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quarta-feira, 1 de abril de 2015

“O GLOBO” – 24/07/1942 BANDOLEIROS DAS CAATINGAS

Por Melchiades da Rocha

“PARA PEGÁ LAMPIÃO
QUE LEVA TUDO NA CHETA
NEM OS PODÊ DO CAPETA
DO BRABO, DO MAIORÁ” 

Foi Euclides da Cunha, sem dúvida alguma, quem primeiro provocou o exame das tristíssimas contingências, que caracterizam e quase esculpam os fenômenos de fanatismo sertanejo. Depois dele outros escritores tem procurado definir os mesmos fenômenos, mas sob formas meramente pitorescas. O estudo da atmosfera propícia ao cangaço não inquietou nunca certas críticas. Até bem pouco tempo o cangaço estava vinculado à politicagem. Os chefes políticos do sertão tinham alianças indestrutíveis com os cangaceiros e seus pandilhas. Por seu turno os grandes senhores territoriais também sempre acolheram os bandos de criminosos, que saqueavam as cidades nordestinas. É o caso dos “coiteiros”, que José Américo de Almeida estuda num romance excelente. Ao mesmo tempo as contrafações religiosas não deixaram nunca de estimular o banditismo, dele se aproveitando. Haja vista o exemplo do Juazeiro do Padre Cícero, onde se acaudilharam cangaceiros, beatos, criminosos de toda espécie. Ninguém se esqueceu de que, no governo Bernardo, o padre Cícero ali reunia bandos de cangaceiros, que vinham talando os sertões a ferro e a fogo, armando-os para a “defesa da legalidade”. Desde essa época Lampião se tornou flagelo maior, quase invencível. Astuto, conhecendo os lugares por onde corria perseguido mais ou menos... Ele dispunha ainda dos favores de coiteiros poderosos. Por sua conta outros bandidos se armaram, cometendo mortes espantosas e roubos audaciosos. Os caprichos dos cangaceiros chegaram a extremos incríveis. Lampião tinha o hábito de marcar com ferro em brasa suas vítimas, principalmente as mulheres que usavam cabelos curtos. Pelos cálculos esse chefe de cangaço arrecadara enorme fortuna, fazendo discípulos temíveis. O extermínio do cangaço vinha-se [...] de longo tempo. Mas, a politicagem, os coiteiros, os cúmplices poderosos impediam qualquer ação decisiva. Para combater Lampião, seu bando e os bandos dele nascidos e com ele solidários, seria preciso organizar uma força policial constituída também de homens da mesma polpa, isto é, de sertanejos intrépidos e com mentalidade análoga. Foi o que aconteceu, não há muito tempo: uma força de homens conhecedores do sertão e do cangaço conseguiu atacar “realmente” Lampião e seus terríveis “cabras”, exterminando-os. Poderia ter ficado aí. Mortos os cangaceiros, estava extinto o problema. O comandante da força, porém, cortando-lhes as cabeças, promoveu exposição dramática das mesmas. Sob pretexto de estudos, as cabeças dos bandidos passearam à toa, dando espetáculos constrangedores. Em Maceió o Dr. Lages Filho fez o estudo antropológico da cabeça do “Rei do Cangaço”, concluindo que lhe “faltavam as deformações cranianas, o prognatismo e outros sinais que Lombroso cita como característicos dos criminosos natos”. Defeito de Lombroso? Talvez... Os cangaceiros sempre reclamaram justiça. Conta-se que Lampião escolhera a carreira de bandido em virtude da morte injusta do pai pela polícia. Depois acostumou-se... É sempre assim. Segundo se depreende, as populações sertanejas reclamam mais assistência judiciária do que mesmo assistência sanitária. Pelo menos é o que Euclides da Cunha conclui. É também o que nos parece justo concluir ao cabo dos capítulos de “Bandoleiro das caatingas”, coletânea de reportagens de Melchiades da Rocha (Editora A Noite, Rio). Repórter, incumbindo-se de viagem ao Norte, logo depois da morte de Lampião, Melchiades da Rocha escreveu estas páginas. Não há nelas nenhum propósito de exame dos fenômenos sertanejos do cangaço, tão vinculados aos fenômenos do fanatismo religioso. Euclides da Cunha mostrou que a religião dos sertanejos era, como eles mesmos, mestiça. Mistura de temores primitivos, de malícias inconscientes, de instintos mal contidos, de ignorância astuta, de submissões absurdas, o fanatismo sertanejo não, mas estimula as crueldades nos crimes e a falta total de escrúpulos, sempre que as circunstâncias indicam. “Canudos” foi exemplo disso. O “Juazeiro”, do padre Cícero, teria sido exemplo pior ainda, se a politicagem da época hesitasse em admiti-lo como aliado... Há aqui uma página do maior interesse para quem venha a estudar os fenômenos do banditismo sertanejo. É a que nos dá conta do encontro do prefeito de Pão de Açúcar com Lampião. Este exigira-lhe quatro contos, para não cometer agressões na cidade. O prefeito quis entregar-lhe pessoalmente o dinheiro e o bandido marcou entrevista. Polido e severo, irônico e cauteloso, amável e astuto, Lampião não falou no dinheiro. Quando o prefeito lhe ofereceu, redarguiu com certa altivez: “O senhor dá o que quiser, pois eu dou mais por um amigo do que pelo dinheiro”. Daí nascera uma simpatia, que o prefeito não deixara esfriar mais... Lampião pedira-lhe, em seguida, charutos, bebidas, perfumes e outros objetos domésticos. Desde os dezesseis anos andava ele pelas caatingas e cidades, pilhando. Por diversas vezes quisera abandonar o cangaço. Mas o cangaço, uma vez colhendo o indivíduo, não lhe concede mais liberdade... O prefeito de Pão de Açúcar não pôde demovê-lo porque não podia anistiá-lo... Percorrendo as caatingas, destemido, nem sempre disposto a transigir, cometendo crimes repugnantes, para se defender com o terror ou conduzido pelos caprichos, Lampião entrara na lenda. Em torno dele se urdiram histórias espantosas. Os violeiros sertanejos fizeram do cangaceiro famoso uma espécie de herói, nas palestras, “cocos”, emboladas e desafios.

“Para pegá Lampião
Que leva tudo na cheta
Nem os podê do capeta
Do brabo, do maiorá.”

Toda gente se recorda da fascinação de Antônio Conselheiro, que Euclides da Cunha define e descreve tão lucidamente. Os soldados dos regimentos mandados contra Canudos tinham pelo rude taumaturgo respeito análogo ao dos fanáticos, por ele acaudilhados... O extermínio dos bandoleiros não constitui problema policial. Um deles, hoje velho e vencido, depois de longa vida na caatinga e na cadeia de Pernambuco (Antônio Silvino), falando a Melchiades da Rocha, esclareceu: “Isto não acaba assim. O rifle não conserta nada. Morreu Lampião, outros Lampiões aparecerão. O mundo por aqui continuará girando até que a justiça bata às portas do sertão. Mas, é incontestável que o extermínio do bando de Lampião e dos seus cúmplices, que formaram outros bandos, tranquilizou o Nordeste. Mas, é também certo que o terreno propício ao banditismo não foi alterado. A atmosfera dos sertões nordestinos ainda é a mesma. Daí, sem dúvida, a constante atualidade d’ “Os Sertões”, de Euclides da Cunha e dos próprios livros de quantos o tem imitado, quase sempre, escondendo as origens do que escreveram... O cangaço nordestino perdeu as figuras de evidência. Acreditamos que as estradas de penetração, os transportes rápidos e outros elementos de contágio influam para reprimir as tristíssimas contingências que caracterizam e, de certo modo, justificam e exculpam o banditismo das caatingas. Encontramos, a propósito, aqui, um documento sensível. É a carta de Alexandre Zebelê, homem rústico, que raciocina segundo o espetáculo da vida que o cerca. Dirigindo-se ao repórter diz: “O dotô sabe cumo são as terra aqui. O rijume do sertão é munto deferente, é rijume de cristão. As terra são de todos nóis. Mais porem nas matas onde hai usina, um manucipo todo é de uma famia só, que dá dia santo e ano intero. E quanto mais tem, mais qué”. O estilo lembra um pouco o dos “modernistas”, mas as ideias são nítidas e espelham compreensão e lamúrias, que reclamam providências mais seguras e enérgicas do que o mero extermínio do banditismo. É o que dizia Euclides da Cunha, há cerca de quarenta anos, depois de tenazes observações. Estas reportagens, sem propósitos eruditos e sem as arrogâncias que, hoje em dia, nomeiam sociólogos, têm extraordinária atualidade.

Obra do autor

Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa Sobrinho

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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