Por Regina
Santana (nhyna19@gmail.com) e Victória
Damasceno
O clima frio
da capital paulista nos afasta da quente e seca realidade dos sertões
nordestinos. Pensar em sertão traz à mente o cenário mostrado por Graciliano
Ramos em “Vidas Secas”, cujas duras condições levam à animalização do homem. Se
a arte imita a vida, esta certamente ilustrou bem o Nordeste de outros tempos –
nem tão longínquos assim – em que a fome e a seca assolavam a população
e, no chão rachado da Caatinga, justiça era feita à ferro, fogo e sangue. É
nesse contexto que se viu surgir, da canga presa ao pescoço dos bois que
transportavam seus pertences e armas, os cangaceiros correndo às matas em suas
vestes de couro. São a prova viva da resistência, da representação da cultura
sertaneja, e que ao mesmo tempo foram figuras ambíguas, ora heróis, ora vilões.
“Hoje em dia
até que tá melhor, mas na minha época [a vida no sertão] era muito difícil. A
gente trabalhou de meeiro, sabe? Plantar na terra do outro pra ter o que comer
não é bom, não”. Assim conta, de forma simples, Francisco de Assis Santana, de
56 anos, cuja vida poderia estar descrita nas páginas de Graciliano, nas obras
de Guimarães Rosa ou nas canções de Luiz Gonzaga.
Nascido e
criado em São Miguel, no interior do Rio Grande do Norte, Francisco só conheceu
São Paulo aos 18 anos, quando saiu com os irmãos da cidade onde morava em busca
de melhores condições de vida. Sua infância não foi muito diferente da de
milhões de nordestinos, que, desde muito cedo, já conheciam as dificuldades da
vida sertaneja. Quando perguntado a respeito dos estudos, Francisco, muito
sério, responde: “Não tive muito não. Até a quarta ou quinta série, eu acho. Ou
a gente trabalhava ou estudava.”
Ele lembra de
sua infância na Caatinga com certo amargor. Não eram apenas as dívidas com os
donos de terra que incomodavam. Alimentação, moradia, vestimenta, tudo era
conseguido por intermédio de coronéis, que possuíam grande parte do comércio da
região. Francisco há muito não trabalha no campo, mas sabe que por lá, onde
nasceu, esse estilo de vida era exatamente como no tempo de seu pai e avô.
“Quem manda não somos nós”, ele diz, o que prevalece é “a lei do mais rico”.
As condições
precárias de vida, o duro trabalho no campo e a incerteza do futuro não
marcaram apenas a vida de Francisco, mas de gerações inteiras. A forte presença
do coronelismo na República Velha (1889-1930) modificou as relações de trabalho
e as estruturas sociais brasileiras, que se estenderam por muitos anos até a
chegada da indústria no País. Enquanto nas grandes metrópoles a vida política e
econômica crescia a todo vapor, nas áreas rurais parecia engessada no modelo
semifeudal de vínculo com a terra, propiciando, assim como nas cidades, a
exploração das classes mais pobres. No interior do Nordeste, onde o
analfabetismo era muito presente, essa condição de exploração se tornava ainda
mais evidente.
Perguntado se
se lembra de alguma figura marcante na cultura nordestina que tenha lutado por
mudanças sociais que quebrassem essa lógica de exploração, Francisco diz:
“Assim, desse jeito, não lembro. Mas tinha o Lampião, que a gente ouvia os
antigos falarem muito. Ele não era ‘ do bem’ mas ajudava a diminuir um pouco a
injustiça”.
Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião –Figura maior do cangaço
Mesmo 77 anos
após sua morte, o famoso cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião,
ainda é figura recorrente no imaginário social no que tange ao Cangaço. Foi o
grande líder do bando fora-da-lei, que impunha medo aos inimigos e respeito por
parte da população.
Oriundos do
descaso dos governantes e do monopólio dos coronéis locais, os primeiros
cangaceiros eram vaqueiros, lavradores e sertanejos que buscavam ascensão
social e, principalmente, vingança. Equipados com cangas de madeira e
utensílios de aço corriam as matas cortantes da Caatinga, pilhando comércios e
trens, invadindo grandes fazendas e, quase sempre, confrontando seus inimigos.
O que hoje é considerado um movimento social, na época, era um modo de vida
alternativo para aqueles que não mais aceitavam se subordinar à hierarquia do
sertão nordestino. Para o professor da Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia (UESB), Carlos Tadeu Melo Botelho, “O cangaceiro era uma espécie de herói
ambíguo. Eles não lutavam contra o governo em geral, lutavam contra autoridades
locais, contra a perseguição direita às famílias deles, mas não tinham um
projeto de modificação social”, afirma.
Cangaceiros do grupo de Lampião após o ataque deste bando a cidade de Mossoró.
Entrar para o
cangaço era uma forma de sobreviver à perseguição dos mais poderosos. Fazer
parte do movimento significava a mudança da identidade social, a ponto de não
mais poder voltar a ser um pacato fazendeiro. Nas palavras de Tadeu: “eles eram
cangaceiros até a morte”. Não podiam existir em outro lugar que não ali, pois
faziam parte daquela sociedade e dela eram fruto.
O espectro dos
membros era muito variado, o que não garantia uma unidade de comportamento e
propiciava divergência de interesses. Em comum, tinham a legitimidade da
cultura – as vestes típicas, a linguagem e os mitos – e seus códigos de
honra, que definiam a organização interna. Tadeu conta que, por serem frutos
daquela sociedade, seus comportamentos e costumes também pertenciam àquele
meio. “A conduta moral, o comportamento sexual, a religiosidade, tudo isso
aparece representado de uma forma muito próxima ao povo deles. O cangaceiro não
cai de paraquedas ali, ele não chega no sertão como muita gente chega na
favela. Ali é o lugar dele.”
Existe uma
dualidade no imaginário popular quando o assunto é o cangaço: ora são
subversores da ordem social, ora são heroificados. Muitas vezes, o paralelo com
o herói que tirava dos ricos para dar aos pobres, Robin Hood, emerge nesta
história. Mas nisso Lampião fica para trás. Quem se sobressai neste quesito é
aquele que o antecedeu na liderança do cangaço, o bandoleiro Antônio Silvino,
conhecido também como governador do sertão. Tadeu recorda-se do estudo sobre o
bandoleiro de autoria da professora Linda Lewin, da Universidade da Califórnia,
no qual afirma que os atos de Silvino eram muito mais robinhoodianos.
“Estudando o cangaço, ela chegou à conclusão de que a semelhança com Robin Hood
não era de Lampião, mas de Antônio Silvino. Ele usou a prática redistributiva:
grilava trens e dividia o que tinha dentro com a população, como uma forma de
agradar, esperando que assim o aceitassem.”
Lampião também
dividia sua grilagem com a população local, mas sua prática era mais visceral.
Tadeu afirma que o bando de Lampião era marcado pelo conflito e pela crueldade.
“Não eram progressistas. Eles destruíam tudo aquilo que pudesse ser fator de
perseguição.” Assim, enquanto apresentava uma face solidária, não deixava de
expor seu lado sanguinário. “Sua imagem é ambígua. Lampião era o bem e o mal.
Num ato de justiça estava embutida a injustiça. Ele é uma prova de que o bem e
o mal não existem em estado puro. As coisas que ele fazia eram completamente
ambíguas”, completa. Entretanto, o professor ressalta que não se pode ver o
Cangaço como uma luta de classes. Ainda que trouxessem benefícios para as
comunidades locais, suas ações não tinham qualquer intenção de revolucionar as
estruturas socais de poder ou tornar o Nordeste uma região mais justa.
Corisco e seus cachorros
Com Lampião a
realidade do cangaço também mudou em sua estética. Além das marcas
características, foram incluídos adereços e indumentárias em suas roupas,
reforçando ainda mais a hierarquia entre eles. “Quanto mais enfeitado, mais
poderoso era o cangaceiro”, afirma Tadeu. Essa mudança na imagem não veio à
toa, mas com a inserção das mulheres no bando. “Isso ocorreu na época de
Lampião, pois de 1870 até 1928, ou seja, 80% do tempo de cangaço, não haviam
esses enfeites. Mas com a entrada das mulheres em 1928, Dadá, Maria Bonita, os
cangaceiros passam a se enfeitar e isso passa a ser um reflexo da hierarquia”
Embora sua
presença tenha alterado a imagem representativa dos cangaceiros, as mulheres
eram inferiorizadas nas relações de poderes. Com exceção de Dadá e Maria Bonita
– esposas de grandes líderes – que chegaram a atuar diretamente como
cangaceiras, boa parte das mulheres do bando foram raptadas de suas famílias
unicamente para servir aos interesses do grupo. “O machismo
dominava a cultura. Houve alguns assassinatos de mulheres dentro do cangaço,
dois muito conhecidos por adultério. E apesar de terem sido violentos, as
mulheres que assistiram as outras serem assassinadas concordaram.”
No meio do
bando, entre enfeites, mulheres e liderança, Lampião pensava muito bem em como
desenvolveria a organização do grupo para que alcançasse todos os seus
objetivos. Para o professor Tadeu, de todas as características de Lampião, a
principal era ser um grande estrategista. Os documentos históricos provam sua
valentia ao ir de encontro à polícia e travar batalhas sempre com muita
precisão na condução da artilharia.
Durante os
anos em que existiu, a vida cangaceira foi marcada pelo uso da violência e dos
atos ilícitos, bem como pelo constante confronto com as autoridades. A pesquisa
histórica revela um cenário repleto de ações criminosas e atrozes,
incompreensíveis à primeira vista. Quando olhadas de fora, trazem o
julgamento a priori dos cangaceiros como bandidos iguais a todos os
outros. É preciso, no entanto, o olhar atento: o banditismo faz parte de uma
relação bilateral entre indivíduo e sociedade e aparece como efeito colateral a
uma série de desajustes. O cangaço está enraizado no cultura nordestina – seja
como movimento social ou como parte do imaginário – e também cumpre a função de
construir a identidade daquele povo e, de certa forma, dar unidade à sua
história. Daí a ligação intrínseca entre a memória constituída por esses
relatos e a atribuição de valores heroicos.
Para Tadeu
Botelho, “Lampião era herói ou bandido?” é uma pergunta meio falsa.“Como dizia
Guimarães Rosa: não existem heróis de se pegar. O herói é uma criação do
imaginário popular”, completa. Ainda que sua imagem esteja atrelada à
violência, a memória do cangaceiro também compõe um quadro muito mais amplo,
que diz respeito à afirmação indenitária e representatividade. O nordestino não
necessariamente apoia a violência quando se identifica com o cangaceiro; ele vê
não apenas a história de Lampião retratada nas obras, mas a sua própria herança
cultural.
A imagem do
cangaceiro mais famoso das terras sertanejas carrega em si o paradoxo que o
permite ser quem ele é. Enquanto ajudava sua gente, estava igualmente disposto
a fertilizar a terra seca com o sangue de seus inimigos. Se herói ou vilão, não
importa. A personagem viva no imaginário popular floresce o sentimento de medo
e gratidão, que permite não somente a ele, mas aos reis do cangaço, a imortalidade
na cultura popular nordestina.
Extraído do
blog do historiógrafo e pesquisador do cangaço Rostand Medeiros
http://tokdehistoria.com.br/2015/08/08/o-contraste-do-cangaco-no-caminho-do-sertao/
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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