Por Honório de Medeiros(*)
Então um
preciso tiro de fuzil ecoou no final de tarde nublado do dia 13 de setembro de
1927, e, aproximadamente cem metros além, atingiu o meio-da-testa de um caboclo
puxado para o negro aparamentado com a indumentária típica do cangaceiro,
prostando-o na terra nua, de barriga para cima, a contemplar com olhos fixos e
vazios o céu acima, ali onde a Avenida Rio Branco cruza a Rua Alfredo
Fernandes, bem onde, na quina, fica a famosa Igreja de São Vicente cuja efígie,
do seu nicho decenal, tudo contemplava. Era o começo do fim. No alto da casa do
Prefeito Municipal - o líder que começara a epopéia, no telhado, o
atirador viu quando um outro cangaceiro, de um trigueiro carregado,
aproximou-se rastejando e disparando da vítima e começou a rapiná-la, retirando
freneticamente, de seus bolsos, munição, dinheiro e jóias.
Manoel Duarte
Calmamente, mirou e
aguardou. Pressentindo o perigo iminente o feroz bandoleiro ergueu o tronco
elevando os olhos até o telhado fatídico da casa cuja frente fora tomada por
fardos de algodão prensados. Foi apenas um momento, mas foi fatal. Outro tiro
de fuzil ecoou e, no mesmo local onde seu companheiro jazia sem vida mais um
cangaceiro foi atingido. O violento impacto da bala derrubara-o momentaneamente
e desenhara, em seu tórax, uma rosa de sangue. Começou a debandada. Enquanto os
resistentes começavam a perceber que a ameaça fora sustada e o recuo dos
cangaceiros era generalizado, o atirador recolhia o fuzil e fitava a cidade no
prumo que tinha a Igreja de Nossa Senhora da Conceição como limite. Olhava e
pensava.
Igreja de Nossa Senhora da Conceição
Ele tinha morto um cangaceiro e ferido mortalmente outro. Não havia
dúvida quanto à importância desse fato para a vitória. Mas cangaceiros são
vingativos, cangaceiros são ferozes, cangaceiros são cruéis. Cangaceiros são
dissimulados e não esquecem nunca, matutava ele com seus botões. Se ele
aceitasse passivamente as homenagens que lhe seriam tributadas a partir daquele
momento tudo poderia, no futuro, desandar no gosto amargo causado pela
retaliação de algum anônimo, talvez até mesmo em algum parente, como era
prática comum na vida cangaceira. Não que fosse medroso. Ao contrário. Todos
quantos lhe conheciam podiam atestar sua coragem e perícia com as armas, que já
ficavam lendárias. Mas era melhor precaver-se. Era melhor silenciar. Não seria
o caso de negar veementemente, por que não era homem para esse tipo de
extroversão. Mas ia silenciar. Não ia comentar nada. O que estava feito estava
feito e era de acordo com seu temperamento reservado. Se lhe perguntassem,
mudaria de assunto. Se comentassem de alguma roda da qual estivesse fazendo
parte, sairia de mansinho. Guardaria a verdade consigo e a contaria apenas para
alguns escolhidos, por muito e muito tempo. Até que...
Até que
naquele dia banal, sozinho com seu neto de dez anos de idade, sentiu vontade de
contar aquilo que nunca contara a ninguém. Era uma necessidade da alma, um
anseio de perpetuar um feito honroso, um gesto de heroísmo que o mostrava tão
diferente daqueles que tinham fugido em direção ao mar quando os cangaceiros
ciscavam nas portas de Mossoró, um gesto que lhe orgulhava por que defendera
sua família e sua cidade a um custo alto, que era o de tirar a vida de alguém.
Olhou para o neto e compreendeu que ali estava o interlocutor perfeito. Não
questionaria, não interromperia, não esqueceria. Guardaria a lembrança do dia e
do relato. Assim sendo começou a contar-lhe todo o episódio, detalhe por
detalhe. O neto apenas olhava intensamente e sentia que estava sendo
transmitido, para ele, algo muito importante e que somente no futuro seria
plenamente entendido. Acalmou sua inquietude de menino. Não desgrudou o olho do
seu avô, aquele homem reservado e pouco propenso a confidências. No final,
quando toda a história havia sido contada, compreendeu que devia guardá-la
consigo, até mesmo esquecida, por muito tempo. Guardada até que...
Até que em um
final de tarde tipicamente mossoroense, de muito calor, em um café, o neto
aproximou-se de uma roda de estudiosos do cangaço e percebeu que discutiam a
participação do seu avô na invasão da cidade pelo bando de Lampião. Uns diziam
que havia sido ele o autor dos disparos. Outros negavam e apontavam nomes.
Quase oitenta anos haviam passado do episódio. O neto, agora, era cinquentão.
Sentiu que ali estava o momento certo para contar a história, a sua história, a
história do seu avô. Aquela platéia saberia ouvi-lo e entenderia plenamente as
razões do silêncio da família. Contou tudo. Fechou-se o ciclo. Dezenas de anos
depois já não há mais dúvidas. O atirador postado no alto da casa de Rodolfo
Fernandes, o homem que praticamente abortara a invasão lampiônica, o herói
entre heróis fora MANOEL DUARTE. Essa é a verdade, como o sabe sua família e a
contou seu neto, Carlos Duarte, jornalista, muitos anos depois, a mim, a
Kidelmir Dantas e Paulo de Medeiros Gastão, estes últimos dirigentes da
Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço – SBEC.
É verdade, dou
fé.
Texto do professor, escritor e pesquisador do cangaço: Honório de Medeiros
honoriodemedeiros.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário