Por Joel Silveira
(Da Agência Meridional)
A canção dos
boiadeiros, dos arigós e dos vendedores das feiras livres do Nordeste. – “Um
cabra já me contou que Lampião sabia de cor o meu “Suspiros de um sertanejo”. –
O sonho e o pesadelo. – “Sei poesia apenas para os gastos”. – Um poeta rústico
fala dos poetas cultos - A poesia em Pernambuco é um caso de polícia.
Nesta
reportagem da série “O caminho do Norte”, Joel Silveira nos conta a história do
poeta João Martins de Ataíde, poeta do sertão, da seca, das lendas, das
caatingas e dos bandoleiros. É um homem humilde, que tem sua pequena tipografia
na rua dos Pescadores, no Recife, e que escreve seus versos, diariamente, no
balcão onde seus “livros” se empilham. Mais de oitenta folhetos de João Martins
de Ataíde enchem hoje as feiras livres do nordeste brasileiro: são dramas e
“abecês”, lendas e desafios, numa poesia ingênua, forte e colorida.
A
intransigência da atual política pernambucana transformou a poesia também num caso
de polícia, e há quase um ano, o poeta Ataíde não produz nada, vítima da
censura.
RECIFE,
setembro – O poeta João Martins de Ataíde vive perdido na rua dos Pescadores,
nesta cinzenta e asfixiante Recife de hoje, mas seus versos e cantos correm,
livres, como um vento do povo, por todo o sertão nordestino do Brasil. Os
homens das caatingas e das margens dos rios cantam seus poemas: boiadeiros que
descem para o Cabrobó, arigós que fogem da seca, vendedores das feiras de
Juazeiro, Campina Grande e do Crato, todos os mendigos e cegos das estações da
Leste Brasileiro e da Great Western – a cuia de metal bate, desesperada, sob a
janela do vagão, e a voz triste enternece os heroicos passageiros a bitola
estreita:
“Pois o juízo
do pobre
Sempre vive em reboliço
Trabalha e nunca tem nada,
Parece mesmo um feitiço,
Se acorda ao romper da aurora
Para não perder a hora
De começar o serviço.”
Sempre vive em reboliço
Trabalha e nunca tem nada,
Parece mesmo um feitiço,
Se acorda ao romper da aurora
Para não perder a hora
De começar o serviço.”
Na cidade do
Lagarto, dentro de Sergipe, escuto, da boca de um violeiro, a história do
bandido Lampião:
“As crianças na orfandade,
Sem pão, sem pai, a chorar
Vendo a funérea desgraça
Entrar na porta do lar.
E ver seu pai inocente,
Ser morto barbaramente
Depois de tanto penar.”
“As crianças na orfandade,
Sem pão, sem pai, a chorar
Vendo a funérea desgraça
Entrar na porta do lar.
E ver seu pai inocente,
Ser morto barbaramente
Depois de tanto penar.”
E nunca mais
posso esquecer aquela cega que, na porta da agência da Navegação Aérea
Brasileira, em Petrolina, nos contou, a mim e aos meus amigos aviadores, a
desgraçada e lancinante história do retirante:
“É o diabo de
luto
No ano que no sertão,
Se finda o mês de janeiro,
E ninguém ouve trovão,
O sertanejo não tira
O olho do matulão”.
No ano que no sertão,
Se finda o mês de janeiro,
E ninguém ouve trovão,
O sertanejo não tira
O olho do matulão”.
Há dezenas,
centenas de cantos outros, e há mais de vinte anos que eles varrem as
caatingas, as serras, as desgraças, as fugas e as raras trovoadas do nordeste
brasileiro. João Martins de Ataíde é um poeta simples – sua fala é a fala do
povo, também a existência no sertão deixou vivas marcas no seu rosto, e ele me
confessa, cheio de uma ingênua pureza, que enquanto houver povo sua poesia
“dispensa inspiração”.
- Converso com
os homens das feiras, boiadeiros e sertanejos, e escuto suas histórias. Não
invento nada. A única coisa que faço é colocar os fatos no “metal de fala”.
LAMPIÃO E OS
“SUSPIROS DE UM SERTANEJO”
No seu “metal
de fala” (que equivale à “técnica poética” dos bardos cultos das cidades), João
Martins de Ataíde já colocou todas as lendas e contos deste Nordeste: histórias
simples e comoventes, heroicas e sentimentais, e sem dúvida alguma Ataíde é o
grande poeta popular do cangaço. Lampião, Corisco, Volta Seca, Gavião e Zé
Baiano são os heróis arrogantes, maus e valentes de algumas dezenas de “livros”
seus - e ele chama de livros os pequeninos folhetos de dez e vinte folhas que
são vendidos nas feiras do Nordeste por quinhentos centavos ou um cruzeiro. Na
tarde em que conversamos, ele me confessou um dos seus grandes orgulhos:
- Um cabra já
me contou que Lampião sabia de cor o meu “Suspiros de um sertanejo”. Me disse
assim: “Seu Ataíde, o capitão gostava muito dos seus versos. Quando a gente
parava num pouso, de noite ou dia, ele se livrava das ferramentas e começava a
ler poesias. O “Suspiros” era a que ele gostava mais”.
É de tarde,
estamos aqui na sua pequena oficina, afogados ambos num mundo de versos e
abecês; as pilhas dos folhetos se acumulam como pequenas montanhas, e lá
dentro, como um banguê infatigável e lírico, o prelo monótono vai moendo os
versos que, amanhã ou depois, ganharão todas as estradas do sertão.
Possivelmente parecerá muito estranho ao agente de polícia que, nestes últimos
quatro dias me segue incansável e paciente por todos os recantos do Recife, que
um jornalista do Rio esteja a perder seu tempo e sua curiosidade com o rústico
poeta Ataíde. Deixo-o, contudo, espetado na esquina, o glorioso charuto na
boca, a simbólica bengala no braço, e aqui dentro, perdido na história da
princesa Megalona” ou na “Discussão de um operário com um outro”, é como se
toda Recife fosse um mundo singelo e feliz, com seu povo sem medo andando pela
rua, com seus estudantes distantes dos cárceres e das masmorras, com sua polícia
apenas para afugentar ou restringir as atividades dos malfeitores ladrões. O
poeta João Martins de Ataíde me conta sua história: é um homem do sertão, mas,
falar a verdade, veio menino para a cidade grande – e de Cachoeira de Cebolas,
na Paraíba, onde nasceu, se lembra pouco:
- Me lembro
bem da cancela do engenho, que rangia muito.
Aos oito anos
de idade, conforme contou ao meu amigo Paulo Pedrosa, do Diário de Pernambuco,
encontrou-se com o primeiro cantador do sertão: Pedra Azul, que Ataíde julga um
dos sujeitos mais surpreendentes do mundo; ele me diz:
- Pedra Azul
era capaz de enfiar versos durante três dias seguidos. Só parava para beber
água.
Pergunto-lhe
quando lhe veio a primeira vontade de fazer versos, e Ataíde me responde:
- Foi no
campo, eu estava tangendo o gado. Me veio uma sonolência, então me sentei
debaixo de uma árvore; depois me deitei, e agora podia ver o céu azul lá em
cima. Me lembrei das glosas de Pedra Azul e comecei a improvisar os primeiros
versos. Tinha doze anos de idade.
Mais tarde,
com a ajuda de uma cartilha de ABC, de Laudelino Rocha, aprendi a ler –
“Tropeçando, mas ia”, me diz ele.
Ataíde nasceu
em 1880, mas com 18 anos já possuía um pequeno sítio em Cachoeira, na Paraíba,
e algumas cabeças de gado. Veio, porém, a tremenda seca de 93 e esfarelou tudo:
- Folha, rio,
lagoa e verde, tudo virou farinha.
Perdeu o que
tinha, arribou, como um simples cassaco, para Camaragibe, em Pernambuco. Mas
tarde, mudou-se para o Recife, e o Recife tem sido sua sede fixa. Aqui começou
a imprimir seus primeiros livros, aqui começou a ganhar seus primeiros
dinheiros. Fez uma pequena fortuna somente com as edições dos seus folhetos, e
pouco tempo depois do primeiro “livro” em cada feira livre do Norte, em cada
mercado, havia uma banca especial vendendo os versos do poeta Ataíde.
O RIO CONTRA O
POETA
Um dia João
Martins de Ataíde teve um sonho ousado, mas sua ambição redundou num tremendo
fracasso: é que ele resolveu fazer uma viagem ao Rio, onde tentaria divulgar
seus versos:
- Nunca tive
um pensamento tão besta.
Chegou ao Rio
com pouco mais de sessenta contos de reis, e ouviu de um amigo de viagem,
comissário de bordo, que o grande negócio da Capital Federal era comprar casa.
Comprou duas com o dinheiro, mas pouco tempo depois, ao assinar a escritura, um
tabelião se meteu no meio, artigos de lei foram recrutados, parágrafos e
códigos razões e imposições, e o poeta Ataíde acabou perdendo casa e dinheiro.
Hoje ele me diz, muito sério:
- Até agora ainda não compreendi direito aquele negócio: só sei que me deram uma porção de papel para assinar, me mandaram comprar selo e mais selo, e uma tarde o tabelião (me diz o nome do tabelião mas pede, “por todos os santos”, que não o divulgue) me informou com voz triste que eu não podia ficar com a casa. Me garantiu, porém, que eu recebia os 42 contos de volta, mas até hoje ainda estou esperando.
Com as sobras
do primeiro negócio falhado, Ataíde adquiriu um chalezinho suburbano, para os
lados de Marechal Hermes. Morava sozinho, com uma empregada. Um dia, porém, a
empregada, de combinação com o amante, um espanhol (possivelmente um futuro
falangista) trancou o poeta no quarto, e os dois saquearam a casa inteira. Não
deixaram anda:
- Eu gostava
de dormir numa rede, no quarto, apenas de cueca, porque o verão estava brabo.
Pois bem, meu amigo, quando acordei só tinha a rede e a cueca. Nem sair na rua
podia. Tive que escrever um bilhete ali mesmo e mandar buscar, por um menino
que ia passando, quinhentos mil réis de um amigo.
Acontecimentos
tão melancólicos e incômodos fizeram com que o Rio de Janeiro fosse
definitivamente arrancado do coração e das conjeturas do poeta João Martins de
Ataíde. Ele me diz:
- Como o
senhor vê, não posso gostar de uma cidade assim.
Além do mais,
outra coisa havia, essencialmente carioca, que era o tormento do bardor
sertanejo:
- A falta
d’água. Que coisa pavorosa! Como é que um cristão pode passar dois dias sem
tomar banho?
A CENSURA MATA
O POETA
Um amigo havia
me informado que há mais de um ano que Ataíde não escreve nada. Pergunto ao
poeta se é verdade, e ele responde que sim:
- Tem nove
meses que não faço uma sextilha.
- Muito
trabalho?
- Trabalho
nada. Meu trabalho é este mesmo. Sou eu quem escreve e quem imprime meus
próprios versos. E não preciso de ambiente. Escrevo aqui mesmo, em cima do
balcão, com este pedaço de lápis que o senhor está vendo. Já estou muito
prático.
Quais os
motivos, portanto, de sua trégua poética? João Martins de Ataíde fala vagamente
em cansaço, velhice, mas as verdadeiras razões ainda me são dadas pelo amigo
informante:
- Ataíde está
sendo vítima da censura mais estúpida. Ele tem mais de cinco manuscritos na
mesa do censor policial, pois que, como você sabe, aqui em Pernambuco também a
poesia é um caso de polícia. Somente um maníaco ou um mau poderá descobrir
qualquer caráter subversivo nos versos simples, rudes e ingênuos de Ataíde. Mas
você sabe até que ponto, entre nós, chegou a intransigência e o ódio dos
homens.
No dia
seguinte, quando levo ao poeta algumas cópias dos instantâneos tirados na
véspera, volto ao assunto. Mas Ataíde, algo inquieto, diz que nada tem
importância, que apenas implicaram com a sua linguagem, e que separou para me
ler o que ele julga sua melhor história no seu melhor “metal de fala”. Trata-se
do “Boi Misterioso” que, conforme diz a lenda:
“Durou vinte e
quatro anos
Nunca ninguém o pegou;
Vaqueiro que tinha fama,
Foi atrás dele e chocou;
Cavalo bom e bonito
Foi lá porém destacou”.
Nunca ninguém o pegou;
Vaqueiro que tinha fama,
Foi atrás dele e chocou;
Cavalo bom e bonito
Foi lá porém destacou”.
Sua voz é úmida
e fanhosa, e atrás dela, no mesmo ritmo, como se já houvesse decorado todo o
repertório do poeta, canta também o pequeno prelo:
“No sertão de
Quichelou,
Na fazenda Santa Rosa,
No ano de vinte e cinco
Houve uma seca horrorosa,
Ali havia uma vaca
Chamada “Misteriosa”.
Na fazenda Santa Rosa,
No ano de vinte e cinco
Houve uma seca horrorosa,
Ali havia uma vaca
Chamada “Misteriosa”.
Enquanto
Ataíde me lê, relanceio os olhos em derredor: há aqui, em cima da secretaria
entulhada, alguns volumes de poesias, Casimiro, as “Espumas Flutuantes” de
Castro Alves, as poesias completas de Gonçalves Dias. Mas Ataíde, minutos
atrás, me disse que conhece poucos poetas. Dos modernos ouviu falar vagamente
em Jorge de Lima.
- Não preciso
ler os poetas grandes porque não posso aprender nada com eles. Minha poesia
pobre eu vou buscar mesmo dentro de mim e dentro povo. É coisa que não precisa
banco de aula.
E num sorriso:
- Quanto à
minha, só sei para os gastos.
Deixo a
casinha da rua dos Pescadores noite quase fechada. O diligente agente policial
me espera na esquina e novamente se põe, na sua afanosa profissão, a me seguir
pelas enviesadas ruas do Recife velho. Eis aqui um pobre protagonista de um
drama muito rico; de um drama que, desdobrado com inteligência, poderia render
umas vinte ou trinta reportagens – e não deixo de invejar os possíveis
repórteres que viveram no Recife de há séculos, ocupados pelos holandeses. Mas
a questão é grave e o assunto longo. Sigamos o conselho do próprio poeta João
Martins Ataíde:
“Agora caro
leitor,
Entremos no conteúdo,
O livro tem pouco espaço
Para contar a miúdo.
Só num livro muito grande
Poderá se escrever tudo”.
Entremos no conteúdo,
O livro tem pouco espaço
Para contar a miúdo.
Só num livro muito grande
Poderá se escrever tudo”.
Diário da
Noite (RJ) - 08/10/1944
Do acervo do pesquisador do cangaço Antônio Corrêa Sobrinho
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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