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domingo, 29 de abril de 2018

UM BELO TEXTO


Por Antonio Corrêa Sobrinho

AMIGOS, vejam que texto interessante este, que colho na edição de 24/12/1945, do "Diário de Pernambuco", literatura das boas, o registro de um encontro musical, já passados os dias do cangaço, de dois amigos: o veterano soldado de volante, Euclides Vieira de Souza, e o ex-cangaceiro de Lampião, Nicodemos Morais (Nicó).
A ZABUMBA E O CANGACEIRO
Por Luiz Cristóvão dos SANTOS

Inajá é uma cidadezinha da ribeira do Moxotó. O casario se estende no plano, no centro a Matriz e no anglo da praça um tamarindo velho. De tarde, o vento levanta poeira, faz barulho nas janelas, que estrondam, joga areia nos olhos. E ao poente da rua, numa curva macia, o rio sertanejo envolve a cidade amorosamente.

Carnaúbas farfalham nas margens, os leques gentis misturados nas garrancheiras das quixabas. E imensas caraibeiras, cobertas de flor amarela, emprestam à paisagem cinzenta uma nota de estranha e poética beleza. Um céu de ouro vivo sobre a terra queimada. Não conheço nada mais belo nestes mundos do Moxotó, do que as velhas caraibeiras floridas. De longe, parecem tochas ardendo. De perto, ah! Buquês rescendentes, compactos e doirados, na paisagem combusta. À sombra amiga, as cabras esperam que o vento despetale as flores. A seca estiola os campos e mata os rebanhos. Então as caraibeiras oferecem a flor amarela para a fome dos animais. Aos bodes e às piranhas. Poço do Moxotó, de água fria e azulada, a cuja margem flora a caraibeira, guarda a traição das piranhas vorazes. Piranhas são doidas por flor de caraibeiras. Ficam à tona, agressivas e numerosas. E ai de quem mergulhar na água fria e gostosa.

Um dia desses, terminada a audiência, o doutor promotor foi me mostrar a cidade. O Dr. Juiz ficou no cartório despachando a papelada, serviço eleitoral, na certa. Foi quando ouvi o ronco da zabumba. A “Esquenta mulher” parou à porta da Matriz. Vieram uns bancos singelos. Se não me engano era véspera de festa de santo. Apareceu uma garrafa, um copo distribuiu a “bicada”, e a zabumba atacou a “Saudação do Santo”. Foi chegando gente. Sentei-me num tamborete e fiquei olhando a “retreta”. Ao meu lado, empertigado, mãos nos bolsos, quepe em cima do olho, o cigarro apagado no canto da boca, um soldado era todo atenção. Depois, terminada a “peça”, ele pediu:

“Mestre Nicó, ajeita os meninos para a “Caçada da Onça”.

Houve uma pausa. Nova “bicada”. E a zabumba atendeu o pedido do praça. Era uma espécie de toada, na qual, de repente, os pífanos ficavam sozinhos, imitando o latido e o grunhido dos cães. O bombo roncava feito onça ferida e o tarô acelerava como pés de animais em disparada. Aquele é o maior número da zabumba de Inajá. Os músicos capricham. Antônio Matias no bombo, Pedro Clarindo na caixa, Nicodemos Morais (Nicó) e Antonio Ferreira nos pífanos. Um baião, toadas e até uma valsa arrastada e dolente. Então me disseram uma coisa enorme. Aquele soldado era Euclides Vieira de Souza, veterano das volantes, herói do “fogo” de Cachoeirinha, de Favela e do Poço Branco, “cabra” valente da escola do coronel Lucena, de corpo furado de bala no fogo de Olho D’água, sob o comando de Optato Gueiros, com 25 anos de caserna, dos quais a maior parte passou nas volantes, tiroteiando Lampião, arriscando-se, varrendo caatingas, comendo farinha com rapadura e chupando raiz de umbu, esquentando o “papo-amarelo” nos tiroteios, e hoje, ali sem uma fita de promoção, herói anônimo e silencioso, esperando a morte tranquilamente depois de tantos anos de vida arriscada, esquecido dos governos, vendo todo sando dia promoção para muitos que não fizeram nem metade do que ele fez.

E “mestre” Nicó?

Ah! “mestre” Nicó? Era Nicodemos Morais – baixo, moreno, atarracado, cara quadrada – nem mais nem menos, o Nicó do grupo de Lampião, que deu trabalho às volantes, a Manoel Neto, ao coronel Lucena, a Optato Gueiros a Higino, e, em 1927, em companhia de outros “cabras”, caiu prisioneiro no fogo de Vila Bela, curtiu cadeia, deu com os ossos em Fernando de Noronha e agora ali estava, os dedos calejados do mosquetão e do rifle-cruzeta, amaciados no trato do pífano, mestre de zabumba e artista querido do povo. Depois, já quase noitinha, eu vi o soldado Euclides e mestre Nicó recordarem as façanhas passadas.

Desapareceram o volante e o cabra.

Naquele momento eram dois pacatos sertanejos, dois filhos de Deus, que andaram por caminhos diversos, trocaram tiros de rifle, na fúria dos tiroteios e ali estavam na tarde tranquila, no pátio da igreja, o vento do Moxotó varrendo a rua e trazendo a lembrança dos encontros sangrentos e das escaramuças, irmanados pela humilde música da zabumba de Inajá.

Arcoverde, dezembro de 1949.
"Diário de Pernambuco" - 24.12.1949

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