No filme, a
construção de uma aura mítica ao redor de ícones históricos pode ser percebida
no encontro entre Lampião e Padre Cícero. Mais uma vez, a maneira como a cena
foi filmada interfere na interpretação dos significados apresentados. A imagem
é azulada e os movimentos são flutuantes, efeitos que emolduram a ação com uma
atmosfera onírica. O fato ocorreu em 1926 em Juazeiro, no Ceará, mas a forma
como o filme o reconstitui deixa em aberto se aquilo é um flashback ou uma
alegoria que pode estar ambientada no além (no céu ou no purgatório).
Benjamin Abrahão aparece entre os dois mitos. A sequência, que ressurge no
filme mais de uma vez, serve também para demarcar que o cineasta libanês
conseguiu fotografar Lampião e Padre Cícero juntos. A foto foi essencial para
que ele futuramente conseguisse apoio de coronéis aliados ao cangaço e
confiança para ser pessoalmente aceito com sua câmera entre os cangaceiros.
Luiz Carlos Vasconcelos constrói uma nova imagem de Lampião que ficou gravada
no subconsciente coletivo. A caracterização criada pelo ator tem potência
suficiente para substituir ou complementar outros rostos (Leonardo Villar,
Nelson Xavier) já fixados no imaginário nacional graças ao cinema e à TV. Ele
consegue equilibrar os estados de agressividade e de elegância do personagem
(além de combinar uma coisa a outra em cenas de batalhas, graças à precisão e à
classe com a qual manipula a pistola e outras armas). O lampião do Baile dança
forró, ouve discos em gramofone, bebe uísque, joga baralho e aprecia perfumes,
mas não hesita na hora de matar.
O ator pernambucano Aramis Trindade interpreta o tenente Lindalvo Rosas, o
antagonista do anti-herói. Não chega a ser um vilão à altura do inimigo.
Funciona mais como contraponto cômico. Com estilo humorístico, o intérprete faz
o personagem crescer e impor-se sempre que aparece. O figurino (de Mônica
Lapa), com calças largas e pequeno chapéu militar, associa-se aos inusitados
ângulos de câmera para conferir trejeitos cartunescos ao soldado.
As estilizadas imagens de Lindalvo são mais um exemplo da inquietação visual de
Baile perfumado. Nos diálogos do filme, há sempre planos e contraplanos com
enquadramentos mais convencionais, que parecem ter sido feitos para garantir a
continuidade ou como uma opção de segurança. No entanto, são mais marcantes as
construções mais mirabolantes. Um encontro entre Benjamin e Ademar na praia é
visto de cima. Uma outra negociação é mostrada com um ventilador em primeiro
plano, com os personagens por trás das hélices em rotação rápida. A primeira
conversa entre o tenente e o libanês também é filmada de baixo pra cima, de um
ângulo que deforma os corpos e resulta em um efeito lisérgico de derretimento.
Há ainda uma família retratada de cabeça para baixo (referência ao jogo de
lentes e espelhos das câmeras fotográficas antigas).
Os planos-sequência longos são os que mais evidenciam o comportamento
mirabolante da câmera. A cena inicial atravessa quartos e corredores e desce
uma escadaria para mostrar os últimos momentos de vida e o velório de Padre
Cícero. A inspiração parece vir de filmes de Orson Welles, como A marca da
maldade, que tem abertura sem cortes em que uma bomba é armada nos EUA,
colocada no porta-malas de um carro e levada ao México, onde explode. No início
de Baile perfumado, o sacerdote cearense atravessa da vida para a morte em um
take contínuo.
Antes do longa, Lírio Ferreira dirigiu, junto com Amim Stepple, o
curta-metragem That’s a lero lero (1994), sobre a passagem de Orson Welles pelo
Recife em 1942, que serve como pista sobre as referências wellianas presentes
em Baile. A presença de estrangeiros no Brasil, por sinal, é tema recorrente
nas duas obras e em uma série de filmes que passa por Deserto feliz (2007), de
Paulo Caldas, e Cinema, aspirinas e urubus (2005), de Marcelo Gomes, ambos com
personagens alemães em visita a Pernambuco. Lírio também explorou, em Árido
movie (2006) e Sangue azul (2014), o impacto da chegada de viajantes a
localidades distantes e isoladas.
Em Baile, os planos-sequência chamam ainda mais atenção quando filmados com
steadycam, recurso que elimina as tremulações e proporciona fluidez aos
movimentos de câmera, consagrado por Stanley Kubrick em O iluminado (1980). No
filme pernambucano, o equipamento é essencial na abertura e em momentos como as
caminhadas pela caatinga ou as imagens aéreas.
http://www.impresso.diariodepernambuco.com.br/noticia/cadernos/viver/2016/09/o-significado-da-forma-de-filmar.html
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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