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quinta-feira, 30 de março de 2017

VULGATA VIDA

*Rangel Alves da Costa

Vulgata vida. Não vida vulgar, banal, medíocre ou ordinária. E sim a vida comum do povo, ao que lhe pertence por natureza, ao que não se pode se distinguir por classe social, poder ou riqueza. Não vida de má procedência ou sexualmente permissiva ou depravada. E sim a vida segundo sua normal existência ou o que é corriqueiro no fazer e existir de um povo. Neste sentido, distingue-se dos regramentos sociais impostos para diferenciar pessoas e seus atos.

Uma vida vulgata que para sobreviver, para pagar as contas do mês, para ter o pão de cada dia, não está nem aí para o que surja como moda, não está se importando nem um tantinho assim para o preço pago a um jogador de futebol ou a um desembargador. A preocupação mesmo é com o preço do pão, do remédio, da farinha, do feijão, do açúcar. Diferentemente daqueles que não estão na vulgata vida, qualquer aumento na luz elétrica lhe surge como assombro, qualquer choro da criança doente lhe chega como um aperreio danado.

Há nessa vida vulgata uma originalidade muito maior que nas molduras sociais criadas para distinguir pessoas pelos cargos, funções, poderes, riquezas. Ora, o povo com a caracterização do comum é aquele que, mesmo considerado em condição subalterna ou de pobreza, sustenta toda a nação com o seu trabalho, faz com que o progresso e o crescimento ocorram. É o pedreiro e não o ministro, é o leiteiro e não o secretário, é o plantador e não o magistrado, é o servente e não o importante nas esferas de poder. Nestes, a moldura carece de ornamentos dourados, apernas mostrando a feição lanhada de luta e de tempo.

Na vulgata vida há o que Mário de Andrade denominou de tempo da humildade, do convívio, do respeito maior entre as pessoas. É que as pessoas comuns são de leitura de fácil compreensão, de fácil entendimento, de ligeiro reconhecimento. Não são diferentes daquilo que dizem ser, não são compreendidas pelos seus ocultos, não são avistadas a partir de obscuros labirintos. João é João, José é José, Maria é Maria. Não há lugar para vossa excelência, para excelentíssimo, para a dignificação pelo anel, pompa ou toga.

Vulgata vida que surgiu como exemplar tradução de um povo antes mesmo que determinadas classes sociais forjassem escritas de méritos, conquistas e honrarias. O povo real, verdadeiro, não tem sua vida escrita a partir do que foi escrito sobre a nobreza, mas pelo seu próprio costume de ser apenas povo. O que foi escrito para enobrecer classes sociais, jamais possuiu serventia para falar do povo como verdadeiramente é. O povo da vulgata vida não se amolda nem deseja se amoldar ao que só existe pela dignificação que possui.


Na escrita da vida, a vulgata povo é aquele que nem precisa ser muito lida para ser compreendida. Diferentemente do que ocorre com as teorias que procuram explicar o povo comum dentro de parâmetros biológicos, históricos e sociais, a leitura dessa vulgata visível por todo lugar não requer hermenêutica nem mirabolantes interpretações. Rasgam-se as teorias e nas páginas reais o que se encontram são os escritos tão conhecidos por todos. Basta conhecer o fazer e o viver do povo comum para compreender todo o livro.

A vulgata vida jamais será compreensível através de tratados acadêmicos. Contudo, se forem feitas versões dos tratados, teses e teorias, de modo a caracterizar em sua plenitude cotidiana o comum do povo, então se terá a visão do comum em sua plenitude e profundidade. Então se verá que é no comum do povo, ou na sua vulgata vida, que as dores da nação são sentidas, que as boas e más consequências das políticas econômicas são lançadas, que as injustiças e as ausências governamentais são refletidas.

O que se faz realmente necessário é conhecer o povo em sua vulgata, e esta como a única e verdadeira versão daquilo que o academicismo chama de complexidade social. Lógico que a sociedade é complexa e que os povos se diferenciam, mas o que importa mesmo é compreender o povo numa só feição: o comum e mais importante de uma sociedade, vez que contextualizado no trabalhador, naquele que vive seu dia a dia para se manter e para construir, naquele que apenas vive sem fazer do viver um além de suas possibilidades. E é este povo que está por todo lugar.

É neste sentido que se aplica o termo vulgata, algo como uma tradução sem floreios de povo perante o seu mundo. É também no mesmo sentido que o termo vulgar poderia ser utilizado, porém como divulgação de fácil entendimento e não como coisa banal ou desprezível. Vulgarizar, assim, não para tornar coisa pequena ou inexpressiva, mas para difundir ou divulgar uma realidade ao maior número de pessoas, principalmente porque estas teriam dificuldades de entendimento da complexidade se dito de outro modo.

Assim a vulgata vida. Vulgata presente na minha, na sua vida, e na vida de todos aqueles que se reconhecem apenas gente, de pés no chão e que incessantemente lutam para continuar sobrevivendo entre deuses e endeusados.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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