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quarta-feira, 27 de setembro de 2017

MATUTICE E SABEDORIA

Por Rangel Alves da Costa

Menciono o termo matutice sem preconceito ou discriminação ao sertanejo, ao homem da terra, ao caboclo da aridez nordestina. Não se tenha, pois, como termo pejorativo, no intuito de macular a imagem de tão primoroso cidadão. Ora, também sou sertanejo, tenho-me como matuto e muito me honra ter nascido nas lonjuras sergipanas do São Francisco, em meio a um mundo de secas e sofrimentos, debaixo do sol e tendo a lua grande como alento bom depois da refrega do dia.
Homem da terra, da enxada e da foice, do arado e do machado, de uma simplicidade sem igual, mas também de inteligência sem par. Reconhecida é a sabedoria matuta, de lições e livros abertos desde os tempos primeiros, folheados de geração a geração através da palavra, do exemplo, dos costumes na vida. O homem da terra é sábio, é profeta, é adivinho, é professor, é conhecedor dos mistérios do tempo e de todos os mistérios. E quando mais envelhecido mais alçado ao panteão dos glorificados pela sabedoria.
Ninguém conhece mais de remédio caseiro que a velha senhora. Ninguém conhece mais de tempo chuvoso ou não do que o sertanejo. Ninguém tem poder igual ao caboclo matuto de adivinhar o que há nas entranhas da mata. Ninguém cura melhor todo tipo de enfermidade, utilizando somente de rezas e benzimento, do que a senhorinha agrestina. Ninguém além do sertanejo traz na palma da mão um livro escrito no calejamento dos dias, traz no sangue e na pele a lição maior de uma vida. De sua boca não sai senão aquilo cuja valia é maior que qualquer sentença de magistrado ou jurisprudência de tribunal.
Ademais, sempre fui do entendimento que o conhecimento popular possui igual – ou mesmo maior valor - aos demais tipos de conhecimentos, principalmente o científico. Não se esquecendo do fato que a Ciência, mesmo com seus títulos e honrarias, pode ser refutada e jogada ao esgoto em qualquer instante, desde que um novo conhecimento surja que lhe tire a validade de primado irrefutável. E o mesmo não ocorre com o conhecimento autenticamente popular, aquele passado de geração a geração, enraizado desde os primeiros tempos e repassado ao longo do tempo.
Daí que eu prezo muito mais um bom proseado entre matutos, entre homens do campo, entre sertanejos catingueiros, a qualquer conclave, reunião, discussão acadêmica, debate aflorado nos honoris causa. As teorias, por vezes, são incompreensíveis até mesmo aos teóricos. Os tecnicismos e os academicismos impedem as mínimas compreensões dos postulados. Não somente isso, pois existe uma filosofia insuportável, pedante, incompreensível, que tudo diz e nada diz, chegando a conclusão nenhuma, e aquela que chega aos ouvidos como verdadeiro livro aberto.
Vamos aos exemplos. A ciência meteorológica diz que vai chover tal dia e tal hora em determinado lugar. E se não chove, logo vem a desculpa que uma frente fria ou uma precipitação qualquer desviou a nuvem noutra direção. Mas com o homem do mato é diferente. Quando ele olha para a barra do horizonte logo vem a sentença de chuva ou não. E não há quem prove o contrário. Conhece a chuva pelo balançado das folhagens, conhece o prolongamento da seca pelo voo dos passarinhos. Conhece o tempo bom e o tempo ruim pelo simples olhar da experiência.
E então vai a medicina cobrando milhões para o mesmo serviço que as mãos de uma boa e velha parteira faz por amor ao ofício. E vem a psicologia dizendo que a vida é assim ou assada, enquanto o pai de família responsável chama seu filho num canto e lhe dá toda a psicologia da vida. Enquanto o médico passa uma receita com tarja preta, caríssima e dificílima de ser despachada, a senhorinha vai lá ao quintal e traz na mão a farmácia pronta e a cura perfeita. Ou o velho alquebrado chega ao pé do balcão e pede o remédio da hora. E acabou-se o reumatismo.
Mas o forasteiro que nada disso conhece e avista o sertanejo na sua matutice, na sua pouca palavra e no seu jeito humilde ser, logo tende a dizer que ali apenas mais um vivente dos sofrimentos impostos pelo homem e pelas securas da terra. Desconhece, pois, da raiz que brota a verdadeira sabedoria. Nada conhece de um saber tão profundamente original que até mesmo o silêncio é lição. O homem da terra sabe que nenhuma valia possui a palavra se da boca não sair a verdade a ser ouvida e acredita.
Recordo, por fim, o que disse o chapéu velho de couro ao anel dourado do doutor imponente: O brilho maior é o do sol mais quente e trago ele por cima e por dentro de mim.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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