*Rangel Alves
da Costa
Vulgata vida.
Não vida vulgar, banal, medíocre ou ordinária. E sim a vida comum do povo, ao
que lhe pertence por natureza, ao que não se pode se distinguir por classe
social, poder ou riqueza. Não vida de má procedência ou sexualmente permissiva
ou depravada. E sim a vida segundo sua normal existência ou o que é corriqueiro
no fazer e existir de um povo. Neste sentido, distingue-se dos regramentos
sociais impostos para diferenciar pessoas e seus atos.
Uma vida
vulgata que para sobreviver, para pagar as contas do mês, para ter o pão de
cada dia, não está nem aí para o que surja como moda, não está se importando
nem um tantinho assim para o preço pago a um jogador de futebol ou a um
desembargador. A preocupação mesmo é com o preço do pão, do remédio, da farinha,
do feijão, do açúcar. Diferentemente daqueles que não estão na vulgata vida,
qualquer aumento na luz elétrica lhe surge como assombro, qualquer choro da
criança doente lhe chega como um aperreio danado.
Há nessa vida
vulgata uma originalidade muito maior que nas molduras sociais criadas para
distinguir pessoas pelos cargos, funções, poderes, riquezas. Ora, o povo com a
caracterização do comum é aquele que, mesmo considerado em condição subalterna
ou de pobreza, sustenta toda a nação com o seu trabalho, faz com que o
progresso e o crescimento ocorram. É o pedreiro e não o ministro, é o leiteiro
e não o secretário, é o plantador e não o magistrado, é o servente e não o
importante nas esferas de poder. Nestes, a moldura carece de ornamentos
dourados, apernas mostrando a feição lanhada de luta e de tempo.
Na vulgata
vida há o que Mário de Andrade denominou de tempo da humildade, do convívio, do
respeito maior entre as pessoas. É que as pessoas comuns são de leitura de
fácil compreensão, de fácil entendimento, de ligeiro reconhecimento. Não são
diferentes daquilo que dizem ser, não são compreendidas pelos seus ocultos, não
são avistadas a partir de obscuros labirintos. João é João, José é José, Maria
é Maria. Não há lugar para vossa excelência, para excelentíssimo, para a
dignificação pelo anel, pompa ou toga.
Vulgata vida
que surgiu como exemplar tradução de um povo antes mesmo que determinadas
classes sociais forjassem escritas de méritos, conquistas e honrarias. O povo
real, verdadeiro, não tem sua vida escrita a partir do que foi escrito sobre a
nobreza, mas pelo seu próprio costume de ser apenas povo. O que foi escrito
para enobrecer classes sociais, jamais possuiu serventia para falar do povo
como verdadeiramente é. O povo da vulgata vida não se amolda nem deseja se
amoldar ao que só existe pela dignificação que possui.
Na escrita da
vida, a vulgata povo é aquele que nem precisa ser muito lida para ser
compreendida. Diferentemente do que ocorre com as teorias que procuram explicar
o povo comum dentro de parâmetros biológicos, históricos e sociais, a leitura
dessa vulgata visível por todo lugar não requer hermenêutica nem mirabolantes
interpretações. Rasgam-se as teorias e nas páginas reais o que se encontram são
os escritos tão conhecidos por todos. Basta conhecer o fazer e o viver do povo
comum para compreender todo o livro.
A vulgata vida
jamais será compreensível através de tratados acadêmicos. Contudo, se forem
feitas versões dos tratados, teses e teorias, de modo a caracterizar em sua
plenitude cotidiana o comum do povo, então se terá a visão do comum em sua
plenitude e profundidade. Então se verá que é no comum do povo, ou na sua
vulgata vida, que as dores da nação são sentidas, que as boas e más
consequências das políticas econômicas são lançadas, que as injustiças e as
ausências governamentais são refletidas.
O que se faz
realmente necessário é conhecer o povo em sua vulgata, e esta como a única e
verdadeira versão daquilo que o academicismo chama de complexidade social.
Lógico que a sociedade é complexa e que os povos se diferenciam, mas o que
importa mesmo é compreender o povo numa só feição: o comum e mais importante de
uma sociedade, vez que contextualizado no trabalhador, naquele que vive seu dia
a dia para se manter e para construir, naquele que apenas vive sem fazer do
viver um além de suas possibilidades. E é este povo que está por todo lugar.
É neste
sentido que se aplica o termo vulgata, algo como uma tradução sem floreios de
povo perante o seu mundo. É também no mesmo sentido que o termo vulgar poderia
ser utilizado, porém como divulgação de fácil entendimento e não como coisa
banal ou desprezível. Vulgarizar, assim, não para tornar coisa pequena ou
inexpressiva, mas para difundir ou divulgar uma realidade ao maior número de
pessoas, principalmente porque estas teriam dificuldades de entendimento da
complexidade se dito de outro modo.
Assim a
vulgata vida. Vulgata presente na minha, na sua vida, e na vida de todos
aqueles que se reconhecem apenas gente, de pés no chão e que incessantemente lutam
para continuar sobrevivendo entre deuses e endeusados.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário