Por Melchiades da Rocha
“PARA PEGÁ
LAMPIÃO
QUE LEVA TUDO NA CHETA
NEM OS PODÊ DO CAPETA
DO BRABO, DO MAIORÁ”
Foi Euclides
da Cunha, sem dúvida alguma, quem primeiro provocou o exame das tristíssimas
contingências, que caracterizam e quase esculpam os fenômenos de fanatismo
sertanejo. Depois dele outros escritores tem procurado definir os mesmos
fenômenos, mas sob formas meramente pitorescas. O estudo da atmosfera propícia
ao cangaço não inquietou nunca certas críticas. Até bem pouco tempo o cangaço
estava vinculado à politicagem. Os chefes políticos do sertão tinham alianças
indestrutíveis com os cangaceiros e seus pandilhas. Por seu turno os grandes
senhores territoriais também sempre acolheram os bandos de criminosos, que
saqueavam as cidades nordestinas. É o caso dos “coiteiros”, que José Américo de
Almeida estuda num romance excelente. Ao mesmo tempo as contrafações religiosas
não deixaram nunca de estimular o banditismo, dele se aproveitando. Haja vista
o exemplo do Juazeiro do Padre Cícero, onde se acaudilharam cangaceiros,
beatos, criminosos de toda espécie. Ninguém se esqueceu de que, no governo
Bernardo, o padre Cícero ali reunia bandos de cangaceiros, que vinham talando
os sertões a ferro e a fogo, armando-os para a “defesa da legalidade”. Desde
essa época Lampião se tornou flagelo maior, quase invencível. Astuto,
conhecendo os lugares por onde corria perseguido mais ou menos... Ele dispunha
ainda dos favores de coiteiros poderosos. Por sua conta outros bandidos se
armaram, cometendo mortes espantosas e roubos audaciosos. Os caprichos dos
cangaceiros chegaram a extremos incríveis. Lampião tinha o hábito de marcar com
ferro em brasa suas vítimas, principalmente as mulheres que usavam cabelos
curtos. Pelos cálculos esse chefe de cangaço arrecadara enorme fortuna, fazendo
discípulos temíveis. O extermínio do cangaço vinha-se [...] de longo tempo.
Mas, a politicagem, os coiteiros, os cúmplices poderosos impediam qualquer ação
decisiva. Para combater Lampião, seu bando e os bandos dele nascidos e com ele
solidários, seria preciso organizar uma força policial constituída também de
homens da mesma polpa, isto é, de sertanejos intrépidos e com mentalidade
análoga. Foi o que aconteceu, não há muito tempo: uma força de homens
conhecedores do sertão e do cangaço conseguiu atacar “realmente” Lampião e seus
terríveis “cabras”, exterminando-os. Poderia ter ficado aí. Mortos os
cangaceiros, estava extinto o problema. O comandante da força, porém,
cortando-lhes as cabeças, promoveu exposição dramática das mesmas. Sob pretexto
de estudos, as cabeças dos bandidos passearam à toa, dando espetáculos
constrangedores. Em Maceió o Dr. Lages Filho fez o estudo antropológico da
cabeça do “Rei do Cangaço”, concluindo que lhe “faltavam as deformações
cranianas, o prognatismo e outros sinais que Lombroso cita como característicos
dos criminosos natos”. Defeito de Lombroso? Talvez... Os cangaceiros sempre
reclamaram justiça. Conta-se que Lampião escolhera a carreira de bandido em
virtude da morte injusta do pai pela polícia. Depois acostumou-se... É sempre
assim. Segundo se depreende, as populações sertanejas reclamam mais assistência
judiciária do que mesmo assistência sanitária. Pelo menos é o que Euclides da
Cunha conclui. É também o que nos parece justo concluir ao cabo dos capítulos
de “Bandoleiro das caatingas”, coletânea de reportagens de Melchiades da Rocha
(Editora A Noite, Rio). Repórter, incumbindo-se de viagem ao Norte, logo depois
da morte de Lampião, Melchiades da Rocha escreveu estas páginas. Não há nelas
nenhum propósito de exame dos fenômenos sertanejos do cangaço, tão vinculados
aos fenômenos do fanatismo religioso. Euclides da Cunha mostrou que a religião
dos sertanejos era, como eles mesmos, mestiça. Mistura de temores primitivos,
de malícias inconscientes, de instintos mal contidos, de ignorância astuta, de
submissões absurdas, o fanatismo sertanejo não, mas estimula as crueldades nos
crimes e a falta total de escrúpulos, sempre que as circunstâncias indicam.
“Canudos” foi exemplo disso. O “Juazeiro”, do padre Cícero, teria sido exemplo
pior ainda, se a politicagem da época hesitasse em admiti-lo como aliado... Há
aqui uma página do maior interesse para quem venha a estudar os fenômenos do
banditismo sertanejo. É a que nos dá conta do encontro do prefeito de Pão de
Açúcar com Lampião. Este exigira-lhe quatro contos, para não cometer agressões
na cidade. O prefeito quis entregar-lhe pessoalmente o dinheiro e o bandido
marcou entrevista. Polido e severo, irônico e cauteloso, amável e astuto,
Lampião não falou no dinheiro. Quando o prefeito lhe ofereceu, redarguiu com
certa altivez: “O senhor dá o que quiser, pois eu dou mais por um amigo do que
pelo dinheiro”. Daí nascera uma simpatia, que o prefeito não deixara esfriar
mais... Lampião pedira-lhe, em seguida, charutos, bebidas, perfumes e outros
objetos domésticos. Desde os dezesseis anos andava ele pelas caatingas e
cidades, pilhando. Por diversas vezes quisera abandonar o cangaço. Mas o
cangaço, uma vez colhendo o indivíduo, não lhe concede mais liberdade... O
prefeito de Pão de Açúcar não pôde demovê-lo porque não podia anistiá-lo...
Percorrendo as caatingas, destemido, nem sempre disposto a transigir, cometendo
crimes repugnantes, para se defender com o terror ou conduzido pelos caprichos,
Lampião entrara na lenda. Em torno dele se urdiram histórias espantosas. Os
violeiros sertanejos fizeram do cangaceiro famoso uma espécie de herói, nas
palestras, “cocos”, emboladas e desafios.
“Para pegá
Lampião
Que leva tudo na cheta
Nem os podê do capeta
Do brabo, do maiorá.”
Que leva tudo na cheta
Nem os podê do capeta
Do brabo, do maiorá.”
Toda gente se
recorda da fascinação de Antônio Conselheiro, que Euclides da Cunha define e
descreve tão lucidamente. Os soldados dos regimentos mandados contra Canudos
tinham pelo rude taumaturgo respeito análogo ao dos fanáticos, por ele
acaudilhados... O extermínio dos bandoleiros não constitui problema policial.
Um deles, hoje velho e vencido, depois de longa vida na caatinga e na cadeia de
Pernambuco (Antônio Silvino), falando a Melchiades da Rocha, esclareceu: “Isto
não acaba assim. O rifle não conserta nada. Morreu Lampião, outros Lampiões
aparecerão. O mundo por aqui continuará girando até que a justiça bata às portas
do sertão. Mas, é incontestável que o extermínio do bando de Lampião e dos seus
cúmplices, que formaram outros bandos, tranquilizou o Nordeste. Mas, é também
certo que o terreno propício ao banditismo não foi alterado. A atmosfera dos
sertões nordestinos ainda é a mesma. Daí, sem dúvida, a constante atualidade d’
“Os Sertões”, de Euclides da Cunha e dos próprios livros de quantos o tem
imitado, quase sempre, escondendo as origens do que escreveram... O cangaço
nordestino perdeu as figuras de evidência. Acreditamos que as estradas de
penetração, os transportes rápidos e outros elementos de contágio influam para
reprimir as tristíssimas contingências que caracterizam e, de certo modo,
justificam e exculpam o banditismo das caatingas. Encontramos, a propósito,
aqui, um documento sensível. É a carta de Alexandre Zebelê, homem rústico, que
raciocina segundo o espetáculo da vida que o cerca. Dirigindo-se ao repórter
diz: “O dotô sabe cumo são as terra aqui. O rijume do sertão é munto deferente,
é rijume de cristão. As terra são de todos nóis. Mais porem nas matas onde hai
usina, um manucipo todo é de uma famia só, que dá dia santo e ano intero. E
quanto mais tem, mais qué”. O estilo lembra um pouco o dos “modernistas”, mas
as ideias são nítidas e espelham compreensão e lamúrias, que reclamam
providências mais seguras e enérgicas do que o mero extermínio do banditismo. É
o que dizia Euclides da Cunha, há cerca de quarenta anos, depois de tenazes
observações. Estas reportagens, sem propósitos eruditos e sem as arrogâncias
que, hoje em dia, nomeiam sociólogos, têm extraordinária atualidade.
Obra do autor
Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa
Sobrinho
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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