Por José
Cícero
A tarde estava
cinzenta naquela Aurora pacata e provinciana de 1928. Uma enorme sensação de
tranqüilidade cobria os semblantes dos viajantes, assim como o coração e o
pensamento da multidão que se aglomerava na pedra da estação aguardando o trem.
Uma cena comum em todas as cidades interioranas atendidas pelo velho comboio da
Rede Ferroviária Cearense(RVC).
Coronel Isaías Arruda - filho de Aurora - ex-prefeito de Missão Velha
Nuvens cor de
chumbo em formação pareciam prenunciar no céu daquela Aurora antiga e calma, algo
diferente prestes a ocorrer: uma tragédia. Logo se constataria...
Estação de Aurora - aqui também Isaías Arruda em !028
Naquela tardezinha quase insossa de sábado, dia 4 de agosto de 28 quando muitos já se esqueciam dos episódios de um ano antes, relacionados à presença do rei do cangaço na terrinha; o velho aparelho do telégrafo da RVC de novo estava prestes a receber no código morse um telegrama diferente. Um comunicado estranho; digamos que chave, para os desdobramentos do acontecimento dramático que se seguira ao fato:
Jagunços do cel. sob o comando de Zé Gonçalves - Foto de Zé Ingazeiras
Porém, aquela
mensagem sertanejamente codificada não seria de todos estranha. Havia um
destino e um desiderato certo: os paulinos com o fito de surpreender o
coronel. - “Antonio,
algodão hoje sobe!”. Eis a mensagens...
Uma missiva quase enigmática considerando que o algodão – o ouro branco d’Aurora daquele tempo, faria sempre o sentido contrário, ou seja, descia pras bandas do litoral. E o seu preço no mercado há muito era de todos conhecido.
Dizia muito mais do que ali estava escrito de modo lacônico... A estação de
Aurora estava repleta de gente. Um acontecimento que se tornara comum deste a
sua inauguração festiva, oito anos antes, isto é, em 7 de setembro de 1920.
E a cronologia
do momento seguinte, logo provaria para todos que o pano de fundo era um crime.
Um atentado violento à ordem e a vida em nome da vingança e da intolerância de
uma região marcada pela lei do bagamarte. Uma intriga passada à limpo. E como
se viu, expressa na força da violência e da ignorância em detrimento da razão e
da justiça. Sinais de uma época densamente marcada pelo poder de fogo do
coronelismo oligárquico, engendrado pelos mais temíveis e truculentos líderes
políticos que o Cariri cearense já experimentou um dia. Um período onde a lei
no mais das vezes, quando prevalecia, era a do mais forte. Enquanto a
justiça quase sempre, era feita, via de regra pelas próprias mãos, em geral,
dos poderosos.
Estação de Aurora em dia dia -exposição de fotos antigas
Naquele sábado, de uma tarde escura de agosto, a estação de Aurora não demoraria a ser palco de um episódio que marcaria à história do Cariri e do Ceará para sempre como um nódoa incômoda. Vez que envolveria, aquele que foi certamente, o mais famoso e temível chefe político da região: o coronel Isaías Arruda de Figueirêdo. Filho do lugar, ex-delegado de polícia, então prefeito pela força da vizinha Missão Velha. E, de quebra, o maior dos coiteiros de Lampião no interior cearense. Um autêntico mantenedor de jagunços e hábil negociador político junto aos potentados da vizinhança, assim como os grandes da capital.
O tempo
escorria tal qual o suor no rosto daquela turba de anônimos já impacientes pela
delonga. O relógio do prédio apontava 14h25min quando, finalmente, todos
puderam escutar o apito estridente da velha máquina a ecoar no horizonte. Apenas
Sabina, entretida demais com o seu café, não se deu conta daquele acontecido.
Todos, de repente voltaram suas atenções na direção do corte-grande lá pras
bandas do alto da cruz, do sito Frade. A paz da Aurora estava prestes a sofrer
um abalo...
O trem da Fortaleza vinha ligeiro e enfezado beirando o rio Salgado na ânsia de chegar tão logo às terras do Crato. E chegou à Aurora. Esbaforido e com sede como se fosse um animal cansado.
Enquanto
exímios chapeados transportavam com pressa e sem nenhum cuidado, grandes
caixotes, sacos, pacotes e outros fardos de mercadorias aos sopapos. Uns
desciam para o armazém da RVC outros subiam para os vagões do trem com destino
ao Crato. Animais, coisas de madeira, artesanato, aguardente, rapadura,
oiticica, panelas de barro. O trem acelerava a curiosidade, tanto quanto a
economia daquela vila quase esquecida no oco do mundo.
Mas de
repente, o som de um tiro seco ribombeou no ar. Quebrando a normalidade natural
daquele acontecimento diário. Em seguida, vários outros disparos puderam ser
ouvidos no interior do segundo vagão da primeira classe. Talvez sete ou oito no
total... Até hoje ninguém sabe ao certo. Um silêncio quase sepulcral se abateu
na plataforma por alguns instantes que pareceram eternos. Somente o roncar da
locomotiva um pouco mais a frente estacionada defronte a caixa d’água. Em
seguida uma correria...
Vozes diziam
tratar-se de uma discussão. Três homens saíram atracados e em seguida correram
no sentido contrário do vagão. Uma disparada em direção do armazém e depois
para o beco da antiga rua que dava para o cemitério. De súbito, um quarto homem
um tanto elegante, rosto jovem e bem tratado. Gestos aparentemente finos,
surgiu do segundo vagão da primeira classe. Vestia impecavelmente um terno de
linho branco. Olhar altivo. Pisou de modo esquisito e desaprumado o piso, a
pedra da estação. Alguns passos apenas e cambaleando fitou a multidão como quem
quisesse dizer algo. Não foi possível. Sangrando e com a mão direita colada ao
peito chamava baixinho pelo primo.
O linho branco do seu terno agora começava a se tingir de vermelho. Seus sapatos de cor marrom e bem polidos contrastavam com o vermelho escuro do seu próprio sangue formando poças na plataforma enfumaçada. Era o coronel Isaias Arruda, chefe político, filho da terra. Prefeito da Missão Velha. Alguém logo afirmara em meio a multidão de curiosos.
Homem afamado em toda região, desde as bibocas à capital do estado. Um líder corajoso e ousado. Devagar caiu ao chão da plataforma ainda com arma intacta junta ao cinto. Não teve tempo sequer de usá-la.
Alguém saindo
de dentro do vagão posterior se aproxima dele e forra o chão da pedra com um
jornal que lia; edição do dia 3. Seu braço esquerdo e parte superior do tórax
estavam em frangalhos.
Ferimentos gravíssimos provocados pelos vários balanços com que fora atingido mortalmente. E o coronel, mesmo seriamente alvejado, bastante ferido, pronunciou baixinho quase inaudível:
- Os irmãos paulinos me acertaram!
Eles me acertaram!
- Mas como é que nem o Viana nem ninguém me avisou que meus inimigos estavam aqui?!
Oh, Bando de covardes...
E de chofre
emendou:
- alguém me
chame o farmacêutico!
Foram os
Paulinos, eles me acertaram... repetiu: - Bando de covardes!
Outros mais
ousados iam aos poucos se aproximando da vítima que gemia
deitada ao solo da pedra, sobre as folhas do jornal ‘O Ceará’. Enquanto isso,
um mais pouco afastado da estação José Vicente ou Nezinho de Milica, dois
primos saíram em perseguição(ou fugindo) dos irmãos paulinos: Antonio e
Francisco, responsáveis pelo atentado.
Foi levado
para à residência de Cícero Ferreira do lado do poente e, em
seguida, para a de Augusto Jucá um antigo amigo morador da rua
grande. Isaías foi socorrido. Inicialmente por um farmacêutico prático - o único
que existia na cidade. No dia seguinte, bem cedo, dois médicos de Iguatu vindo
de trole pela linha da RVC: Antenor Cavalcante e Sérgio Banhos atenderam o
coronel. Porém, diante da gravidade dos ferimentos não tiveram como salvá-lo.
Sendo que no dia 8 de abril uma quarta-feira às 6h da manhã, quatro dias após
ter sido baleado, Isaías Arruda faleceu como que por capricho do destino na
terra em que nasceu, foi batizado, cresceu, casou e foi delegado.
Antiga Fazenda Ipoeiras do cel. Isaías em dia de Cariri Cangaço
Rumores
apontaram ter sido o assassinato uma vingança de Lampião pela suposta traição
do coronel um ano antes, durante o célebre “fogo da Ipueiras” (fazenda de sua
propriedade) ao lado de Zé Cardoso e o major Moisés Leite de Figueiredo. Além
da tentativa de envenenamento do bando lampiônico, em cujo local Virgulino se
arranchara por diversas vezes. Ocasião em que o rei do cangaço fugia das
volantes, após o fracasso da invasão à Mossoró, arquitetada sob as estratégias
de Massilon Leite e financiada pelo próprio coronel.
Mas o certo, segundo se provaria logo depois, foi que os paulinos vingaram o assassinato do irmão mais velho João, morto numa emboscada no serrote d’Aurora pelos jagunços de Arruda no ano anterior.
Terminava ali de modo trágico, na estação ferroviária de Aurora a verdadeira saga de um dos mais temíveis e respeitados coronéis do Cariri - Isaías Arruda de Figueirêdo. Assim como, sua rixa ferrenha contra os irmãos paulinos da Aurora.
Prof. José
Cícero.
Escritor,
Pesquisador e Poeta -
Secretário de Cultura e Turismo de Aurora - Ce.
jcaurora.blogspot.com
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