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sábado, 8 de julho de 2017

ASPECTOS HISTÓRICOS E LITERÁRIOS DO CANGAÇO

Por Leandro Cardoso Fernandes

A palavra Cangaço – à parte de também nomear o bagaço das vinícolas – vem representar a vida nômade dos bandoleiros nordestinos, que, por alusão à canga do boi, carregavam em torno de si os apetrechos necessários à sua sobrevivência. Ao observador incauto, parece designar apenas salteadores sanguinários, criminosos que não mereceriam mais que a inclusão no rol de bandidos comuns. Mas, ao melhorarmos o foco, percebemos que a análise correta deste fenômeno ultrapassa o simples confronto entre mocinhos e bandidos.

O Cangaço começou a aparecer nos documentos oficiais em meados do século XIX, a partir de registros sobre o célebre José Gomes, o Cabeleira, que vivera no século anterior. Mas não começou aí. Seus rastros vêm da aurora da nossa colonização, e para segui-los é preciso evitar os vieses frequentes dos nossos registros históricos, quase sempre favoráveis ao colonizador em detrimento de quem resistisse ao afã dominador. Daí a profusão de qualificações depreciativas para os insurretos, geralmente descritos como bandidos, facínoras e revoltosos, na clara intenção de criminalizá-los. Um sofisma largamente difundido é a colocação do Cangaço como “revolta” pontual de limites definidos no interior nordestino. No entanto, devemos levar em conta aspectos peculiares de cada região, com seus catalisadores históricos, que apontam para uma escala cromática de cangaços, Brasil afora.

Precisamos recontar nossa História e ouvir aqueles que sucumbiram no violento choque da nossa formação. São os esquecidos da História. Deixemos, então, que eles no apontem onde está a forja do cangaceiro.

Capitania de São José do Piauí, sertão de dentro, por volta do ano 1700. O colonizador europeu avança palmo a palmo no território antes ocupado pelos nativos, enxotando-os para o norte e para o Maranhão. A cada légua avançada, ficam atrás novos currais e arremedos de vilarejos.

Francisco Dias D’Ávila e seus agregados põe abaixo a aldeia dos índios Aranis, próximo à freguesia de São Antônio do Surubim, onde hoje está a cidade de Campo Maior, Piauí. Deste cruel massacre, escapam dois curumins: uma menina de 13 anos e seu irmão de 12 anos, a quem foi dado o nome cristão de Manuel, e o apelido de Mandu. O menino foi enviado a um aldeamento jesuíta, o Boqueirão dos Cariris, situado a 60 léguas do Recife. Alguns anos depois, o índio Mandu, retorna ao Piauí, na tentativa de reencontrar sua irmã. Ao sabê-la morta pelas mãos do português, decide pegar nas armas e formar um bando com remanescentes de várias tribos, algumas inclusive inimigas entre si. Passa a ser chamado de Mandu Ladino, graças à eficiência em ludibriar os portugueses e índios “preados” postos no seu encalço. Contra Mandu e seus índios “corsários”, como eram conhecidos, vieram de São Luiz, forças volantes de El-Rei, que terminam por matar o chefe índio depois de quase 10 anos de guerrilhas. 

Nesta síntese biográfica de Mandu Ladino, um dos esquecidos da nossa História, está a infância do cangaceiro. O clavinote genocida do colonizador e o peso de suas botas a esmagar qualquer resistência à expansão de seus domínios. Além do índio, vergaram sob a dominação o negro, o sertanejo, todos eles empurrados para a sombra do vulcão adormecido da revolta e do inconformismo latente, que o Prof. Frederico Pernambucano de Mello brilhantemente chamou de “irredentismo”. Muitas das manifestações de violência popular, ao longo da História trazem na verdade esse eco antigo dos nossos índios sublevados, nossos negros e caboclos sem cabresto. De quando em vez, esse vulcão dos rancores explodia em revoltas como a de Mandu Ladino; como o Quilombo dos Palmares; as lutas pela Independência do Brasil; a mal-contada Balaidada, e, finalmente, o cangaço, com as suas variadas nuances.

O cangaceiro, portanto, é produto dessa sociedade arcaica, onde mais sobressaía quem se impusesse pelas armas e pela valentia. Segundo a análise de Frederico Pernambucano de Mello, na sua obra Guerreiros do Sol, estas condições eram “fundamentais para se dobrar as resistências do índio e do animal bravio como condição para o assentamento das fazendas de criar”. Ou seja, durante quatro séculos, fomentou-se a cultura da violência, onde o indivíduo é senhor do seu destino e deveria traçá-lo a talhos de facão. O Código Penal sempre foi surra, bala e punhal. Era muito mais fácil, para o sertanejo, a justiça direta guiada pelo revide e pela autodefesa. A outra, a dos tribunais das capitais, não era uma alternativa. Muitos foram empurrados para a garganta do Cangaço por terem reagido violentamente, de modo moralmente aceitável em sua aldeia, mas reprovável aos olhos da civilização litorânea. Houve ainda aqueles que abraçaram a espingarda por não ter outra opção de subsistência. Gustavo Barroso recolheu uma quadrinha, que traduz muito bem o modus vivendi no sertão de outrora, e que diz o seguinte:

“Meu pai fez diversas mortes/porém não era bandido/matava em defesa própria/quando se via agredido/pois nunca guardou desfeita/e morreu por atrevido”.

No sertão, o Cangaço encontrou não só o ambiente social para prosperar, mas também o ambiente físico. Como disse Euclides da Cunha: “a Geografia prefigura a História”; e a caatinga foi o mais forte aliado do cangaceiro contra a repressão, pela quase intransponibilidade de seus espinheiros e arbustos, o que minava o vigor dos perseguidores. E Lampião soube tirar proveito disso. De 1928 para trás, na primeira metade da sua vida de guerreiro, vivia nas caatingas brabas do Pajeú pernambucano e da Floresta do Navio, que lhe serviam de refúgio. Mas, quando necessitava de refrigério, corria à fronteira com o Ceará, e regalava-se na paradisíaca Chapada do Araripe, no verdejante Vale do Cariri Cearense. Já na fase pós 1928, na Bahia, vivia circundando o Raso da Catarina, a maior extensão de caatinga do Brasil, dela usufruindo quando precisava impor as agruras do terreno às Forças Volantes. Mas quando necessitava de refrigério, recorria à beleza do Vale do Rio São Francisco, onde a região limítrofe entre Bahia-Sergipe-Alagoas, com seus potentados e coiteiros, lhe fornecia ampla e organizada rede de apoio. 

Lampião, por mérito particular, aperfeiçoou e modernizou o cangaço! Ao contrário do que muita gente pensa, era um sujeito calmo, circunspecto, educado, avesso a farras, profícuo em fazer amizades, inclusive com autoridades. Fazia-se, às vezes de coronel itinerante, manifestando explicitamente o gosto por sofisticações, como fotografias, whisky, filmes, ao tempo em que, paradoxalmente, repudiava, por instinto de sobrevivência, o progresso das rodagens e dos trilhos que começavam furar os carrascais.

À parte do cuidado com a segurança individual e coletiva, os cangaceiros preocupavam-se em larga medida com o apuro da indumentária, usando-a inteligentemente a seu favor. O traje não tinha por objetivo a camuflagem na caatinga. Bem longe disso: passava pela imposição da personagem perante os interlocutores. O fardamento exuberante era motivo de orgulho para o portador, que além das cores vibrantes das jabiracas e bornais, exagerava em perfumes sobre o corpo suado.

Contrastando com esse apuro estético, estava sua atuação sempre pelo recuo, pela imposição do terror, em guerrilha onipresente pela divisão do grupo em subgrupos. As Forças Volantes, até pela gravitação em torno dos cangaceiros, e necessidade de adaptação, foram progressivamente trocando o uniforme cáqui da Força Pública pelos chapéus de meia-lua, enfeites e longos punhais. Exerciam seu poderio militar às custas da arbitrariedade e da imposição do medo, de maneira semelhante à atuação dos cangaceiros. Muitas vezes, a única coisa que os diferenciava era o lado que ocupavam na contenda.

O Cangaço latu sensu, deixou representantes em diversas regiões fora daquela associada a atuação de Lampião, como no caso de Lucas da Feira (Feira de Santana, Bahia), o Raimundo “Cara Preta” (na lutas da Balaiada, Piauí e Maranhão), Silvino Jaques (interior do Mato Grosso), Antonio Dó (sertão de Minas Gerais), dentre outros.Aliás, falando em Antonio Dó...Aqui abro espaço para os jagunços tão magnificamente perfilados por Guimarães Rosa, na obra “Grande Sertão: Veredas”, como Medeiro Vaz, Hermógenes, Zé Bebélo, Joca Ramiro. Todos eles legítimos capitães de cangaço. O termo jagunço lhes foi emprestado por que assim eram eles conhecidos nos vastos campos gerais. Mas, indiscutivelmente, eram capitães de cangaço. Jagunço por conceito é aquele que vive exclusivamente pelas armas, mas a serviço de um potentado, ou seja: sem bando independente, tendo como única ocupação o conflito armado. O cangaceiro manso é aquele que se aparta de suas obrigações de vaqueiro ou de lavrador para resolver uma contenda, retornando, posteriormente, às suas atividades pacíficas. Já o cangaceiro volante é o tipo imortalizado por Antônio Silvino, que, nômade, troca de nome e passa a viver debaixo do cangaço. Lampião foi cangaceiro manso até os acontecimentos que culminaram com a morte de seus pais; a partir daí, cangaceiro volante, e – diga-se de passagem – o mais bem sucedido. A ele se aplica um verso do poeta condoreiro do Cariri cearense, Barbosa de Freitas: “as águias nascem pequenas/mas quando lhes crescem as penas/sabem bem alto voar”. E Lampião voou alto. Com ele, o Cangaço alcançou seu apogeu, nos anos 20, mas também recebeu seu tiro de misericórdia, na madrugada de 28 de julho de 1938, em Angico, Sergipe. Mas não morreu aí. Estrebuchou até maio de 1940, com a morte de Corisco, o Diabo Loiro. 

Um dos responsáveis pelo mitificação de Lampião foi a Literatura de Cordel, herança da Península Ibérica. De Portugal, as “Folhas Soltas”; da Espanha, “Los Pliegos Sueltos”; e da França a “Literature de Colportage”, cuja influência foi espalhada aqui pelos colonizadores. Os versos, feitos preferencialmente em sextilhas, septilhas e décimas, eram muito agradáveis de ler, ouvir e cantar. As estrofes caíam celeremente no gosto e na memória do povo, tornando-se uma espécie de noticiário da oralidade do meio em que viviam. O jornal, que em Portugal ocupou completamente o espaço do Folheto, aqui no Brasil não logrou tal êxito, por ser quase inacessível ao sertanejo, fato que ainda hoje se observa. Geralmente, o jornal retratava um cangaceiro criminalizado e um sertão com o rótulo do atraso. Já o cordel exibia um cangaceiro heroico, guerreiro, astuto e superpoderoso, cujo escudo ético servia aos sertanejos de maneira geral. 

É da época dos primeiros folhetos impressos, ou seja, meados de 1870, que os romances da literatura dita culta recebem as cores do sertão. Cito aqui duas obras da vanguarda desse período. O primeiro, publicado em 1876, do cearense Franklin Távora é “O Cabeleira”, romance histórico com sugestões regionalistas, mas não dissociado do melodrama de folhetim. É o marco literário inicial do Cangaço, sendo Távora um grande entusiasta das tradições e tipos legendários do Nordeste. 

A segunda é pouco conhecida do público e da crítica, mas não menos importante. É o primeiro dos nossos romances a ter a seca como palco dramático do enredo. Segundo a professora Maria Gomes Figueiredo, do Departamento de Letras da Universidade Federal do Piauí é “o primeiro romance de fundo essencialmente regionalista, que focaliza de forma realista o drama da seca no sertão do Piauí”. Trata-se de “Ataliba, O Vaqueiro” do piauiense Francisco Gil Castelo Branco, lançado em 1878 como folhetim no Diário de Notícias e posteriormente publicado pela Tipografia Cosmopolita do Rio de Janeiro, em 1880. Este livro, tal qual João Batista, que veio preparar os caminhos do Senhor, é o bom augúrio dos excelentes trabalhos que estavam por vir. “Luzia-Homem”, de Domingos Olímpio, publicado em 1903; “A Bagaceira” de José Américo de Almeida, publicado em 1928; os clássicos “O Quinze”, de Raquel de Queiroz, de 1930 e “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, de 1938. Aliás, neste mesmo ano, Graciliano publicou um artigo no Jornal de Alagoas, onde relata uma visita que fizera a Antonio Silvino, na companhia de José Lins do Rego. Fica patente a surpresa de Graciliano ao encontrar um Silvino diferente do que sempre imaginara: era branco, olhos claros, bem apessoado, educado, inteligente... ou seja, bem distante da imagem sugerida do Capitão-de-Cangaço sanguinário, fruto da degeneração racial, lombrosiano, incapaz do convívio social normal. José Lins do Rego, por sua vez, já conhecia o ex-cangaceiro da infância no engenho do avô. Dessas memórias ele retirou os clássicos de seus clássicos: “Pedra Bonita”, “Menino de Engenho”, “Fogo Morto” e “Cangaceiros”, todos contemplando a figura do capitão-de-cangaço e as agruras do sertão. 

O tema Cangaço nunca envelheceu. Contaminou gerações de escritores, vários romancistas e poetas, alguns polivalentes, inclusive derivando seu talento para a dramaturgia, como Rachel de Queiroz, com a peça “Lampeão”, publicada em 1953 e Ariano Suassuna, com o fantástico “Auto da Compadecida”, publicada em 1955. Não poderia deixar de citar aqui um dos retratos mais realistas da violência rural na nossa Literatura de ficção, embora baseado em fatos reais, que é “O Tronco” do goiano Bernardo Élis. Obra de fôlego, que mostra em cores a convulsão instalada na pequena Vila do Duro, sufocada e impotente entre os desmandos do coronel e a arbitrariedade da Polícia Militar.

O “O Cabeleira”, citado há pouco, também foi ponto de partida para outra vertente literária, que não o da ficção regionalista. Trata-se da literatura histórica específica que nasceu do resgate da tradição oral, e adornou-se de ensaios sociológicos, antropológicos e psicológicos a cerca do tema. Cronologicamente, citaria o trabalho do cearense Gustavo Barroso, notadamente “Terra de Sol”, de 1912, e “Almas de Lama e de Aço”, de 1930; e as duas biografias publicadas em vida de Lampião, a primeira por Érico de Almeida, em 1926; e a segunda pelo médico Ranulpho Prata, em 1933, ambas com o título de “Lampeão”.

Dos trabalhos contemporâneos referenciais, citaria “Assim Morreu Lampião”, do paulista Antonio Amaury Correa de Araújo, publicado em 1971, onde o autor passou o pente fino sobre os acontecimentos do dia em que Lampião foi morto, e colocou-os em ordem cronológica, a partir de depoimentos de cangaceiros, soldados e coiteiros que participaram do epílogo de Lampião. Também da lavra de Antonio Amaury, “Lampião: As Mulheres e O Cangaço”, publicado em 1984, e que foi o primeiro trabalho dedicado ao universo feminino no Cangaço.

Mas ainda havia uma lacuna. Faltava um ensaio sobre a violência rural brasileira, que se esquivasse da visão simplista e fatalista, então vigente. A lacuna foi preenchida pelo livro “Guerreiros do Sol”, de Frederico Pernambucano de Mello, historiador social de sede matada nas fontes da escola gilbertiana. É um trabalho maduro sobre as bases sociológicas do Cangaço, e que foi complementado pelo recentemente publicado: “Estrelas de Couro: A Estética do Cangaço”, este último o mais completo trabalho de análise e documentação sobre uma personagem da nossa história, no caso o cangaceiro. 

Dito isto, termino por aqui parafraseando Guimarães Rosa: 
Cangaço está em toda parte! Também aqui na Casa de Machado de Assis, neste importante encontro. Afinal de contas, cultura e educação são nosso oxigênio.

Sem as duas, apenas vegetamos. E em tempos de poluição cultural e educação rarefeita, o brasileiro está apático, sem interesse pelos problemas do seu país. Tem se preocupado, quando muito, com os desfechos dos programas televisivos de confinamento e com o dia-a-dia das celebridades. Vale a pena, então, puxarmos as máscaras de oxigênio e fazer ver a esse povo que a cor da nossa identidade é reflexo do colorido das penas do índio Mandu Ladino e dos enfeites dos chapéus dos cangaceiros.

Muito obrigado.

Leandro Cardoso Fernandes

NOTA CARIRI CANGAÇO: É com muita satisfação que postamos a espetacular conferência do Doutor Leandro Cardoso Fernandes, por ocasião do Seminário Brasil, brasis, nos salões da ABL - Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, no último mês de Maio.

http://cariricangaco.blogspot.com.br/2011/06/aspectos-historicos-e-literarios-do.html?spref=fb


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