Benedito Vasconcelos Mendes
Cada um dos
quatro vaqueiros da Fazenda Aracati recebia, diariamente, dois litros de leite
de vaca e mais uma certa quantidade de leite de cabra, que era produzido na
fazenda. Meu avô não utilizava leite de cabra, de modo que todo o leite destes
animais era dividido para as quatro famílias dos vaqueiros. O leite de cabra
era transformado em queijo, destinado ao consumo familiar dos vaqueiros e
o excedente comercializado nas bodegas da vila de Caracará, localizada nas
proximidades da Fazenda Aracati. O aproveitamento do leite das cabras pelos
vaqueiros, além de ajudar na alimentação da família, servia também como uma
fonte adicional de renda.
A ordenha das cabras era tarefa exclusivamente feminina.
Ao amanhecer, as mulheres dos vaqueiros, cada uma com sua cuité,
lavavam as mãos com sabão preto (sabão da terra) na cozinha da casa-grande e
depois iam para o chiqueiro dos caprinos ao lado para ordenhar as cabras.
O leite era tirado com muita rapidez, com dois dedos, polegar e indicador.
Quando a cuité enchia, o leite era despejado em uma lata de 20 litros (vasilhame de querosene), que ficava sobre um jirau de estroncas de sabiá,
ocasião que era coado em um pano de algodãozinho. Cada cabra tinha um nome.
Lembro-me da cabra de nome Atrevida, que, por ser de primeira cria, ainda não
estava mansa e adestrada para a ordenha, o que exigia que uma das
ordenhadoras a segurasse pelos chifres, enquanto a outra tirava o leite. As
cabras produziam pouco leite, menos de um litro, na média do rebanho. Naquela
época não havia na região as raças caprinas modernas produtoras de leite. O
rebanho da Fazenda Aracati era de SRD (sem raça definida), oriundo da
miscigenação de raças nativas, especialmente, das raças Canindé, Marota,
Repartida e Moxotó. A fertilidade das cabras era alta, raro era o nascimento de
um só cabrito por barrigada, pois o comum era nascer dois filhotes por parto,
às vezes três. Uma outra característica dos caprinos é a rusticidade. O rebanho
era altamente resistente às doenças e às parasitoses, especialmente, às
verminoses, além de muito adaptado ao consumo de alimentos grosseiros e
de baixo valor nutritivo. Nos anos de chuvas escassas, de pouco pasto, os
caprinos consumiam até cactáceas espinhentas, pois eles conseguiam retirar, com
os chifres, os espinhos do xique-xique e do mandacaru, bem como parte dos pelos
urticantes do quipá e depois consumiam os cladódios suculentos. Quando se
alimentavam de quipá, os animais apresentavam ferimentos nos cantos da boca, provocados
por pelos cáusticos e irritantes existentes na superfície desta planta.
Os bovinos e ovinos dão preferência ao consumo do
pasto rasteiro, enquanto os caprinos preferem as folhas e brotos dos arbustos
e árvores da caatinga. São capazes até de subirem em galhos
inclinados de arbustos e árvores, para comer os brotos, quando esta
inclinação for acentuada e permitir a subida dos animais. Era comum se
observar caprinos em pé, na posição ereta, com as patas dianteiras apoiadas na
copa, tentando comer as folhas de forrageiras arbustivas ou
arbóreas. Aqui e acolá, morria um animal com a pata anterior enganchada
(presa) em alguma forquilha dos ramos da copa. Por não conseguir se libertar,
depois de alguns dias contido, o animal morria de sede e de fome, sob o sol
escaldante.
O leite e o queijo
apresentavam um cheiro muito forte, odor próprio de pai-de-chiqueiro,
pois o bode (reprodutor) permanecia no mesmo chiqueiro onde se ordenhava as
cabras. Atualmente, atenua-se este cheiro indesejável retirando-se o bode
do ambiente da ordenha, pois este cheiro típico é produzido por uma
glândula existente no macho reprodutor e este odor é facilmente absorvido pelo
leite.
Diferentemente do que ocorre hoje, o preço do
quilo de queijo de leite de cabra era menor do que o de leite de vaca. O queijo
de cabra, naquela época, era considerado, na região, um queijo de
inferior qualidade. O mesmo ocorria com a carne de caprino, que era mais barata
e considerada de qualidade inferior, quando comparada com a carne de boi.
Os caprinos, ao lado
dos ovinos deslanados tropicais, são os mamíferos domésticos mais
rústicos que criamos no Semiárido nordestino. Para combater as verminoses
nestes animais era usado um vermífugo natural, conhecido vulgarmente como
Batata-de-purga (planta nativa do Nordeste brasileiro). As bicheiras causadas
pelas larvas da mosca varejeira eram curadas com óleo queimado (óleo
lubrificante usado).
Para o empanzinamento usava-se o vinagre. Na década
de 1950, os remédios de uso veterinário eram quase todos naturais, pois ainda
não existiam, no comércio regional, muitos medicamentos industrializados.
A Fazenda não tinha aprisco elevado, os caprinos
dormiam em chiqueiro sem cobertura, feito de madeira deitada e trançada (cerca
de faxina). O esterco não era retirado de dentro do chiqueiro. O leite
das cabras era tirado neste ambiente sem higiene, com muita poeira no verão e
muita lama no inverno.
Socialmente, a criação extensiva de caprinos no
Nordeste do Brasil apresenta duas desvantagens: uma é a facilidade de roubo,
que já faz parte da cultura regional, e a outra é a dificuldade de conter
os animais pelo uso de cerca de arame farpado. O costume de roubar caprinos e
ovinos está arraigado no cotidiano de muitos sertanejos. A contenção de
caprinos por cercas é difícil, pois mesmo se usando 10 fios de arame farpado (em cerca para bovinos, usa-se 6 ou 7 fios) ainda é difícil evitar que eles
saiam da propriedade. No passado, muitas brigas, inclusive com mortes, entre
fazendeiros vizinhos foram causadas por invasão de caprinos nos roçados (plantio de milho, feijão, batata-doce, melancia, jerimum e outras culturas).
Alguns proprietários malvados reagiam a invasão de suas plantações, por
caprinos do vizinho, com a condenável prática do “rejeto”, que era o
cruel e doloroso suplício provocado aos animais, pelo corte dos tendões das
patas, que invariavelmente levava à morte, já que impedia a locomoção dos
animais. Os caprinos caiam e permaneciam deitados até morrerem, no
próprio local onde era praticado este abominável crime. No passado,
os caprinos foram pivôs de muitas desavenças entre fazendeiros vizinhos, ou
seja, entre o proprietário dos animais e o proprietário da terra invadida, que
em muitos casos terminava em morte.
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário