Temos a
continuação da reportagem O Legado do Conselheiro, e na segunda reportagem Duas Vezes Morto, Duas Vezes Ressuscitado, e agora a
terceira parte O FIM DO TREME-TERRA, de uma série de cinco episódios,
feitas pelo Jornalista Roberto Pompeu de Toledo na revista Veja 3 de setembro
de 1997.
Uma onda de
temor varreu o sertão. Lá vinha ele: o Anticristo, o Corta-Cabeças, o
Treme-Terra. Muito tempo depois da guerra, ele ainda serviria de inspiração
para os cantadores. Como nesta quadra, recolhida por José Calazans:
Moreira César
foi ao céu
Com Tamarindo
ao seu lado
Sdo Pedro
falou assim:
A que cara de
malvado!
Antônio
Moreira César era o seu nome, coronel a sua patente. O oficial talvez
mais celebrado do Exército, a quem se atribuía bravura sem igual. Era
considerado o herdeiro do marechal Floriano Peixoto, falecido havia dois anos,
ídolo dos militares e patrono-mor dos "jacobinos", como eram chamados
os defensores mais intransigentes do regime republicano.
Euclides da
Cunha o descreve:
"O
aspecto reduzia-lhe a fama. De figura diminuta — um tórax desfibrado sobre
pernas arcadas em parênteses —, era organicamente inapto para a carreira
que abraçara. (...) Apertado na farda, que raro deixava o dólmã feito para
ombros de adolescente frágil agravava-lhe a postura. A fisionomia inexpressiva
e mórbida completava lhe o porte desgracioso e exíguo". E no entanto,
quanto respeito — e quanto medo — impunha à sua volta. Consideravam-no um herói
por sua atuação na repressão aos dois movimentos que haviam desafiado o regime
florianista — a Revolta da Armada, no Rio de Janeiro, e a Revolução
Federalista, no Sul.
Em Santa
Catarina para onde foi enviado com plenos poderes, para apagar os últimos fogos
da Revolução Federalista distinguiu-se pela ferocidade. Quando não fuzilava,
decapitava os adversários. Agora ia entrar na legenda do sertão.
"Na
Guerra de Canudos, depois de Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha, Moreira
César é o principal personagem", diz Oleone Coelho Fontes, outro dos
canudistas baianos, autor de um livro sobre Moreira César, o
Treme-Terra."
O elenco da
epopeia do sertão pode ser prolongado ao infinito: coronel Tamarindo, o segundo
de Moreira César, cabo Roque, herói efêmero de uma bravura que não houve;
marechal Bittencourt, o ministro da Guerra. Do lado dos conselheiristas, a
turma dos jagunços valentes, alguns formados na escola do cangaço antes de se
juntar ao Conselheiro e se tomar os cabeças de seu Exército improvisado: João
Abade, o "comandante da rua", como era conhecido — "rua" no
sentido de "arraial", de "cidade", de "área
urbana" e comandante porque era o chefe militar supremo: Pajeú, o temível
guerrilheiro das estocadas ardilosas, "forma retardatária de troglodita
sanhudo", segundo Euclides; Pedrão, que veio a morrer só em 1958, com
tanto gosto de lutar que dizia a José Calazans, quando já nonagenário, e
entrevado: "Faz pena um homem como eu morrer sentado". O mesmo
Pedrão, que mais de trinta anos depois de Canudos seria contratado pelo
interventor Juraci Magalhães para combater Lampião, justificava-se: "O
coração pedia para brigar".
A estes,
acrescentem-se os acólitos religiosos do Conselheiro: Antônio Beatinho, José
Beatinho, Paulo José da Rosa. José Beatinho, com sua bela voz, fazia as rezas
mais bonitas e mais pungentes. Havia o sineiro Timotinho. Até o fim, não
importava o vareio de balas, o troar de canhões e o mar de cadáveres que
se interpunham em seu caminho, nas ruas estreitas do arraial. Timotinho cumpria
a obrigação de tocar o sino. Morreram juntos, ele e o sino, um arremessado para
cada lado, quando uma bala de canhão atingiu a torre da igreja velha.
A Guerra de
Canudos é tão rica de personagens quanto a — releve-se a insistência na
comparação — de Troia e de personagens que igualmente foram se credenciando à
mitologia, tal a maneira como os descrevem, e tais as façanhas que lhes
atribuem.
Se o Brasil
fosse os Estados Unidos, e produzisse filmes como Hollywood, haveria aqui mais
filmes com Moreira César e Pajeú, Tamarindo e João Abade, do que há nos Estados
Unidos com o general Custer e Touro Sentado.
Canudos, entre
outras coisas, é uma esplêndida história, com uma trama de emoções e
imprevistos. A guerra começou com um equívoco. Correram rumores em Juazeiro, à
margem do Rio São Francisco a noroeste de Canudos, de que por causa do atraso
na entrega de uma encomenda de madeira para a construção da nova igreja do
arraial, os conselheiristas preparavam uma invasão da cidade. A população
assustou-se com o boato, o juiz local notificou o governador do Estado, Luís
Viana, e este resolveu enviar a Canudos — estamos em novembro de 1896 — uma
expedição punitiva.
Tinha 104
homens, era comandada por um tenente, Pires Ferreira, e estava destinada ao
primeiro dos sucessivos vexames que seriam impostos aos militares. Quando os
soldados estavam estacionados no povoado de Uauá, já perto de Canudos, sentiram
a aproximação de um estranho cortejo — uma fila de gente que rezava e entoava
cânticos religiosos, tendo à frente uma grande cruz e um estandarte do Divino.
"Parecia uma procissão de penitência", escreve Euclides. Era um
batalhão do Conselheiro, armado com o que foi possível juntar na circunstância
— velhos trabucos, facões, paus, pedras, foices. Depois de quatro horas de
combate, embora com muito mais perdas do que o inimigo, puseram-no a correr.
Terminava
aquela que passou para a História como a primeira expedição.
A segunda
expedição, comandada pelo major Febrônio de Brito, quintuplicou de tamanho —
550 homens — e pela primeira vez usou Monte Santo como base de apoio e ponto de
partida da ofensiva, algo que se repetiria nas expedições seguintes.
Monte Santo,
100 quilômetros ao sul de Canudos, é, hoje como há 100 anos, o lugar mais
interessante da região. O Monte Santo que lhe empresta o nome é a Sena de
Piquaraçá, que se eleva atrás da cidadezinha. Na verdade, a cidadezinha é como
outras do sertão. O que há de interessante no lugar é o monte, que lhe serve de
majestoso pano de fundo — um monte sulcado por um caminho que o vai galgando,
sinuosamente, subindo sempre, subindo até quase perder de vista e todo
salpicado de capelinhas, como se fosse, como escreveu Euclides da Cunha,
"uma escada para os céus".
Lá no alto, no
fim do caminho, há uma igreja maior, a Igreja de Santa Cruz. Trata-se de uma
via-sacra, em que as capelinhas representam os passos da Paixão. Foi construída
no século XVIII. 100 anos antes de Canudos, por um capuchinho italiano, frei
Apolônio de Todi. A subida até Santa Cruz, longa de 3 km, é penosa. O caminho é
não só íngreme, quase a desafiar alpinistas, como composto de chão rude de
pedras, cortantes algumas, escorregadias outras. No alto, bate um vento forte e
descortina-se um panorama deslumbrante da região.
O Monte Santo
de frei Apolônio, reprodução do que ele imaginava fosse o Calvário de Jesus —
na verdade muito mais alto, mais íngreme e mais penoso de subir do que o
Calvário ao qual se é apresentado em Jerusalém —, é o mais eloquente símbolo
material do catolicismo do sertão: um catolicismo feito de penitência de
severidade, de purgação atormentada e permanente dos pecados.
Hoje, ao
chegar a Monte Santo, depara-se com uma placa: "Benvindo Welcome.
Bienvenido. Monte Santo. Altar do Sertão". Como se a cidadezinha perdida
nos fundões do Brasil fosse visitada por estrangeiros. Não é, mas os sertanejos
continuam a procurá-la. Na Semana Santa, costuma atrair milhares de
devotos. Mas mesmo no resto do ano, e especialmente nas sextas-feiras, o dia da
feira na cidade, o movimento é grande. É o dia preferido pelos pagadores de
promessa.
O caminho de
pedras que sobe morro acima registra então um contínuo vaivém. Hoje são raros,
mas ainda há os que sobem de joelhos ou carregando pedras. Fica-se a perguntar
que tanto se peca, no sertão, que tanto se precisa de penitência? Monte Santo
evoca tanto a religião como cidade santuário, quanto a Guerra de Canudos.
No tempo de
suas peregrinações pelo sertão, antes de estabelecer-se no arraial. Antônio
Conselheiro visitou-a várias vezes. Um ano antes de estabelecer-se em Canudos,
encetou com seus seguidores, trabalhos de restauração em algumas das capelinhas
da montanha.
Quando os
soldados se reuniram em Monte Santo, segundo Euclides, a cidade tomou ares de
festa. Barracas militares, centenas de forasteiros: "Tudo aquilo era uma
novidade estupenda". A segunda expedição demorou quinze dias na cidade
antes de se pôr a caminho. E então, tudo foi muito rápido. Bastaram dois dias,
ao se aproximar de Canudos, para que ela também, fosse desarticulada e posta a
correr, depois de ter sido surpreendida pelo inimigo emboscado nos morros
próximos do arraial insurreto.
A humilhação
era demasiada. O irredentismo dos fanáticos" sertanejos, como começavam a
ser qualificados, virava questão nacional. O histerismo que tão frequentemente
caracteriza a vida política brasileira, materializado ora em denúncias
arrasadoras, ora em invectivas que desqualificam o adversário num dia como um
"comunista" no outro como "neoliberal", consolidava uma
fantasia: a de que Canudos era a ponta-de-lança de uma reação
monarquista.
Lembre-se de
que o regime republicano fora inaugurado havia apenas sete anos. O novo regime
já enfrentara o desafio da Revolta da Armada e da Revolução Federalista. Agora,
sob o disfarce do fundamentalismo religioso, vinha dos sertões uma revolta que
sem dúvida se ramificava pais afora, nos arraiais monarquistas, e quem sabe
tinha até apoio do exterior.
Para
debelá-la, só um bravo como Moreira César. Paulista de Pindamonhangaba, então
com 47 anos, o coronel foi convocado para chefiar os 1.300 homens que formariam
na terceira expedição. Da lenda de Moreira César faz parte uma coleção de
marcos na região. Na cidade de Euclides da Cunha, a antiga Cumbe, apontarão ao
visitante a casa em que ele ficou, quando por lá passou, a caminho de Canudos —
um sobrado hoje vazio e fechado, atrás da igreja.
Em Queimadas,
Monte Santo, em cada cidade se mostram os lugares de alguma forma ligados à sua
memória. No lugar chamado Umburanas, em Canudos, por onde corre o riacho do
mesmo nome há uma cruz, no meio do mato. Uma lápide explica, embaixo:
"Neste lugar foi abandonado, no dia 4 de março de 1897, o cadáver do
coronel Moreira César..."
Marco edificado por Oleone Coelho
O marco,
mandado edificar por Oleone Coelho Fontes, José Calazans, Renato Ferraz e
outros estudiosos de Canudos, foi inaugurado no dia 4 de março último,
centésimo aniversário do evento que rememora. Como pôde o coronel acabar desse
jeito? Ele vinha tão confiante... Ao se aproximar de Canudos, ordenou que se
disparassem dois tiros de um de seus quatro canhões Krupp. "Lá vão dois
cartões de visita ao Conselheiro", disse. Ao longo da marcha, sua
preocupação maior era que os conselheiristas abandonassem o arraial, privando-o
da glória de derrotá-las.
À medida que
se aproximava, o otimismo aumentara: "Vamos tomar o arraial sem disparar
mais um tiro, a baioneta". Ocorre que Moreira César rinha outro
adversário, tão difícil de vencer quanto o Conselheiro — ele próprio. Era
epilético, num tempo em que não se tinha como conter a doença. Sofreu dois
ataques durante a campanha de Canudos. Além disso, apresentava um temperamento
instável e impulsivo.
Certa vez,
navegando para o Rio de volta da campanha de Santa Catarina, com seus soldados,
mandou prender o capitão do navio, por suspeitar de uma traição para a qual não
havia evidência alguma.
Conselheirista
preso entre seus captores
Em Canudos,
da mesma forma como lhe sobrava confiança, faltou-lhe previdência. Mandou seus
homens ao ataque depois de longo dia de marcha penosa, sem descanso. Fê-los
avançar até para dentro do arraial e entrar numa luta corpo-a-corpo com os
conselheiristas — o que, além de facilitar a movimentação do adversário
familiarizado com o labirinto de ruelas, inutilizou a artilharia que não podia
disparar sob pena de atingir os próprias companheiros.
A situação se complicava. Moreira César ordenou um ataque de cavalaria mais desastroso ainda em se tratando não de uma planície aberta, mas de um inimigo entrincheirado num reduto cheio de barreiras. Com a situação cada vez mais feia o coronel deixou seu posto de comando, endireitou o cavalo em direção ao arraial e avançou, dizendo: "Vou dar brio àquela gente". Não foi muito além.
Atingido no ventre por uma bala, vergou-se, largando as rédeas. Os companheiros cercaram-no. "Não foi nada, um ferimento leve", disse. Morreu naquela noite. Os infortúnios de Moreira César e sua expedição estão magistralmente descritos em "Os Sertões".
Morto o comandante, a desarticulação da tropa foi geral. O coronel Pedro Nunes Tamarindo, que deveria sucedê-lo no comando — um homem "simples, bom e jovial", segundo Euclides, que já chegara aos 60 anos e não aspirava senão a uma reforma tranquila — proferiu então sua frase famosa, um clássico de todos os tempos das debandadas militares: "É tempo de murici, cada um cuide de si".
Tamarindo seria por seu turno abatido horas depois, quando transpunha o Córrego do Angico. Seu corpo foi recolhido pelos conselheiristas, empalado e erguido num galho, para assustar os imprudentes que porventura ainda viessem a ousar uma nova expedição contra o arraial sagrado. Os soldados não tinham como salvar os cadáveres ilustres.
No atropelo da fuga, com os sertanejos ao seu encalço, fustigando-os e roubando-lhes as armas e as munições, abandonaram o corpo de Moreira César nas Umburanas. A morte do cultuado coronel elevou à potência máxima o clima nacional de histeria. As turbas invadiram as ruas do Rio de Janeiro. "A correria do sertão entrava arrebatadamente pela civilização adentro", escreveu Euclides. "Vingança" e "morte aos monarquistas" eram as palavras de ordem.
Jornais monarquistas foram empastelados. Um monarquia o coronel Gentil de Castro, fiel escudeiro do último primeiro-ministro do Império, o visconde de Ouro Preto, foi assassinado. Criavam-se fantasias. Correram rumores de que um certo cabo Roque, ordenança de Moreira César, heroicamente, tinha permanecido ao lado do corpo do chefe e resistira até o último cartucho, preferindo a morte a permitir que o inimigo profanasse a sagrada relíquia.
Uma rua no Rio e outra em São Paulo foram batizadas com o nome do cabo Roque. Eis então que Roque aparece são e salvo, entre os últimos fujões retardatários e destrói o Roque da fantasia. O cabo Roque de verdade, desprovido de qualquer glória veio a morrer prosaicamente em 1900, de peste bubônica, no Rio. Quanto a seu malogrado chefe, ficava agora entregue aos cantos do sertão, mesmo que equivocados, confundindo o local em que foi abandonado o corpo com o da morte:
A situação se complicava. Moreira César ordenou um ataque de cavalaria mais desastroso ainda em se tratando não de uma planície aberta, mas de um inimigo entrincheirado num reduto cheio de barreiras. Com a situação cada vez mais feia o coronel deixou seu posto de comando, endireitou o cavalo em direção ao arraial e avançou, dizendo: "Vou dar brio àquela gente". Não foi muito além.
Atingido no ventre por uma bala, vergou-se, largando as rédeas. Os companheiros cercaram-no. "Não foi nada, um ferimento leve", disse. Morreu naquela noite. Os infortúnios de Moreira César e sua expedição estão magistralmente descritos em "Os Sertões".
Morto o comandante, a desarticulação da tropa foi geral. O coronel Pedro Nunes Tamarindo, que deveria sucedê-lo no comando — um homem "simples, bom e jovial", segundo Euclides, que já chegara aos 60 anos e não aspirava senão a uma reforma tranquila — proferiu então sua frase famosa, um clássico de todos os tempos das debandadas militares: "É tempo de murici, cada um cuide de si".
Tamarindo seria por seu turno abatido horas depois, quando transpunha o Córrego do Angico. Seu corpo foi recolhido pelos conselheiristas, empalado e erguido num galho, para assustar os imprudentes que porventura ainda viessem a ousar uma nova expedição contra o arraial sagrado. Os soldados não tinham como salvar os cadáveres ilustres.
No atropelo da fuga, com os sertanejos ao seu encalço, fustigando-os e roubando-lhes as armas e as munições, abandonaram o corpo de Moreira César nas Umburanas. A morte do cultuado coronel elevou à potência máxima o clima nacional de histeria. As turbas invadiram as ruas do Rio de Janeiro. "A correria do sertão entrava arrebatadamente pela civilização adentro", escreveu Euclides. "Vingança" e "morte aos monarquistas" eram as palavras de ordem.
Jornais monarquistas foram empastelados. Um monarquia o coronel Gentil de Castro, fiel escudeiro do último primeiro-ministro do Império, o visconde de Ouro Preto, foi assassinado. Criavam-se fantasias. Correram rumores de que um certo cabo Roque, ordenança de Moreira César, heroicamente, tinha permanecido ao lado do corpo do chefe e resistira até o último cartucho, preferindo a morte a permitir que o inimigo profanasse a sagrada relíquia.
Uma rua no Rio e outra em São Paulo foram batizadas com o nome do cabo Roque. Eis então que Roque aparece são e salvo, entre os últimos fujões retardatários e destrói o Roque da fantasia. O cabo Roque de verdade, desprovido de qualquer glória veio a morrer prosaicamente em 1900, de peste bubônica, no Rio. Quanto a seu malogrado chefe, ficava agora entregue aos cantos do sertão, mesmo que equivocados, confundindo o local em que foi abandonado o corpo com o da morte:
Coronel
Moreira César
Olho de cana
caiana.
Tomou chumbo
em Canudos
Foi morrer nas
Umburanas.
http://meneleu.blogspot.com.br/2016/04/canudos-o-fim-do-treme-terra.html
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário