Por Gabriela Poti
O episódio acima, que passaria a ser conhecido como a ‘tragédia de Piedade’, aconteceu em 15 de agosto de 1909. Mas a história não terminou com a morte de Euclides. Em 4 de julho de 1916, ‘Quidinho’, como era chamado um dos filhos do escritor, então com 19 anos, procurando quem sabe restaurar a honra da família, também tenta matar Dilermando e até consegue alvejá-lo pelas costas. Entretanto, ele acaba morto pelo militar, que reage prontamente contra o agressor.
Absolvido pelo júri nos dois casos, Dilermando não escapou ao julgamento da imprensa da época e carregou até sua morte, em 1951, o rótulo de vilão. Não faltaram artigos recheados de adjetivos negativos – “asqueroso”, “desprezível”, “cínico” – cristalizando na opinião pública a alcunha de culpado. Essa campanha da elite cultural contra o militar é reproduzida na biografia “A vida dramática de Euclides da Cunha” (1938), de Elói Pontes. Para promover o livro, a editora José Olympio causou polêmica ao exibir na loja que mantinha à rua do Ouvidor a carteira trespassada por balas e uma foto do escritor no necrotério.
Em resposta à biografia de Elói Pontes, Dilermando, que também era escritor, publica “A tragédia de Piedade”, livro parcialmente baseado em documento que havia redigido 40 anos antes, originalmente para complementar sua defesa perante o júri, em 1911. Nessa obra, analisa detalhadamente as provas periciais dos autos da acusação nos dois homicídios pelos quais havia sido julgado. Tece ainda uma minuciosa crítica de “Os sertões”, obra em que Euclides da Cunha narra a guerra de Canudos, conflito que foi cobrir como correspondente do jornal O Estado de São Paulo.
Narrativa carregada de significado épico e trágico, “Os sertões” é um autêntico casamento entre a ciência e a arte. Munido das teorias deterministas, positivistas e sociológicas da época, Euclides da Cunha contou o que presenciou no sertão da Bahia, que resultou no massacre da população do arraial liderado por Antônio Conselheiro. Questionando a versão oficial disseminada pela República, o escritor apresentou aos leitores o contexto que havia por trás dos fatos, numa obra marcada pela inovação em termos de linguagem, estrutura e temática.
Em “A tragédia de Piedade”, Dilermando contesta “Os sertões” apontando erros e chegando até a citar supostos exemplos de plágio no clássico de seu rival. Nesse sentido, dois questionamentos ficam no ar. Seria essa uma tentativa de Dilermando, ainda que tardiamente, de conquistar a absolvição da opinião pública? Ou estaria embutida nessa crítica a pretensão de matar aquilo que restou de Euclides da Cunha, ou seja, a legitimidade e o valor de sua obra?
A possibilidade de uma leitura mais profunda, porém ainda não decisiva sobre o caso, veio recentemente, pela historiadora Mary Del Priore. Em ‘Matar Para Não Morrer’, ela analisa o pano de fundo em que se deu o triângulo amoroso entre Euclides, Anna e Dilermando. Valendo-se de uma robusta pesquisa, Mary relata os meses que antecederam a tragédia, aponta como a imprensa ignorou os fatos e crucificou Dilermando. Revela ainda que Euclides não agiu como exceção quando achou que era a hora de ‘matar ou morrer’. Nesse duelo em que não há vencedores, apenas vítimas, o escritor foi mais um que recorreu a um ato extremo na tentativa de limpar seu nome. Dilermando, por sua vez, nos remete à figura trágica daquele que diante do inexorável não tem muito a fazer.
Nesse duelo que parece continuar após quase 110 anos completos da morte do autor de “Os sertões” (a efeméride será em agosto de 2019), as especulações seguem. Em artigo publicado ano passado no jornal “O Globo”, o poeta e membro da Academia Brasileira de Letras Antonio Carlos Secchin comenta as anotações que encontrou em uma terceira edição, de 1905, de “Os sertões”. Não haveria novidade alguma não fosse o antigo proprietário, Dilermando de Assis, e o teor das muitas anotações feitas ao longo da edição.
O conflito entre os dois homens espelha, quem sabe, um embate que se projeta para além de suas biografias. Dilermando era militar; Euclides, escritor. Dilermando cumpria ordens. Euclides, por sua natureza intelectual e artística, ao chegar a Canudos não hesitou em despir-se das convicções prontas para escrever sua obra-prima. Faz sentido que um militar por excelência contestasse um livro que é justamente uma crítica à ação do exército. Simbolicamente, a oposição pode ser também entendida entre o intelectual que enxerga as nuances, as áreas cinzas, de uma situação como Canudos, e o militar para quem tudo é preto ou branco.
Dilermando foi fatalmente eficaz ao executar Euclides da Cunha. Até foi absolvido pela morte, considerada autodefesa. Não foi tão eficiente ao tentar desqualificar a obra máxima do escritor, “Os sertões”, hoje considerada um clássico obrigatório para aqueles que desejam entender o país, suas raízes. Mais uma prova da perenidade e relevância de Euclides é que o escritor será o grande homenageado este ano na Flip – Festa Literária Internacional de Paraty -, que acontece de 10 a 14 de julho.
Gabriela Potti -Fonte:http://balaiopop.com.br/euclides-da-cunha-e-sua-segunda-morte/
https://cariricangaco.blogspot.com/2021/09/euclides-da-cunha-e-sua-segunda-morte.html
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