Benedito Vasconcelos Mendes
Engenheiro
Agrônomo, Mestre e Doutor. Professor Aposentado da UFERSA e da UERN. Membro
Efetivo da Academia Norte-rio-grandense de Letras.
Zé Bento com
sua mulher Raimunda e seus 8 filhos viviam em uma casinha de taipa, coberta com
palhas de carnaúba, construída em uma nesga de terra que tinha sido
desapropriada para a construção do Açude Forquilha, localizada na extrema da
montante do referido açude. O Açude Forquilha situa-se ao lado da cidade de
Forquilha, na Zona Norte do Ceará. Este trabalhador sustentava sua família
exercendo as três profissões que todo sertanejo possui: agricultor, pescador e
caçador. Ele, sua mulher e todos os filhos eram analfabetos, porém
trabalhadores e sem vícios. O casal vivia para trabalhar para dar comida a sua
numerosa prole. Não bebia, não fumava e não jogava baralho nem bozó. Seu
trabalho árduo, de sol a sol, só dava mesmo para comprar a comida, pois viviam
maltrapilhos e descalços. Sua casinha, muito simples, nem mesa tinha, pois, a
família comia sobre uma esteira de palha de carnaúba estendida no chão da
cozinha. Apesar da pobreza da família, Zé Bento e sua mulher Raimunda viviam
felizes, conformados com sua miséria material, que segundo ele era a vontade de
Deus. O peixe (curimatã, piau, traíra, cangati, piranha vermelha e mais alguns
peixes nativos do sertão semiárido), a carne de caça (preá, mocó, tejo,
tatu-peba, tatu- galinha, avoante, marreca-viuvinha, marreca-verdadeira, pato
selvagem, veado-catingueiro, tamanduá e outros animais da caatinga) e o feijão
de corda, batata-doce e jerimum, cultivados na vazante do açude Forquilha, não
faltavam na alimentação da família, pois Zé Bento era muito trabalhador e
sempre estava caçando, pescando e cuidando da sua pequena plantação de vazante.
Os filhos não estudavam por falta de escola na redondeza do local onde morava.
A família ia levando a vida como Deus queria, conforme suas próprias palavras.
Eles não possuíam móveis nem roupas, mas o pouco que vendia do que excedia da
sua agricultura de subsistência dava para comprar redes de dormir e uma peça de
roupa para cada membro da família, por ocasião do Natal, que eles passavam na
casa de parentes na cidade de Sobral. A família só se ausentava de sua casa uma
vez por ano para ir à Sobral na véspera do Natal, para assistir à Missa do Galo
na Igreja da Sé de Sobral, oportunidade em que comprava redes e roupas para
usar durante o ano seguinte.
O casal era
dotado de fé religiosa extremada e de muito misticismo. Tinha um pequeno
oratório com imagens de gesso do Padre Cícero, Frei Damião, Beato Antônio
Conselheiro e de São José, garantidor das chuvas anuais. Aos trancos e
barrancos, a família ia levando a vida, até a vinda da terrível seca de 1958,
que impediu que Zé Bento encontrasse peixe e caça para matar e que tivesse
condições de fazer cultura de vazante no Açude Forquilha, quase seco.
Quando o DNOCS
- Departamento Nacional de Obras Contra as Secas abriu uma frente de trabalho
na Fazenda Aracati, para construir, em parceria com meu avô, um açude,
fornecendo 74 cassacos pagos pelo DNOCS, durante 8 meses, o agricultor Zé Bento
alistou-se na referida frente de serviço. Uma cena inesperada, grotesca, foi a
chegada daquela família desvalida, no pico do meio dia, descendo da caçamba de
ferro de um caminhão de carregar terra. A família, viajando sob um sol
escaldante numa estrada carroçal poeirenta e sobre a chapa de ferro quente da
caçamba, ficou aliviada quando o caminhão chegou na Fazenda Aracati e eles
puderam pular, um a um, de cima da carroceria. Nem animais são transportados
assim, no sol, levando poeira quente, em cima de uma caçamba de ferro
escaldante. A presença de Zé Bento naquela frente de serviço, aberta para dar
trabalho e renda aos flagelados da grande seca de 1958, chamou a atenção de
todos, pois foi o único trabalhador que chegou com toda a família e se
arranchou debaixo de um pé de oiticica, na beira do Rio Aracatiaçu. Geralmente,
os cassacos não levavam a família para o local de trabalho.
Dava pena se
ver a tristeza e o aspecto físico daquela família. Caquéticos, pálidos,
empoeirados, sem forças e exibindo uma profunda tristeza e intensa fome
convenciam pelo fenótipo qualquer pessoa da necessidade de ajudá-los. Zé Bento,
sua mulher Raimunda e os 8 filhos famintos, desnutridos, de cabelos ruivos de
tanta poeira da piçarra da estrada carroçal e maltrapilhos sensibilizaram o meu
avô, que passou a fornecer alimentos, não somente para o cassaco Zé Bento,
alistado na Frente de Serviço, mas para toda a sua família. Meu avô chorou ao
assistir a cena animalesca de alegria das crianças ao receber o primeiro prato
de comida. Avançaram todos, de uma só vez, sobre a comida, derramando-a sobre o
chão da sombra da oiticica. Para impor ordem, meu avô foi enérgico e improvisou
uma fila para receber o prato de feijão chumbinho (Feijão Preto), com farinha
de mandioca, jabá e rapadura, que foi engolido sofregamente, quase sem
mastigar, pelas crianças e adolescentes. Minha avó mandou desocupar uma parte
de um galpão, que servia de armazém de ração para o gado, e transferiu a família
da sombra da oiticica para o armazém de alvenaria, coberto de telhas. Logo, a
família passou a morar com mais dignidade, com latrina a céu aberto, local para
banho, potes com água de beber, local para armar as redes nos caibros da
coberta, cuias, cuités, gamelas, cochos, bancos de estirpe de carnaubeira, mesa
de pau-branco e cadeiras com tampo de couro cru de boi. Sendo homem
trabalhador, honesto e de boa índole, com pouco tempo, Zé Bento conquistou a
simpatia do meu avô e foi ser vaqueiro da Fazenda Aracati e de lá nunca mais
saiu. As secas catastróficas que se abatem sobre o sertão nordestino são
realidades cruéis, que transformam homens fortes, determinados e trabalhadores
em miseráveis. A fome, a sede e as doenças, especialmente a varíola, a catapora
e o cólera, definhavam e matavam o corajoso, destemido e forte sertanejo.
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