Por: Luiz Nogueira Barros(*)
Padre Bulhões
Impossível esquecê-lo. Era árido como o sertão em tempos de seca. Mas tal o mandacaru, resistente planta dos sertões, tinha água e sabia doá-la para os necessitados e perdidos naquelas plagas longínquas, nas horas cruciantes. Sua casa era um porto seguro para os desamparados da sorte. E o seu olhar, por vezes severo, escondia a complacência própria dos homens de grande santidade.
Padre Bulhões - Pai adotivo de Sílvio Bulhões - filho dos cangaceiros: Dadá e Corisco
na direção da Matriz de Senhora Santana, onde as obrigações religiosas completavam a sua modesta existência.
Abusado? Era-o, de fato. E quando precisava dar alguma lição de moral para algum herege suas palavras terminavam sempre assim:
"- Compreendeu... compreendeu... compreendeu seu safado?".
Se compreendido, a sua complacência de pastor de almas mostrava, de súbito, o lado bom do seu coração. Seu passo seguinte era o de recuperar o herege.
Durante anos a sua casa foi um orfanato onde meninos e meninas desvalidas se fizeram moças e homens. Até mesmo, um dia, recebeu um
bilhete de "Corisco", lugar-tenente do temido cangaceiro "Lampião", que lhe enviava um filho recém-nascido que não podia crescer naquela vida do cangaço.
Falava-se, à boca miúda, que "Lampião" e "Corisco" tinham uma devoção com Senhora Santana, além de respeitarem o seu pároco. E que por isso jamais entrariam nos domínios da santa. E o menino se fez homem à sombra daqueles domínios sagrados.
Aderbal Nogueira e o filho do cangaceiro Sílvio Bulhões
Mas padres Bulhões tinha um grande amigo, o "Seu" Edmundo, o chefe do Leilão da Santa. Fabricante de "gengibirre", um delicioso suco de gengibre, "Seu" Edmundo o vendia em garrafas de louça com rolhas fortemente amarradas por barbantes. Tanto que, retirados os barbantes ouvia-se um estampido semelhante aos das garrafas de champanhe e logo depois o suco borbulhante descia como cascata pela boca da garrafa enlouquecendo o apetite dos meninos.
"Seu" Edmundo, assessor de muitas viagens do padre Bulhões pelos distritos num velho
"jipe", tinha as mesmas afobações do seu inseparável amigo. E um dia, numa viagem para Cacimbinhas, os dois se esqueceram de acertar a hora dos seus relógios. Como tinham compromissos diferentes marcaram o retorno para as três da tarde. Deu quatro horas e "Seu" Edmundo não chegava. Afobado, padre Bulhões decidiu-se por voltar. Ao chegar, pela hora do seu relógio, "Seu" Edmundo não acreditou no recado que recebera. Também afobado, decidiu-se por voltar a pés. Lá na frente, arrependido, o velho pároco voltou. Avistou "Seu" Edmundo e foi ríspido:
-Suba aí! Você se atrasou!
E ouviu:
-Eu não! Seu relógio é que está errado! Prefiro ir andando, pois para isso Deus me deu os pés.
Daí por diante os dois, um no “jipe” e outro andando, foram vencendo os quilômetros com ásperas discussões. E ao final da tarde chegaram aos domínios de Senhora Santana. Antes de entrar em sua casa "Seu" Edmundo ainda ouviu do seu amigo:
- Eita homenzinho teimoso e endiabrado.
E respondeu-lhe:
- Vai-te embora Satanás, que preciso descansar. Depois a gente resolve essa questão.
Gazeta de Alagoas, 14.02.93
(*)Nascido em Pão de Açúcar a 02 de novembro de 1935. Em 1941 sua família mudou-se para Santana do Ipanema, onde permaneceu até 1950. Daí que entre próximo que será publicado, com ensaios, e contos, 30 contos retratam histórias de Santana do Ipanema. Médico, formado pela Faculdade de Medicina da UFAL, em 1963. Atualmente aposentado pelo Ministério da Saúde. Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, função de Segundo Secretário, em seguida Secretário Perpétuo em 2001. Segundo vice-presidente, diretoria de transição, após a morte do presidente, prof. Ib Gatto Falcão, da Academia Alagoas de Letras. nogueirabarros@uol.com.br
Publicado originalmente no Jornal Gazeta de Alagoas, em 14/2/1993
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