Por Cláudio C. Novais
Trabalho apresentado no III
ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, realizado entre os
dias 23 a 25 de maio de 2007, na Faculdade de Comunicação/UFBa,
Salvador-Bahia-Brasil.
DA CERTIDÃO DE ÓBITO AO NASCIMENTO DO MITO: CORISCO E O CANGAÇO
NA CENA CULTURAL E CINEMATOGRÁFICA DO BRASIL Cláudio C. Novaes 1 Analisamos o
atestado de óbito de Cristino Gomes da Silva (Corisco) como um lugar de
produção de imagens culturais que tencionam o discurso oficial sobre a
performance do mito popular do cangaceiro no imaginário social e do cinema,
fazendo um contrapondo entre filmes do cinema novo como Deus e o Diabo na Terra
do Sol (1963), de Glauber Rocha ; e Corisco e Dadá (1994), de Rosemberg Cariry,
com o retorno do mito de Corisco na ficção cinematográfica do Brasil.
Palavras-Chaves : Ficção, Documentário, Sertão, Cangaço, Corisco.
Este texto
nasceu do encontro com a Certidão de Óbito de Cristino Gomes da Silva, durante
pesquisa sobre a representação do Nordeste na Literatura e no Cinema, ao percorrermos
as trilhas do Cangaço e do Messianismo brasileiros nas páginas, nas telas e nos
documento oficiais. A linguagem do documento nos deu as pistas para lermos o
discurso legal sobre a morte do último personagem da epopeia trágica do cangaço
no Brasil, mas deu também pistas para lermos as “rasuras” no discurso
nacionalista moderno sobre o mito da violência agrária do país.
Apoiaremos a
nossa análise da ficção cinematográfica brasileira de cangaço na tensão entre o
discurso do perito na Certidão de Óbito de Cristino Gomes e as lendas locais,
os discursos históricos e antropológicos sobre o mesmo tema do cangaço. Assim,
problematizamos a ética e a estética da mitificação do cangaceiro no cenário da
política 1 Professor da Graduação dos Programas de Pós-Graduação do
Departamento de Letras e Artes da Uefs cledson@uefs.br cultural brasileira dos
anos 1950/1960, período no qual começa a internacionalização do cinema
brasileiro, com o primeiro modelo clássico no filme O Cangaceiro (1953), de
Lima Barreto. A tese principal que defendemos aqui é de que o aspecto
documental e ficcional das narrativas naturalistas brasileiras, principalmente
o hibridismo estilístico cinemanovista e contemporâneo, tem a fonte nos
discursos dos documentos oficiais jurídicos e jornalísticos sobre o cangaço,
pois estas linguagens jurídicas e jornalísticas são contaminadas pela
informalidade que desrecalca as imagens populares dos mitos que rasuram os
limites entre a verdade histórica e a verossimilhança ficcional. O mito de
Corisco aparece da força performática na narrativa documental e ficcional
produzida por jornalistas, fotógrafos e cineastas e policiais da época. Desde o
cinema primitivo e o cinema clássico, de 1920 a 1950, estas imagens ganham
força no projeto cultural literário nacional-popular inaugurado no regionalismo
de 1930 e no cotidiano da imprensa moderna, popularizando-se nos romances e
telas de cinema, como é o caso da extraordinária aventura do mascate libanês
Benjamin Abrahão, registrando, no ano de 1936, as mais conhecidas imagens de
Lampião e seu grupo, inclusive fotografando Corisco no ambiente real da luta
dos cangaceiros no interior do Nordeste brasileiro. Imagens estas já foram
reutilizadas em filmes documentais do cinemanovismo, como Memórias do Cangaço
(1963), de Paulo Gil Soares; e em filmes de ficção da retomada do cinema
brasileiro, como Baile Perfumado (1997), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas.
Enquanto personagem principal do ciclo cinematográfico brasileiro de cangaço,
Corisco tem várias representações, algumas mais históricas da ação do cangaço;
outras mais marcantes na estética inovadora. A performance dramática deste
personagem no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), de Glauber Rocha,
por exemplo, tem conseqüências políticas e estéticas definitivas para
compreendermos a alteridade do discurso nacionalista no Brasil, tornando-se uma
das obras inaugurais da ficção revolucionária do cinemanovismo; já a
performance épica do filme de aventura Corisco, o Diabo Loiro (1969), de Carlos
Coimbra, marca a permanência da linguagem melodramática clássica do cinema sem
maiores repercussões políticas fora da tela, durante o período de censura do
cinema nacional; e mais recentemente, o filme Corisco e Dadá (1996), de
Rosemberg Cariry, marca a heterogeneidade do tema do cangaço na perspectiva
crítica da contemporaneidade, buscando na performance do mito do cangaceiro uma
representação da imagem da nação estilhaçada no espelho fragmentado. A
narrativa deste filme é trágica-dramática-lírica, sendo, ao mesmo tempo, enredo
de aventura para a indústria cultural e também uma reflexão sobre a identidade
fragmentária do mito agrário no mundo urbanizado, traço que caracteriza grande
parte dos filmes da retomada pós-1990, quando os diretores articulam as teorias
da cultura e da semiologia, revisitando as fontes literárias modernistas e dos
cinemanovistas; e lendo com outros olhares os discursos dos documentos oficiais
sobre o cangaço.
A Certidão de Óbito de Cristino Gomes da Silva de 27 de Maio
de 1940 é um exemplo marcante, pois registra a morte do cangaceiro
juridicamente, mas possibilita uma leitura que recompõe a tensão do discurso
informal no jogo entre o documental e o ficcional, estratégia que consolidou o
cinema moderno brasileiro sobre a temática histórica e social do cangaço. O
poder do discurso oficial no documento procura desmistificar o discurso popular
que engendra o mito do cangaço na memória nacional, mas a tensão entre os
discursos pode ser flagrada na leitura em contraponto, articulando o texto
reativo da escrita oficial sobre as condições da morte do cangaceiro com a
escritura performática e ficcional que ativa a vida / morte do personagem
Corisco na mitologia cinematográfica. Entre os vários filmes desta temática,
selecionamos aqui dois deles, para estabelecermos este contraponto entre a
política cultural da cinematografia brasileira e a política oficial do discurso
do documento de óbito de Cristino Gomes. São os filmes: Deus e o Diabo na Terra
do Sol (1963), de Glauber Rocha, do cinema novo; e Corisco e Dadá (1994), de
Rosemberg Cariry; da retomada do novo cinema brasileiro contemporâneo.
A
Certidão de Óbito original transcrita pelo oficial Evandro Cardoso de Andrade,
da comarca de Miguel Calmon, Bahia, lavra a morte do cangaceiro nos seguintes
termos: “Certifico que, em data de 27 de maio de 1940, no Livro n0 C 12, à fls
7 verso. sob o n0 1.567, foi feito o registro de Óbito de CRISTINO GOMES DA
SILVA (vulgo Curisco)”. Neste primeiro traço narrativo da certidão, o morto tem
a sua identidade apresentada com o destaque em vermelho e CAIXA ALTA do nome
civil; e os (parênteses) utilizados para aprisionar o nome do cangaceiro
grafado em letra regular e em vermelho, com o fonema kü grafado na forma mais
popular Curisco e não Corisco, conforme a sintaxe culta mais aceita. O vermelho;
a citação do vulgo entre (parênteses) e a grafia mais popular do fonema kü
sugerem o ruído lingüístico de elementos populares recalcados na CAIXA ALTA e
inércia do nome cartorial Cristino Gomes da Silva, que apaga a agilidade do
raio significativo do nome vulgar atribuído ao mito do cangaceiro. Os nomes –
oficial e popular – são grafados no documento seguindo uma hierarquia da
superioridade do primeiro em relação à inferioridade do segundo, conforme as
marcas lingüísticas e gráficas da caixa alta do primeiro e da forma regular e
do distintivo “vulgo” no segundo. Mas a reversão da leitura do significado
pelas marcas discursivas da cor vermelha destrói a hierarquia e acende as
nuances da cor vermelho / sangue, que banha a imagem da violência do cangaceiro.
Esta imagem do vermelho / sangue é a marca problemática da fala do personagem
Corisco de Glauber Rocha, em Deus e o Diabo, quando coloca a violência do
cangaço na crise social e existencial do herói vencido na seqüência das mais
emblemáticas do filme, quando Corisco baila em transe e promete matar o
responsável pela traição e morte de Lampião. Na seqüência ele contracena com o
vaqueiro Manuel, com Rosa e com Dada, que não entendem a razão de tanto sangue,
mas compreendem o transe do cangaceiro na autofagia da sua luta sem poder
escapar da violência. Entretanto, a imagem da violência no filme de Glauber
Rocha não é mais a cilada do naturalismo literário e cinematográfico
tradicionais, pois a representação é construída revolucionariamente do
hibridismo ideológico de traços “primitivos” do irracionalismo do cangaço, mas
também vislumbra os traços de outra racionalidade dialética do cinema novo, que
ativa nova compreensão sobre o cenário da violência agrária no Nordeste
brasileiro. A fala de Corisco na cena desloca a categoria naturalista
tradicional da violência do cangaço para um lugar político radical na história
do cinema brasileiro:
Corisco – Tira os fantasma da cabeça que eu num agüento
mais ver você no sofrimento... já faz três dia, é muito tempo pra quem viveu na
guerra. O corpo de Maria Bonita inchou, apodreceu, os bicho agora tão comendo
os olhos bonito dela... morreu Maria mas Lampião está vivo. Virgulino acabou na
carne mas o espírito está vivo. O espírito está aqui no meu corpo que agora
juntou os dois... Cangaceiro de duas cabeça, uma por fora e outra por dentro,
uma matando e outra pensando! Agora é que eu quero ver se esse homem de duas
cabeça pode consertar esse sertão. É o gigante da maldade comendo o povo pra
engordar o Governo da República! Mas São Jorge me emprestou a lança dele pra
matar o gigante da maldade. Ta aqui! Ta aqui o meu fuzil pra num deixar pobre
morrer de fome! (ROCHA, p 274)
A transcrição da Certidão de Óbito continua
desdobrando os traços “ficcionais” das informações sobre o morto: “... falecido
em 25 de maio de 1940, às 17: 00 horas, nesta cidade de Djalma Dultra, comarca
de Jacobina-Bahia.” Neste trecho, surgem situações discursivas relevantes, como
a dos dois dias de decurso entre a constatação da morte e o seu registro oficial,
o que permite inferências quanto à escolha do textodiscurso para oficializar a
morte do cangaceiro, após as devidas autorizações legais, conforme requer um
caso de Estado como o do cangaço, numa região praticamente sem a presença
estatal, a não ser através da cobrança de impostos e da força policial. O
decurso do tempo entre a morte e o documento também pode indicar as condições
de localização da luta e a deficiência de transporte na região. Mas um traço
importante são mudanças estruturais da nação brasileira, configuradas nos
elementos textuais e para- textuais referentes ao território do país em
conformação, como na mudança do nome do distrito de Jacobina – Djalma Dultra,
que após a emancipação passa a ser a comarca de Miguel Calmon. Na transcrição atual
o documento é atualizado e o registro substitui a comarca sede na época da
morte do cangaceiro - Jacobina, pela comarca atual de Miguel Calmon. O que
parece irrelevante para a discussão identitária, assume um sentido importante,
pois a reivindicação do título de sede do cartório onde está o registro da
morte do famoso e mitológico cangaceiro Corisco, configura uma mudança na
política cultural brasileira, pois, para a antiga comarca o importante era ter
registrado em seu cartório o documento de extermínio do último cangaceiro, mas
para a comarca atual o valor do documento é a preservação da memória do mito do
cangaceiro. Esta mudança configura a nova política cultural brasileira
contemporânea de resgate da história cultural do país. Isto repercute com intensidade
na ética e na estética cinematográfica do cangaço, que chegou a ser, durante a
República Velha e o Estado Novo, no auge do cinema primitivo e do surgimento do
cinema clássico, caso de polícia e de política, que repercute também na censura
da ditadura militar contra a veiculação de filmes violentos que maculavam a
integridade moral do país no exterior; repercute ainda hoje, quando as imagens
do cangaço estimulam o público a compreender metonimicamente e metaforicamente
a realidade nacional, através dos filmes que abalam a Identidade Nacional
oficial, como é o caso do filme Corisco e Dadá.
Na Certidão de Óbito de Corisco
surgem outros traços discursivos que dialogam mais fortemente com o mito do
cangaço no cinema, causando mais fissuras no discurso do documento oficial sobre
a desmistificação do “bandido social”. Vejamos os termos do documento: “sexo
masculino” de “cor branca”, “profissão bandido”, “natural do Estado de
Alagoas”, mas domicílio e residência “nômade”, contando “33 anos de idade” e
“estado de civil solteiro”, “filho de Manoel Anacleto e Firmina Maia”, estes
“residentes e domiciliados no Estado de Alagoas”. O sexo da violência no
cangaço é o masculino, conforme a cultura patriarcal do Nordeste brasileiro.
Mas Lampião introduziu a mulher no cangaço, passando ela a viver as mesmas
experiências ativas e passivas da violência; no entanto a memória patriarcal
ainda reluta em aceitar o novo papel feminino nas mesmas condições do homem.
Nos filmes de cangaço, mesmo do cinema moderno, as mulheres são geralmente
vítimas do destino patrocinado pelo homem condutor da família, que não respeita
as tentativas das companheiras para abandonar a violência. No filme Deus e o
Diabo, uma das cenas enfoca a tensão do gênero, quando Corisco prepara os seus
planos de vingança e, ao fundo da tomada, Rosa e Dadá alheiam-se à violência
“masculina” e trocam carícias “femininas”. O discurso, que parece reproduzir a
cultura convencional desvia-se quando a resistência de Rosa aos projetos de
Manuel culmina com o assassinado do beato por ela, para livrar Manuel do
inferno sebastianista que prometia o céu. A percepção política de Glauber Rocha
desloca o discurso patriarcal da exclusividade masculina sobre a violência para
a ação de Rosa ao matar ao beato, tendo esta violência um aspecto de liberação
redentora, ao mobilizar no filme as dobras do discurso de Frantz Fanon na forma
revolucionária do cinema novo, com a reversão da violência para despertar ao
opressor o oprimido no ato violento assimilado e sublimado pelos dominados
contra os projetos autoritários dos dominantes. Para Frantz Fanon, “le
colonialisme impliquait un univers manichéen oú l’inferiorité permanente du
colonisé était tenue pour établie”. (FANON, 1991, 23) No filme Corisco e Dadá,
a mulher acompanha a ações do homem, articulando a dialética do amor / dor na
condição do papel feminino da donzela roubada da família, ou a mulher
consciente da violência ao assumir a luta com companheiro na mesma condição,
ressaltando outra racionalidade da personagem, em contraponto ao paradoxo da
razão “instintiva” que associa a violência ao homem, ou masculiniza a mulher.
Na Certidão de Óbito, a questão identitária da cor “branca” atribuída a Corisco
é o reflexo da memória vulgar que o populariza como o “diabo loiro”; a raça branca
colada ao sertanejo encena uma contradição da teoria de miscigenação clássica,
que via no branqueamento a melhora do mestiço. Mesmo “branco / loiro” atribuído
a Corisco um estereótipo sem conotação étnica é importante discutirmos este
discurso no documento, seguindo as recorrentes questões de raças no Brasil até
hoje. Já a profissão de “bandido” instaura uma situação discursiva mais
problemática ainda, devido ao inusitado uso do termo no documento oficial de
óbito. O “bandido primitivo” no documento desvela o ressentimento social da
escrita que desqualifica a vida social e econômica de Corisco. Mas a história
econômica do Nordeste cruza inevitavelmente com o cangaço, conforme a vasta
documentação de teses como a de Rui Faço e Frederico Pernambucano de Mello,
quanto à condição desprivilegiada de grande parte da população, que conduzia os
jovens aos grupos de cangaceiros, grupos estes que movimentavam somas de
pilhagens em negócios com mercadorias e armas, que enriqueciam muitos
comerciantes, os quais diversificavam seus empreendimentos para “lavar” o
dinheiro acumulado no comércio com os criminosos, sendo esta estratégia
econômica da diversificação uma das condições primordiais do capitalismo
moderno no Nordeste, apesar do combalido estágio econômico da região. Além do
comércio nos negócios do cangaço, os cangaceiros também prestavam serviços ao
latifúndio na rede de influências das disputas entre os senhores de terra na
região. Ou seja, a “profissão de bandido”, conforme registra o documento, para
justificar e desqualificar a morte do cangaceiro acaba por afirmar uma condição
econômica fundamental da economia do sertão nordestino. Para Pernambucano de
Mello:
Surpreendentemente é possível afirmar-se hoje, imagem literária à parte,
que os maiores cangaceiros, entendidos estes como os chefes de grupos de maior
expressão, gostavam da vida no cangaço. Num sertão profundamente conturbado
pelas disputas entre chefes políticos, lutas de famílias, ausência de
manifestações rígidas e eficazes de um poder público longinquamente litorâneo;
sertão povoado pó um tipo especial de homem, individualista, sobranceiro,
autônomo, desacostumado a prestar contas de seus atos, influenciados pelos
exemplos de bravura dos cavaleiros medievais; sertão que tinha no épico o seu
gênero maior, fazendo vivas páginas de um Carlos Magno e os Doze Pares de
França, de um Roberto do Diabo, de um Donzela Teodora, de um João de Calais;
num sertão assim anormal a olhos urbanos, o cangaço representava, na verdade,
uma ocupação aventureira, um ofício epicamente movimentado, um meio de vida, ou
até mesmo um amadorismo divertido de jovens socialmente bem situados, carentes
de afirmação. (MELLO, 2004, 117)
Quanto aos termos da Certidão de Óbito sobre à
origem do cangaceiro morto, do “Estado de Alagoas”; e ao seu domicílio
“nômade”, ficam patentes outros traços circunstanciais do discurso de uma
região informal na aparente formalidade do texto, circunstâncias que
representam situações sociais e antropológicas fundamentais para o discurso da
nacionalidade no Brasil. O deslocamento do cangaceiro entre o seu nascimento em
Alagoas e sua morte na Bahia, reconstrói a divisão geopolítica da região
cultural nordestina, que não se caracteriza nas fronteiras fixadas. A gênese do
nomadismo das memórias do cangaço percorre um longo corredor geográfico,
atravessando as fronteiras geo-políticas do Ceará à Bahia, passando pelos
territórios da Paraíba, do Piauí, de Sergipe, de Pernambuco, ou seja, por 7
(sete) Estados da Federação, dos 9 que compõem a região Nordeste do Brasil.
Esta condição nômade repercute jurídica e militarmente sobre a condição
federativa, levando a política de segurança do governo às estratégias de
agrupamentos policiais que transitavam entre as fronteiras dos Estados,
conhecidas pelo nome popular de forças militares “volantes”.
Quanto ao termo
nômade utilizado na Certidão de Óbito, por certo o escrivão não levou em conta
os problemas filológicos, sociais e antropológicos, muito menos, a tensão
filosófica do conceito de nomadismo em relação ao termo migrante, qualificador
mais comum deste personagem nordestino, tanto na nomenclatura oficial, quanto
na arte regionalista tradicional. Para Gilles Deleuze (1997, 13), o nômade não
é binário, mas “antes como a multiplicidade pura e sem medida, a malta,
irrupção do efêmero e potência da metamorfose”, como o cangaceiro, o nômade
“desata o liame assim como trai o pacto”, segundo Gilles Deleuze, (op. cit.) o
nômade:
Faz valer um furor contra a medida, uma celeridade contra a gravidade,
um segredo contra o público, uma potência contra a soberania, uma máquina
contra o aparelho. Testemunha de uma outra justiça, às vezes de uma crueldade
incompreensível, mas por vezes também de uma piedade desconhecida.
No
qualificativo de nômade o escrivão flagrou a condição de Corisco e a memória
coletiva do Nordeste, sendo esta a memória ativada na narrativa cinematográfica
alegórica do cinema novo ao cinema contemporâneo de cangaço.
Os filmes Deus e o
Diabo na Terra do Sol e Corisco e Dadá refletem nas imagens da nação a
preocupação ética através da estética, impulsionando a recepção do cinema
moderno brasileiro para o “entre-lugar” do espetáculo de ação e a reflexão
identitária. Para realizar o contraponto ético e estético é importante
percebermos os elementos articulados na linguagem do cinema, através da escolha
da luz e da angulação das tomadas, mecanismos que produzem os sentidos
epifânicos das personagens; é também necessário observarmos o diálogo entre a
ficção e os discursos sociais, antropológicos e históricos oficiais sobre o tema
do cangaço. A leitura deve atentar para os traços discursivos dialógicos entre
obras de arte ficcionais e documentais e os textos oficiais, como a Certidão de
Óbito de Corisco, para flagrarmos os sentidos que atravessam as descrições de
Cristino Gomes da Silva, como, tinha “33 anos de idade”; era “solteiro” e filho
de Manoel Anacleto e Firmina Maia. Os 33 anos de idade atribuídos a Corisco
realçam a juventude etária do líder cangaceiro, mas destaca também a
precocidade da morte no violento sertão brasileiro da época, paradoxalmente uma
longevidade aos 33 anos de idade, pois já se consagrava o mito. A figuração
mítica da idade do cangaceiro pode ainda ser um oposto simétrico do Cristo, o
cangaceiro ocidental da “não-violência”. A reversão entre violência /
não-violência associada à percepção da performance social e mítica do Corisco
versus Cristo, ou de Deus versus Diabo, deixa marcas fortes nas narrativas
cinematográficas, como o São Jorge guerreiro enfrentando o Dragão da Maldade na
obra de Glauber Rocha e em toda a tradição cinematográfica de cangaço.
Já a
classificação civil de “solteiro” para o cangaceiro é mais uma marca da
convenção social no documento, pois sabemos que Corisco convivia com Dadá com
quem teve filhos e viveu segundo as normas da Igreja Católica, informalmente,
por não poderem contrair o sacramento oficialmente, pelas óbvias razões do
nomadismo. Seus pais sim, estes tinham os nomes firmados e domiciliados
fixamente, portanto não tinham a necessidade de serem nomeados pelos nomes vulgo, apesar de ser esta uma norma social da região Nordeste, que sempre
associa a pessoa a um nome popular.
Finalmente, a Certidão de Óbito de Cristino
Gomes da Silva lavrada no cartório da Comarca de Miguel Calmon diz que as
informações do documento tiveram como declarante o “Sargento José Fernandes da
Silva”; e quanto à atestação do óbito, o texto explicita que “não teve
assistência médica”; apontando como causa da morte “tiros de metralhadora no
abdomem ”, e que o corpo foi sepultado no “cemitério da consolação, desta
cidade.” O declarante militar e a ausência de atendimento médico definem as
condições da morte do cangaceiro, segundo uma lógica estatal do extermínio, o
que caracteriza a luta do cangaço para além do rebelde primitivo de Eric
Hobsbaw, atribuindo ao combate militar um aspecto de guerrilha com repercussão
social e política, transformando o cangaço em mito no meio intelectual. Já os
“tiros de metralhadora no abdomem” explicitam a guerra fratricida que não dá
chances de vida ao “cabra marcado para morrer”. Apesar dos tiros fora de zonas
mortais, a belicosidade moderna da metralhadora canta mais alto do que o grito
de Corisco em Deus e o Diabo: “mais forte são os poderes do povo”. O ato de
cortar as cabeças dos cangaceiros confirma esta descrição da morte marcada. A
cabeça cortada no plano real da luta entre o cangaceiro e o Estado é a imagem
repetição do discurso ideológico oficial dos documentos sobre as trágicas
epopéias populares da história social do país. Contudo, os mitos têm muitas
cabeças, como diz o Corisco de Glauber, e uma delas é a memória popular que
atravessa a linguagem oficial por dentro transformando as narrativas artísticas
em releituras da nação oficial.
Bibliografia:
CAETANO, Maria do Rosário (org).
Cangaço – O Nordestern no Cinema Brasileiro. Brasília: Avathar, 2005. DELEUZE,
Gilles. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia. Trad. Peter Pal Pelbart e
Janice Caiafa. São Paulo: editora 34, col. Trans, 1997, vl 5. DE MELLO,
Francisco Pernambucano. Guerreiros do sol – Violência e bandistismo no Nordeste
do Brasil. São Paulo: Girafa, 2004. FANON, Frantz. Lês damnés de la terre.
Paris : Gallimard, 1991. GALVÃO, Maria Rita e Jean-Claude Bernardet. O Nacional
e o Popular na Cultura Brasileira – Cinema. São Paulo: Brasilense, 1983. LEAL,
Wills. O Nordeste no Cinema. João Pessoa: UFPB/FUNAPE, 1982. ROCHA, Glauber.
Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
SENNA, Orlando (org). Glauber Rocha - Roteyros do Terceyro Mundo. Rio de
Janeiro: Embrafilme/Alhambra, s/d. TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O Rural
no Cinema Brasileiro. São Paulo: Unesp, 2001.
www.cult.ufba.br/enecult2007/ClaudioCNovaes.pdf
http://blogdomendesemendes.blogspot.vom -
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