Seguidores

sábado, 24 de agosto de 2013

QUIRÓ, O SERTANEJO

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

QUIRÓ, O SERTANEJO

Quiró, mais conhecido como Quiró mesmo. Não havia outro jeito, pois todo mundo o chamava assim. Mas seu nome de batismo era Crimério Clementino dos Santos. Nome grande demais para um homem de pouca coisa, dizia ele. Então se sentia feliz quando era chamado pelo apelido tão conhecido.

Não tive o prazer de conhecer o sertanejo Quiró, pois nascido e vivido num tempo já distante do meu percurso. Sua história sei por que ainda hoje os seus feitos são cantados em verso e prosa pelos quadrantes das terras caboclas. E como sempre ando com embornal para guardar coisas interessantes, foi juntando tudo que ouvi sobre esse cabra sem igual.

Viveu no tempo dos meus avôs, porém seus causos ouvi de outros senhores debaixo dos sombreados dos arvoredos de fim de tarde. Pelo que soube e guardei na algibeira - pois também tenho uma de couro cru -, o cabra Quiró foi o mais autêntico sertanejo que já existiu por aquelas bandas do Mundaréu.

Foi - em fases diversas da vida e também muita coisa ao mesmo tempo - um exímio vaqueiro, aboiador dos melhores, caçador renomado, rastreador de bicho afoito, cantador de versos tristes em noites de lua cheia. E muito mais, pois uns dizem que também foi coiteiro de Lampião e já outros asseveram que chegou a pegar em arma no famoso fogo da Cantirana.


Também dançador de forró sem igual na região. Quando se banhava no ribeirão e derramava por cima um frasco inteirinho de lavanda era sinal que logo mais estaria arrastando o roló carcomido pelos salões de arrasta-pé. Virava um copo de pinga, umburana da legítima, passava a mão pelos beiços e também pelos cabelos para ver se ainda estava assentado na brilhantina, e depois percorria o salão em busca de afoiteza.

Dançava de ficar completamente empapado de suor. Mas nunca passava das três da madrugada, pois mais tarde, logo ao alvorecer, já tinha de estar preparado pra lide. Cabra trabalhador igual a ele não existia em lugar nenhum. Dizem que quando não estava com empreitada certa, logo arrumava o que fazer. Saía pelos quintais ajeitando os cercados de um e outro, limpava na enxada a mataria, perguntava ao compadre se estava precisando de alguma coisa.


Trabalhador sem igual, mas também vivendo numa pobreza sem igual. Quase ninguém compreendia porque assim acontecia, vez que sempre solteiro, morando sozinho, sem ter mais de uma boca pra alimentar, e o homem nunca juntava dinheiro pra comprar sequer uma calça inteira. Vivia remendado, muitas vezes faminto. Contudo, umas poucas pessoas sabiam muito bem os motivos daquela pobreza toda.

Filho único, um dia prometeu à sua moribunda mãe no leito de morte que jamais descansaria em paz sem ter juntado tudo aquilo que até aquele momento a ela não tinha oferecido. Assim que a velha morreu - logo naquela noite -, daí em diante quase todo o dinheiro recebido pelo trabalho era levado pra debaixo do chão. Isso mesmo, pois cavou um buraco bem fundo nos escondidos da mataria e lá enriquecia uma botija para compartilhar com sua mãe assim que a reencontrasse.

Por conta disso, duas ou três pessoas que sabiam dessa história achavam que Quiró já não estava bom do juízo. Na verdade verdadeira, são de verdade ele não podia ser de jeito nenhum. Muitas vezes, debaixo do sol e do calorão, e ele era encontrado conversando com pedra. Mas outros dizem que o seu miolo ficou meio mole depois que tomou uma surra no meio do mato.

Um dia foi caçar e esqueceu de levar o naco de fumo pra deixar pros encantados bem em cima da pedra lisa. Dizem que tomou uma surra da caipora que ficou todo moído. Sobre a surra ele não negava a ninguém, e acrescentava que aquela foi a única vez na vida que havia chorado de raiva. E enraivecimento porque tomava lapada de todo lado e não conseguia ver a cara da covardia que lhe açoitava.

Desajuizado ou não, fato é que era reconhecido por muitos outros feitos. Montava num cavalo, vencia ponta de pau e galhagem espinhenta, se lanhava todo, mas derrubava o boi valente; ia buscar no fundo do baú os aboios mais antigos e após soprar o berrante fazia até pai de chiqueiro chorar; em noites de clarão enluarado tomava da viola de pinho e chamava para si o pé de ipê e a tristeza do jeca. Até a lua descia mais um tiquinho para ouvir aquele canto dolente.

Gostaria de ter vivido o seu tempo. Como gostaria de saber o que conversava tanto com seus botões e por que a cobertura do seu velho oratório era um chapéu de couro. E por que aquele retrato sem rosto entre os santos. E também aquela flor de mandacaru ao lado da vela acesa. Ah, Quiró, como eu gostaria de saber.

(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com
http://jmpminhasimpleshistorias.blogspot.com 

Nenhum comentário:

Postar um comentário