixo o elevador e vejo, diante de mim, um pequeno hall e a porta do apartamento.
Aperto o botão da campainha e, pelo olho mágico, alguém me espia. Parece-me não confiarem inteiramente nos porteiros. Certificam-se de ser eu, e só então a porta é aberta.
Tenho a sensação de pôr meus pés na intimidade inviolável do templo de Juno, dos jardins do Capitólio, dos aposentos papais, ou do banheiro da Rainha da Inglaterra.
Acomodo-me ali, à mesa do jantar momentaneamente interrompido por minha chegada. Meu anfitrião ceia solitário. Sua mulher aparece, cumprimenta-me delicadamente, e diz ter o hábito de não se alimentar nas horas noturnas.
Abordo o assunto profissional, razão de meu encontro com o homem. A mulher, feito uma estátua, com o olhar vago, finge estar atenta. Mas mantém-se em estado de ausência, o pensamento longínquo.
Surgiu, então, o menino ao qual eu queria me referir, afinal a história dos porteiros não vale uma crônica, mesmo quando falta-me assunto.
O menino entrou na sala, com a ousadia e o destemor de uma criança a dirigir-se em direção ao seu pai.
Trazia nas mãos um brinquedo para mostrar ao meu anfitrião. O homem, desde quando chegara ao apartamento, ainda não tinha visto o menino.
“Boa noite papai! Olha o que a vovó comprou pra mim”!
O papai estava entretido com uma coxa de frango. E comigo.
Nenhuma resposta à criança. Nem um olhar distraído em sua direção. Nem uma palavra convencional, dessas usadas pelos meros genitores para descartar os filhos e suas futilidades.
Olhei o menino. O brilho dos olhos ao vir ao encontro do pai, e o sorriso de contente desenhado em seu rosto, apagaram-se.
Ele saiu dali lentamente, com seu pijaminha folgado, como um personagem de Disney, mergulhado em seu desalento, acompanhado de sua solidão.
O frango e o assunto chegaram ao fim e eu me despedi. Sair foi mais fácil.
Da rua, olhei para as janelas do 13º andar, cujas luzes estão baças pela cortina de névoa e da garoa fina.
Vejo a multidão das luzes das vidraças acesas sobre a cidade. Quantas prisões; quanto medo; quanta solidão; quanto desencanto; quanto silêncio; quanto desencontro; quantos órfãos de pais vivos; quantos pequeninos, pobres crianças, flores efêmeras, infâncias fugazes, envelhecendo em botão.
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