Por: Rangel Alves da Costa(*)
AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 9 (PASSARINHO FOI AVISAR LAMPIÃO, MAS NINGUÉM QUIS OUVIR)
Acredite se quiser, mas antes do ocorrido na madrugada do dia 28 de julho de 38, na Gruta do Angico, quando a volante do Capitão João Bezerra atravessou o São Francisco e chacinou parte do bando de Lampião, um fato inusitado poderia muito bem ter evitado toda aquela tragédia.
Se os cangaceiros eram amigos dos bichos, da mataria, das pedras e espinhos, das catingueiras e das poças com tico de água, deveriam ter ouvido o passarinho que voejou ao redor do esconderijo durante todo o dia 27 e até varando o madrugar do dia seguinte. Voava pelos arredores e de palmo em palmo pousava num pé de pau chamando cangaceiro para contar o que sabia.
Voou, circundou pelo ar, pousou na beirada da entradinha da gruta, mexeu em tudo que foi galhagem, cantou, gritou, piou, e nada de qualquer cabra ter um tempinho para ouvir segredo tão importante, coisa dizendo respeito à própria sorte de todo mundo que estava arranchado ali. Mas ninguém deu atenção, ninguém quis ouvir. E deu no que deu.
Passarinho até pousou no ombro perfumado do Capitão. Lampião gostava de passarinho, brincava com ele, conversava com o danadinho penoso. Mas naquela hora, ainda que ele desse bicadas e piasse mais que tudo, não recebeu a devida atenção. Maria chamou, o Capitão levantou e passarinho não viu outra saída senão sair voando pra procurar outro cangaceiro e contar sobre o que estava prestes a ocorrer.
Sila, para muitos também Cila, metida a fazer remendos em roupas, nem deu atenção; Luis Pedro, vaidoso que só, pediu que ele voltasse outra hora porque estava muito ocupado em arrumar os cabelos; Cajazeira ouviu apenas uma parte da conversa, mas teve que sair para ir atender o chamado da esposa Enedina.
Somente depois, quando havia conseguido se livrar daquele terrível acontecimento, é que ficou imaginando o que passarinho tinha começado a alertar. E logo a ele, pessoa chegada demais a creditar fé nos anúncios e avisos que iam surgindo sempre ao acaso. E talvez fosse a salvação da cangaceirada se tivesse deixado o penoso piar o resto. Mas não.
Verdade é que passarinho, ave própria do lugar, acostumada a voar por aqueles céus ensolarados do sertão, conhecia cada canto ali, cada pé de pau, cada estradinha, cada moradia, cada sertanejo e o seu vaivém cotidiano. Como todo mundo que tem suas preferências, também gostava de voejar ali pelas bandas da beirada do rio, perto da Gruta do Angico, dando voltas nas pequenas propriedades existentes ao redor.
Por isso mesmo de vez em quando estava na janela de Dona Guiomarina, dona da propriedade onde ficava situada a gruta, esconderijo escolhido por Lampião e seu bando nas barrancas sergipanas, lá na Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo. E foi numa dessas passagens pelas terras de Dona Guiomarina que ouviu dois irmãos filhos da senhora, Pedro Nicâncio e Dorvalino, conversando coisa muito importante debaixo de um pé de pau.
Dorvalino pedia ao irmão que tivesse o maior cuidado do mundo pra não abrir o bico e revelar segredos que não poderia de jeito nenhum. Sabia que as tentações seriam muitas e que o jeito desavisado do outro causasse descomunal aperreio. Disse que conhecia certas aptidões negativas do irmão e por isso mesmo temia que ele quisesse se achar importante e contar a qualquer um que encontrasse sobre o lugar onde o bando de Lampião estava refugiado.
E Dorvalino dizia mais. Na verdade o que mais temia é que Pedro, depois de molhar o bico com aguardente, tomar umas e outras, fizesse festa com segredo tão importante. É próprio de quem bebe tomar uma para calar e a seguinte para falar demais. E isso não podia ser feito de jeito nenhum, vez que o Capitão e todo o resto do bando eram seus amigos, tinham consideração e respeito.
Mas Pedro apenas disse que o irmão nem se preocupasse, pois iria até a feira de Piranhas no outro lado do rio apenas para resolver pequenos negócios e depois voltava trazendo o mesmo segredo. Por isso mesmo não se preocupasse que ia tomar o maior cuidado do mundo para não passar dos limites na branquinha nem revelar nada a ninguém. E tudo isso passarinho ouvindo bem em cima de suas cabeças, num galho da árvore.
Mas passarinho, desconfiado como era, logo temeu o pior. Na sua concepção de ave, era perigoso demais que um rapazote naquela idade, cheio de vontade de aparecer, não fosse tentado a falar sobre os cangaceiros escondidos ali na Gruta do Angico. Por isso mesmo que resolveu alçar voo acompanhando os passos do rapazinho Pedro Nicâncio. E de repente, depois de vê-lo atravessar o rio numa canoinha, já estavam em plena feira na pequena povoação alagoana.
As cenas que presenciou colocaram passarinho numa aflição terrível. Viu Pedro andando e conversando com um e outro, vendendo carne de bode, tomando pinga e sendo coagido por policiais. E viu também quando a volante sumiu com ele pra lugar escondido. E foi nesse momento que passou a sentir o perigo que o bando de Lampião estava correndo.
Nem esperou outras notícias do sertanejo e logo voou pro outro lado, seguindo diretamente pra o esconderijo dos cangaceiros. Foi aí que começou a sua via-crucis, voando desesperado de canto a canto, tentando dizer a qualquer um acerca do que havia ocorrido do outro lado. Achava melhor não esperar por tempo ruim, pelo pior que certamente iria acontecer.
Estava em cima de um pé de pau dando seu piado mais triste quando uma bala perdida calou seu fúnebre canto. Mas passarinho morreu feliz. Não haveria mais nenhum motivo para continuar voando pelos horizontes sertanejos sem avistar o bando Capitão lá embaixo.
Bateu asas e foi pra outro mundo. Dizem que céu de passarinho sertanejo é um imenso ninho rodeado de catingueiras douradas. Mas não para um instante sequer nas ricas galhagens. Sua vida, nessa outra vida, é voar de canto a outro procurando por Lampião.
Ainda não avistou não. Ainda não avistou não. Por onde andará Lampião?...
(*)Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
http://blograngel-sertao.blogspot.com.br/2012/07/as-cronicas-do-cangaco-9-passarinho-foi.html
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