Lampião:....foi inimigo, mato. Não pergunto a quem. Só respeito nesse mundo,
Padre Ciço e mais ninguém.
Muitas batalhas,
sangue e crueldade contra os considerados inimigos. Mas, para o cotidiano
manchado de violência e intolerância na conhecida história do cangaço, a
Sexta-feira da Paixão também era santa e, sempre que possível, dia de pausa e
de reza com o bando. Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, (1898-1938) tinha,
sim, o seu lado beato, e muito apego aos princípios do catolicismo. Esta faceta
curiosa de um dos bandidos mais famosos do Brasil integra estudos inéditos do
pesquisador Antonio Amaury Côrrea de Araújo, autor de seis livros sobre
cangaço. “Ao contrário do que possa parecer, não houve nenhuma tentativa dos
historiadores de proteger a imagem da Igreja no contato com os bandoleiros. O
que há é desconhecimento mesmo”, constata o estudioso.
Renegada
pelo tempo, assim como a história do cangaço, nessa foto posam lado a lado
bandoleiros, soldados e padres
O trabalho,
que está para ser publicado, assinala os aspectos contraditórios da
personalidade do bandoleiro, responsável pelo extermínio de famílias inteiras
como os Gilo e os Quirino. Embora apreciasse ser tido como “bandido social”, e
chegar a ser biografado em vida como uma espécie de Robin Hood sertanejo,
Lampião jamais o foi. Nunca hesitou em aliar-se a alguns dos mais reacionários
coronéis nordestinos, como a família Malta, em Alagoas, integrada pelos
antepassados da ex-primeira-dama Rosane Collor. Em algumas ações, para ganhar a
simpatia da população, entretanto, agiu como se fosse um homem com uma certa
preocupação social ao dividir o produto dos roubos com o povo humilde.
Padre Cicero
Mas a devoção
de Lampião à Igreja, principalmente ao padre Cícero Romão Batista, o Padre Ciço
(1844-1934), era fato. Vingativo e cruel diante dos perseguidores, aos quais
chamava de “macacos”, revelava-se manso e humilde frente a sacerdotes. Seu
lugar-tenente Cristino Gomes da Silva Cleto, o Corisco, um dos mais temidos
chefes de bando, tinha comportamento similar. A veneração chegava a tal ponto
que Corisco, conhecido como Diabo Loiro, deu um dos filhos, Sílvio Hermano
Bulhões, para ser criado pelo padre José Hermano Bulhões. Vários sacerdotes,
como o padre José Kherle, pároco de Vila Bela (atual Serra Talhada, no
Pernambuco), terra natal de Lampião, tentaram tirá-lo da vida de crimes.
Outros, como os padres de Mossoró, Rio Grande do Norte, o combateram, revelando
dotes de estrategistas.
Com o Padim,
contra Prestes
O padre Cícero
foi protagonista do mais famoso encontro de Lampião e seu bando com
representantes da Igreja Católica, em 1926, em Juazeiro do Norte (CE).
Escondido na caatinga, o bandoleiro recebeu carta em que o líder religioso o
convidava para uma conversa. Durante o encontro com o padre-coronel, Lampião
recebeu a patente de ‘capitão’ dos Batalhões Patrióticos para enfrentar a
Coluna Prestes, movimento revolucionário que cruzava o sertão infligindo
derrotas humilhantes às forças que a perseguiam. Depois de armado, fardado e
municiado com o que havia de mais moderno, o cangaceiro e seu grupo desistiram
da empreitada após pequenos combates com patrulhas da Coluna. Ao perceber que
sua patente não seria reconhecida pelos inimigos, Lampião decidiu voltar à vida
de crimes – sem perder o contato com sacerdotes.
Ao que parece,
era mesmo conflituosa a mente do bandido acusado de mais de cem crimes de morte
e do sertanejo religioso que respeitava o poder temporal da Igreja, a honra das
moças e a valentia dos inimigos. Os encontros entre Lampião e seu bando e os
padres sempre tiveram algo de pitoresco, muito diferente dos combates com os
militares, que integravam as chamadas volantes. Virgulino andava com
escapulários e santinhos pendurados no pescoço. Os cangaceiros usavam também
rezas fortes que acreditavam protegê-los dos inimigos. Quando da morte de
Lampião e Maria Bonita, em 1938, na Grota de Angico, em Sergipe, foram
encontradas várias dessas orações.
“Meus avós não
fugiam à regra de religiosidade dos sertanejos. Quando entravam na igreja a
primeira coisa que faziam era tirar o chapéu em sinal de respeito”, observa
Vera Ferreira, neta de Lampião e Maria Bonita. “O fato de eles terem sido
fora-da-lei não invalida a influência da família católica em sua criação.”
Em rápida
conversa com o padre Emílio de Moura Ferreira, na fazenda Engenho, em Sergipe,
no ano de 1929, Lampião respondeu da seguinte forma ao questionamento do
sacerdote que o aconselhava a abandonar a vida de crimes: “Quá, seu padre, o
governo me persegue, mas os macaco não me mata porque sô um pé de dinheiro. A
vida só é boa pra macaco e bandido”, afirmara, confessando que corrompia
policiais para ter sossego. Dizia, também, que o desaparecimento dos bandidos
não interessava aos policiais.
A história do
padre Francisco César Berenguer, pároco de Monte Santo, na Bahia, tem outra
matriz. Decerto julgando-se muito esperto, o sacerdote, que se encontrou com
Lampião em Cumbe, no interior baiano, teve de contar com a ajuda de colegas
para escapar da morte. O cangaceiro pediu que o padre lhe cedesse o Ford de sua
propriedade para transportar o bando até a vizinha cidade de Tucano. Nas
proximidades de Algodões, Berenguer simulou um problema mecânico no carro. Os
oito cangaceiros acabaram passando para um caminhão de propriedade do também
padre José Eutímio. Dias depois, Lampião ficou sabendo que o padre Berenguer
estava se gabando de tê-lo ludibriado. Sem perda de tempo, fez chegar ao
sacerdote a seguinte ameaça: “padre Berenguer, no dia em que a gente se encontrar,
vou ensinar o senhor a enganar Lampião”. Graças à intervenção do também
religioso Zacarias Matogrosso, o sacerdote escapou da vingança terrível do
líder cangaceiro.
Padres
inimigos
Outro
sacerdote marcante para a vida de Lampião foi o alemão José Kherle. Claro, de
olhos azuis, o religioso foi o primeiro a manter contato com o bandoleiro,
ainda no começo de sua carreira criminosa. Persistente, Kherle não se cansava,
com sua fala enviesada, de aconselhar Virgulino e seus irmãos a controlarem
seus instintos. Na ocasião, Lampião e os demais integrantes da sua família já
estavam em guerra declarada com os vizinhos Saturnino, seus primeiros inimigos.
Já o padre
Artur Passos, de Sergipe, tido como ranzinza e disciplinador, em sua vez de dar
de cara com o bandido chamou-o de todos os nomes de que se lembrava.
Calmamente, Lampião lhe pediu autorização para assistir a uma missa, o que foi
concedido, desde que o bando deixasse as armas fora. O rei do cangaço assistiu
à celebração ancorado na sua pistola alemã Parabellum, e seus cabras carregavam
os fuzis e revólveres. E o padre saiu sem nenhum arranhão do episódio.
Se encontraram
pela frente sacerdotes dispostos a tirá-los do cangaço reconduzindo-os, de
volta à sociedade, os bandoleiros também toparam com padres-guerreiros que os
enfrentaram ou incentivaram outras pessoas a combatê-los. O caso mais famoso
foi o do padre Luiz Mota e o cônego Amâncio, que ajudaram, com a pregação
religiosa e apoio moral aos combatentes, a conferir a Lampião a maior de suas
derrotas: o ataque frustrado a Mossoró (RN), em 1927. “Os padres visitaram as
trincheiras onde estavam os defensores da cidade e, pedindo ajuda a Deus e a
Santa Luzia, protetora da cidade, estimulavam a resistência”, conta o
pesquisador Araújo.
Logo na
entrada do rei do cangaço e seus homens na cidade, os sinos das igrejas
começaram a tocar, nervosamente. Como especialistas no assunto, os padres
chegaram a opinar na correta instalação de trincheiras e não se cansavam de
arengar os moradores. “Coragem, rapaziada, que a vitória vai ser nossa”,
diziam. Do alto da torre da igreja, atiradores despejavam uma chuva de balas
sobre os bandoleiros. Na contenda, Lampião perdeu dois homens: Colchete, morto
em combate, e Jararaca, baleado alguns dias depois e enterrado vivo. O segundo
hoje é venerado como santo.
Nem a morte os
separa
Cruel e
valente como o chefe, Corisco, morto em combate com os soldados de José Rufino
dois anos depois de Virgulino, deu muitas mostras em vida de seu apego à
religião. A maior de todas, sem dúvida, foi oferecer o filho, Sílvio Hermano
Bulhões, para ser criado pelo padre José Hermano Bulhões, de Santana do Ipanema
(AL). Corisco jamais chegou a conhecer pessoalmente o sacerdote. Sílvio foi
entregue ao padre com 9 dias de idade. Hoje com 67 anos, vive em Maceió e
prepara um livro para contar a história de sua vida.
Mesmo antes de
entregar o filho ao padre, Corisco e Dadá haviam protagonizado outra história
interessante no trato com os religiosos. Certa noite, o padre José Bruno da
Rocha, de Porto da Folha (SE), recebeu de um morador de fazenda um pedido para
dar a extrema-unção a um moribundo. A cavalo, o sacerdote acompanhou o homem.
Ao chegar na fazenda, próxima à cidade, não encontrou nenhuma pessoa à beira da
morte, mas Corisco e Dadá, o segundo casal mais famoso do cangaço. Sem oferecer
resistência, José Bruno casou os dois.
Quando da
adoção, a carta enviada por Corisco ao padre José Hermano, relembra Sílvio
Hermano, continha muitos traços de religiosidade. “Padre, receba o nosso
filhinho. A madrinha dele é Nossa Senhora e o padrinho é o senhor mesmo”,
escreveu o bandoleiro. “Apesar de viver em um meio de total violência, papai
fazia questão de manter seus princípios religiosos”, comenta Sílvio. Dadá, que
o filho conheceu somente aos 18 anos, revelou que Corisco, assim como Lampião,
mantinha o hábito de rezar no fim da tarde.
Sílvio Bulhões filho de Corisco e Dadá
Na casa do pai
de criação, no entanto, o assunto cangaço era um tema tabu, sobre o qual
ninguém falava. Depois de adulto, Sílvio teve uma grande oportunidade para
retribuir o carinho dos pais biológicos, que o salvaram da morte certa nas
difíceis condições de vida na caatinga ao entregá-lo ao padre Bulhões. No fim
da década de 70, ele liderou uma campanha, enfim vitoriosa, para enterrar as
cabeças de Lampião, Maria Bonita, Corisco e mais um grupo de cangaceiros.
Diretor do Museu Etnológico da Bahia, o médico e pesquisador Estácio de Lima
queria manter as cabeças para pesquisas.
Depois do
enterro coletivo das cabeças, o crânio de Cristino Gomes da Silva Cleto, o
Corisco, foi retirado de um carneiro (espécie de urna) e enterrado em um túmulo
da família.
Dadá assistindo a retirada dos ossos de Corisco
Algum tempo depois, Dadá, cujo nome verdadeiro era Sérgia Maria da
Conceição, deu-lhe um enterro de highlander ao levar para o cemitério Quinta
dos Lázaros, em Salvador, os ossos do marido retirados de uma cova em Miguel
Calmon (BA). Os ossos e a cabeça foram novamente reunidos e enterrados juntos.
Fonte: Sindicato dos bancários do Estado de São Paulo !
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