Imagine você, as 7h da manhã, ver sua casa cercada por 70 homens armados, prontos para extermina-lo. Este drama, viveu Chico Chicote em 1° de Fevereiro de 1927, e para lembrar o Fogo das Guaribas, fizemos esta matéria especial que marca os 92 anos do acontecido, que foi resultado do consórcio entre as volantes do Ceará, Pernambuco e Paraíba, com os potentados rurais do Cariri Cearense.
Em 28 de Janeiro de 1927, chegou a Brejo dos Santos (atual Brejo Santo), uma volante comandada pelo então Primeiro Tenente – José Gonçalves Bezerra, um dos mais sanguinários integrantes das forças policiais que o Ceará já possuiu em seus quadros, responsável também por parte das operações de desmonte e ataque do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. A justificativa para tamanha mobilização militar era a presença de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, em terras caririenses – cabe destacar que a região do Cariri foi um dos mais importantes pontos de pouso do grupo de Lampião e de outros cangaceiros, estando eles absolutamente confortáveis e seguros diante dos ilustres anfitriões que possuíam por aqui – e que as tropas estavam no rastro do cangaceiro, o que na realidade era apenas uma cortina de fumaça para uma complexa trama orquestrada anteriormente.
O objetivo final de José Bezerra e seu troço de malfeitores, era na realidade cumprir os mandatos de alguns potentados rurais da região, e dentre estas missões, estava o aniquilamento de Francisco Pereira de Lucena (Chico Chicote), Antônio Grangeiro e Antônio Marrocos de Carvalho ( Nêgo Marrocos).
Não era novidade o uso das forças militares do estado como braço armado do coronéis, muitos casos são relatados na crônica histórica, onde o poder político e financeiro exercido pelos mandões locais foi suficiente para corromper os que deveriam prezar pelo cumprimento da lei, e o caso aqui relatado trata justamente de mais um destes “pacotes de pistolagem” negociados pelos coronéis e executados a seu mando.
UM ALVO A SER ATINGIDO
O caso de Antônio Marrocos de Carvalho é um dos mais absurdos presentes neste relato; residente em Macapá – a época um distrito de Jardim, e atualmente cidade de Jati – Nêgo Marrocos era um coletor de impostos que ganhava expressão popular com rapidez, sendo assim uma verdadeira pedra no sapato nas carcomidas lideranças políticas tradicionais do lugar; o sujeito sofreu difamações e até emboscadas, mas diante do insucesso destas, foi na pessoa do Tenente Zé Bezerra que os mandões do local encontraram solução para seus problemas.
Usando como argumento o fato de que no passado, Antônio Marrocos havia dado abrigo a Lampião e seu bando, Zé Bezerra o convidou para uma missão contra o cangaceiro, o que segundo ele afastaria das autoridades policiais e da população, a sua fama de coiteiro, e traria tranquilidade aos seus dias seguintes. Nêgo Marrocos seria figura central no desenrolar do objetivo final da missão, que era por fim a vida de Chico Chicote e Antônio Grangeiro. Vale destacar que o fato de dar coito a um grupo armado nem sempre é uma atitude voluntária de quem executa, muitos dos que sofreram retaliações e violências por conta dessas ações, as fizeram por meio de coerção
CHICO CHICOTE E ANTÔNIO GRANGEIRO
Francisco Pereira de Lucena nasceu em Brejo dos Santos, em 08 de Janeiro de 1879, e era o filho caçula do Capitão Francisco Pereira de Lucena e Donina Maria de Jesus; Chico Chicote era o que comumente chamamos de “Nó Cego” aqui no sertão; ainda jovem deu provas de seu caráter autoritário e violento, tendo sido expulso do Seminário São José, em Crato, após tentar ferir com um canivete um dos alunos da instituição. Já na vida adulta, Lucena era um tipo robusto o suficiente para impor medo, falava sempre aos berros e demonstrava desdém por qualquer autoridade, assim como também grande lealdade com sua parentela e amigos, e grande receptividade aos que buscavam a casa grande de Guaribas como local de pouso.
Era este homem, compadre de Antônio Gomes Grangeiro, dono do Sítio Salvaterra, em Brejo Santo, uma localidade próxima a Guaribas, numa relação que diante dos relatos e depoimentos, não era totalmente sadia, o que seguia em certa medida o padrão das relações que envolviam os coronéis de outrora. Grangeiro estava há algum tempo envolvido em disputa de terras com José Franklin de Figueiredo, o José Franco; segundo o depoimento de D. Raimunda Grangeiro, última filha viva de Antônio Grangeiro, o pai não havia até o momento buscando meios violentos de resolver a demorada peleja, mas isto não impediu que Chico Chicote, com a desculpa de tomar as dores do amigo, assassinasse José Franklin, causando a ira de Sinhô (Sebastião) Salviano, cunhado do falecido, que diante da fama e capacidade de Chicote, preferiu se retirar para Princesa Isabel, na Paraíba, onde buscou o apoio de José Pereira Lima, o maldito Zé Pereira de Princesa, que o ajudou a montar um pequeno exército de jagunços, e a fazer contato com o Tenente Zé Bezerra, que ficaria responsável por dar ares de legalidade a ação, atendendo assim aos interesses particulares dos coronéis. Assim, fechamos o segundo elo desta narrativa, sendo importante destacar que não existem indícios de que Antônio Grangeiro fosse o mentor intelectual do assassinato de José Franklin, muito pelo contrário, há versões que indicam que Chico Chicote possuía dissabores antigos com o morto, e que diante de uma justificativa que aliviava sua culpa, executou a ação.
A MARCHA SANGUINÁRIA
A volante de Zé Bezerra era composta inicialmente por cerca de 70 homens, sendo o seu auxiliar imediato o Tenente Verissmo Gondim, e acompanhava o batalhão assassino, o Nêgo Marrocos, de quem já falei anteriormente, e que agora irei explicar o motivo de sua importância para a execução dos planos de Bezerra.
Marrocos era amigo de Chico Chicote, e conhecia a casa grande de Guaribas como poucas pessoas, além do mais, sua presença junto aos militares causaria um retardo no poder de resposta após o início do tiroteio. O padrão da construção desses imóveis os tornava verdadeiras fortalezas, localizadas em pontos que proporcionavam visão estratégica, e construídas para durar e para proteger seus moradores de ataques como os dessa natureza, assim sendo, e agindo dissimuladamente para não levantar suspeitas de Antônio Marrocos e outras pessoas que topou no trajeto, Zé Bezerra fraudou documentos e fazia questão de destacar que a passagem na casa de Chicote seria
somente com a finalidades pacificas, tendo supostamente solicitado uma planta da construção, no que teria sido atendido por Marrocos.
Nas primeiras horas de 01 de Fevereiro de 1927, a caminho de Guaribas, que hoje está inserido no munícipio de Porteiras, os militares fizeram parada no casarão do sitio Salvaterra, em Brejo Santo, morada de Antônio Grangeiro, onde com grande violência renderam a ele e mais três pessoas: João Gomes Grangeiro (Louro Grangeiro), Raimundo Madeiro Barros (Mundeiro) e Aprígio Temoteo; o primeiro era sobrinho de Antônio, e os dois últimos moradores de suas terras.
A volante seguiu sua marcha em busca de Chico Chicote, e estima-se que faltando apenas 500 metros da casa do mesmo, Zé Bezerra, para não espantar Nêgo Marrocos e nem dar alarde de sua aproximação, ordenou que o grosso da tropa estacionasse junto dos prisioneiros e aguardasse novas instruções, tendo feito o restante do trajeto acompanhado somente de Marrocos, do Tenente Verissimo Gondim, e também do Sargento Antônio Gouveia e João Alves Feitosa, este último era corneteiro e apelidado de Louro. Enquanto isso, a sorte de Antônio Grangeiro e seus companheiros seria das piores: foram assassinados a tiros, em seguida degolados e tiveram seus corpos incinerados.
A aproximação de Guaribas estava ocorrendo como previsto: Marrocos foi reconhecido pelas pessoas que já enchiam o “oitão” do imóvel, que por sua vez avisaram a Chico Chicote da chegada de seu amigo; eram 7h da manhã. Em seguida, Verissimo Gondim desferiu um disparo nas costas de Antônio Marrocos, que tombou em suas últimas agonias. Em depoimento alguns anos depois, Mundinha Piancó, viúva de Marrocos, informou que o militar responsável pelo disparo havia sido subornado com 5 contos de réis, valor considerável para a época.
Chico estava nas suas plantações vizinhas a casa, preparando os alimentos que seriam utilizados nas festividades de Nossa Senhora das Candeias, sua santa de devoção. Ao escutar o disparo, correu junto do filho, Vicente Inácio, e de dois cabras seus, Sebastião Cancão e Mané Caipora, para a frente do casarão. Armado de rifle, iniciou o combate aos agressores, tendo sido Sebastião Cancão o responsável por derrubar o corneteiro com um tiro na cabeça, enquanto este soava o instrumento que avisou ao restante dos atacantes que era hora de marchar; foi a primeira baixa no lado das volante.
Durante a marcha dos que haviam ficado de tocaia, Joaquim Morais, morador de Chico Chicote, deitou fogo nos militares, travando intenso tiroteio, mas que diante do volume da tropa, terminou sucumbindo e sendo incinerado num depósito de milho nas imediações. A chuva de balas era enorme, o casarão passou a ser atingido por todas as frentes e a resistência era composta por pouquíssimas pessoas, basicamente Chico, seu filho, os dois cabras, e sua esposa e filha, estas últimas atuando na refrigeração e recarregamento dos rifles, tendo como auxilio uma gamela de água.
Ali próximo, na Sitio Malhada Funda, Lampião escutava o intenso tiroteio, e supostamente teria declarado: “Se fosse meu amigo, eu ia lá”. Mas não era o caso,
Chicote era inimigo declarado do Rei do Cangaço, tendo se indisposto com ele após Virgulino ter “levantado falso” num caso de abate de reses do Coronel Pedro Martins, da Fazenda Cacimbas. Antônio Grangeiro também não mantinha laços com o cangaceiro, tendo sido um dos integrantes de um abaixo assinado solicitando reforços policiais contra o bandoleiro, no que foi respondido com uma visita de Lampião em 31 de Janeiro de 1927, véspera do ataque; ciente da ida do cangaceiro, fugiu Grangeiro para evitar danos maiores, tendo sua esposa, D. Celina, relatado que o Virgulino havia dito que não temessem a ele, mas aos “bonzinhos” que vinham no seu rastro, obviamente o Tenente Zé Bezerra e seu magote. Assim temos a dimensão da rede de informações que Lampião dispunha.
Também da sede de Porteiras foi possível ouvir a intensa troca de tiros, e um contingente de 50 pessoas – incluindo dois filhos de Chico, seu genro, populares, e membros do destacamento policial – rumaram para Guaribas, acreditando que era Lampião o responsável por perpetrar o ataque; grande surpresa tiveram ao se deparar com verdadeiros bandidos fardados sitiando o casarão, mas ainda assim endossaram a resistência. Os que já estavam no imóvel eram muito habilidosos com as armas, prova disso é que antes da chegada dos reforços, estavam dando combate cerrado, de modo que as 16:00, Antônio da Piçarra conseguiu meios de tirar Chico daquela peleja, no que foi rechaçado pelo Coronel de Guaribas, que afirmou que dali não sairia, tamanha eram a afronta que estava sofrendo, Chicote perdeu assim sua última chance de salvação.
As 17h chegaram no local volantes do Pernambuco e da Paraíba, esta última reforçada com a participação e comando de Sinhô Salviano; a combatividade de Chico era tão grande, que mesmo após a fuga de boa parte de seus aliados, estando acompanhado de pouquíssimas pessoas, dentre elas o fidelíssimo Mané Caipora, causou sérios estragos nas forças policiais, que somavam um troço de mais de 200 homens. Chicote corria em cada porta e janela do imóvel, dando a impressão de que várias pessoas estavam atirando, e assim afastando os invasores.
O DESFECHO
Após 31 horas de combate, às 14h do dia 02 de Fevereiro de 1927, baleado no maxilar inferior, no braço esquerdo e com o tiro fatal no tórax, Chicote foi encontrado de joelhos, amparado na parede, na posição de atirar e ainda com uma bala na agulha. Estava completamente escura a sua pele do rosto, mãos e braços, por efeito das horas de disparos por ele executados, e naquele momento Sinhô Salviano executou sua vingança pela morte do cunhado, encravando na axila esquerda de Francisco um punhal, configurando semelhante ferimento ao que Chico havia causado em José Franco.
A atuação da família de Chico neste caso, causo imensa estranheza na época, e ainda causa atualmente. A família Chicote era influente na região, de modo que Quinco Chicote era chefe político de Brejo Santo, e dispunha de aliados em toda a redondeza, ainda assim, o mesmo não enviou ajuda ao irmão sitiado, e nem autorizou que coronéis como Isaias Arruda, de Missão Velha, socorressem o atacado. Foi também um sobrinho de Chico quem guiou os assassinos do tio até sua casa, e há indícios de que a atuação de Zé Bezerra era de conhecimento do presidente do estado, Moreira da Rocha, tendo existido influência da família no pedido de intervenção do governador. Tais fatos, deveras escandalosos, são decorrentes de intrigas e desavenças de Chico com os seus familiares, mas houve e há quem diga que o coronel de Guaribas, independente dos dissabores, jamais deixaria de socorrer os parentes e amigos, imagine então conspirar contra eles.
Após a morte de Chico, a propriedade foi totalmente devastada. Animais foram mortos, plantações incineradas, dinheiro, joias e tecidos foram roubados, e até as propriedades vizinhas foram atacadas. Na sede de Brejo Santo, os comandados de Zé Bezerra causaram o terror na população, principalmente nos parentes de Chicote.
Passado o tiroteio e a retirada das forças policiais, populares seguiram até Guaribas para resgatar feridos e o corpo de Chico Chicote. Mais de 20 baixas foram contabilizadas entre os membros da volante, que foram sepultados ali mesmo, fator que contribuiu com a fama de que o local tornou-se assombrado. Chicote foi velado na casa de seu irmão, Pedro Lucena, na Rua da Taboqueira, em Brejo Santo, tendo sido sepultado por volta das 9h do dia 03 de fevereiro no cemitério da mesma cidade. Dona Geracina, sua esposa, e sua filha, Josefa, também foram levadas até Brejo, onde foram amparadas.
Zé Bezerra foi assassinado em 10 de maio de 1937, envolvido em mais um caso escabroso, o do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. Veríssimo Gondim foi morto em 26 de junho de 1932 – atingido pelas costas assim como fez com o Nêgo Marrocos – pelo coronel Raimundo Augusto Lima, suas últimas palavras teriam sido: “Que homem falso”. Suas ações foram questionadas na época, e hoje principalmente.
Ao fim de tão longo relato, convém destacar que este artigo não traz defesa a figura de Chico Chicote, e sim uma abordagem do uso da máquina pública e suas forças de repressão ao bel prazer dos coronéis e lideranças políticas, sendo inegáveis as permanências históricas de algumas destas práticas, infelizmente. Casos como o Fogo das Guaribas e o Caldeirão, trazem à tona as motivações que fundamentam a ojeriza de boa parte da população as forças policiais naquele período, sentimento este que ainda pode ser sentido. O casarão de Chico Chicote foi demolido no inicio dos anos 2000, e em memória de Antônio Grangeiro e dos outros que foram brutalmente assassinados junto a ele, foi erguido um mausoléu, que hoje corre risco de ser demolido.
Casarão de Chico Chicote – Revista Itaytera
Antônio Marrocos (Nêgo Marrocos) – Blog do Mateus Silva.
Tenente José Bezerra – Jornal O Povo
FONTES:
MACEDO, Joaryvar. Império do
Bacamarte. Fortaleza: Editora UFC, 1990.
ANSELMO, Otacílio. A Tragédia de Guaribas. Itaytera, Crato, 1972.
COMO CITAR:
JÚNIOR, Roberto. O Fogo das Guaribas – A tragédia de Chico Chicote. Juazeiro do Norte, 12 jun. 2019. Disponível em: https://cariridasantigas.com.br/o-fogo-das-guari…de-chico-chicote/. Acesso em: 12 jun. 2019.
Agradecimentos especiais a Alexandre Medeiros e sua família, que gentilmente nos receberam em sua casa e nos guiaram até o local do Fogo das Guaribas, e a Bruno Yacub, pela parceria e empenho na causa.
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