Encontro histórico de ex-cangaceiros
Transcrição de Antonio Correia Sobrinho
Transcrição de Antonio Correia Sobrinho
Eis o que restou do cangaço
“Sila saiu correndo, agachada. Uma bala acertou a cabeça de outra mulher, espirrou miolo no vestido de Sila; maldade, ela só tinha 15 anos. Depois, foi muito tiroteio, finado seu Rastejador também morreu. Vi Lampião pondo sangue pela boca. Um dia, resolvemos entregar, cangaço acabou, mas só acabou mercê da traição de cangaceiros que ajudaram as Volante, contavam os pontos da gente”.
Balão ajeita a gravata, no aeroporto de Congonhas. Ele, cangaceiro do bando de Lampião, hoje batedor de estacas para fundações de prédios, está com os companheiros esperando dona Expedita, filha de Lampião, Vera, neta do cangaceiro, e mais Labareda e Saracura. Todos vão reunir-se em São Paulo para o lançamento de “As táticas de guerra dos cangaceiros”, de Christina Matta Machado.
O livro vai ser lançado dia 24, a partir das 16 horas, na Aliança Francesa, rua General Jardim, 172.
Saudade
Quando o cangaço acabou e o governo deu anistia, a Polícia separou os cangaceiros: cada um teve que ir para um lado. Faz muito tempo que vários moram em São Paulo, mas não sabiam. Só quando Christina começou a procurá-los é que eles ficaram sabendo dos velhos companheiros, puderam se reunir para relembrar os causos de então. Ontem, em Congonhas, estavam vários deles, esperando os outros. Estava Marinheiro, um ano de cangaço, hoje funcionário da Caixa Econômica Estadual; estava Pitombeira, 3 anos de bando, entrou para não ser morto pela Polícia, hoje funcionário da Prefeitura. Estava também Criança, 7 anos de lutas, a glória de enfrentar sozinho, por duas horas, a Volante, para deixar o bando escapar. Criança, hoje, vende tomate como ambulante.
Em Congonhas estava também Sila, mulher de Zé Sereno que não pode ir (está com a perna engessada) e estava Dadá, apoiada na muleta. Sua perna direita ficou no sertão, crivada de balas de metralhadora, da mesma arma que matou seu marido, Corisco, que ela atentava defender. Estava em Congonhas o Balão, acompanhado de cinco de seus 8 filhos e contando para todo mundo que até hoje é solteiro. Balão, alegria do bando, tocador de sanfona, o mais valente de todos, mostrou ontem que não mudou. Ele foi piadas o tempo todo, mesmo quando tirou os sapatos e a meia por causa de um ferimento no pé que “tá ameaçando arruinar”.
Visitas
Até o dia 24, os cangaceiros vão visitar São Paulo, conhecer coisas novas, principalmente os que vieram de longe que a Varig trouxe de Sergipe e Alagoas. Ele irão ao Ibirapuera, a cinemas, restaurantes, serão entrevistados e aguentarão as luzes fortes da televisão, e queiram ou não vão acabar entendendo que hoje eles são gente importante, que apesar dos crimes que cometeram e talvez mesmo apenas por isso, eles passaram a ser história, são uma página da vida do Brasil.
Para contar a história do cangaço, Christina viajou quase todo o Nordeste, pesquisou em 34 municípios e se tornou amiga daqueles homens. Com os dados que colheu, escreveu o livro e vai defender tese em História, sob o tema “Cangaço, aspectos socioeconômicos”.
Morrer apanhando ou ser Cangaceiro
Embora arrependidos de terem sido cangaceiros, os cabras de Lampião dizem que não havia saída. Balão conta que a Polícia batia em todo mundo, para que contasse o paradeiro do bandido, muitas vezes, matava. Um companheiro dele teve que servir de cavalo para um soldado com esporas. Por isso, “quem não queria morrer apanhando tinha que ir para o cangaço”. Balão, entretanto, foi para o sertão por outro motivo. Engraçou-se – diz ele – com uma menina amiga de Lampião e alguns homens do bando quiseram matá-lo; ele fugiu com outro grupo e, depois, quando esse se uniu com o de Lampião, “a intriga foi esquecida”.
Pitombeira fugiu porque um irmão e um “primo carnal” foram mortos pela Polícia, que tentava fazer com que contassem onde estava Lampião. Ele ia ser morto também e fugiu.
O final
Para todos, o fim do cangaço foi a morte de Lampião, o líder que teve até 260 homens sob suas ordens. Quando ele morreu, o bando que chefiava tinha '36' e 11 ficaram “naquela jornada”. Havia muitos antigos colegas que ajudavam a Polícia e, por isso, fugiram todos para Sergipe, estado amigo, para combinar a “entregação ao governo”.
Balão conta como foi a fuga, “a volante matou Lampião, tive tempo só de pegar embornal de subsistência e de bala e quando a metralhadora engasgou passei no meio dos macacos, fugi. O Presidente tinha espalhado aviso em toda fazenda, para entregar, que ele garantia a vida. Fomos para Sergipe e resolvemos – Juriti, Criança, Marinheiro, Pitombeira, eu – arriscar olho e mandamos avisar o cabo Miguel da volante, que viesse conversar, com três soldados, fuzil de boca para baixo. Ele veio, ficamos amigos, mas 300 praças de outra polícia cercaram o bando, tivemos que fugir para a fazenda Cuiabá, onde dançamos com a volante e bebemos oito dias sem parar. O capitão Aníbal, que trazia a ordem do governo, mandou fechar os portos das Alagoas, para que a polícia que queria matar a gente não entrasse em Sergipe”.
O caminho
“Começou então o caminho da entrega. Mas era duro, tinha tropa do capitão Aníbal, amiga, garantia a vida, tinha a tropa inimiga, queria matar a gente. Fomos ao Araticum, a Porto da Folha, a Monte Belo, mas, quando cheguei no Caveira, mataram quatro cabras meus.
Foi traição dos sergipanos e tivemos que brigar ainda no Pinhão. Só conseguimos achar o capitão Aníbal em Serra Negra, para entregar as armas. Não, ninguém foi preso, a gente ficava no quartel só na hora da troca de expediente e todos entregamos por livre e espontânea vontade. Cada dia chegava mais cangaceiros. Poucos foram mortos, como Juriti, na faca, quando era guarda-freio e estava regenerado. Depois, cada um foi para um lado, ninguém viu mais ninguém. Eu, fé em Deus, sou muito feliz.”
Ideologia
É Pitombeira quem fala, muito sério: “Hoje falam de subversivo, dizem que a gente era guerrilheiro, socialista; não era não. Nós só queríamos o bem, andar longe da Polícia, só atirava quando atacado e matava muito, muito menos do que o cinema tenta contar em filme de cangaceiro. Nós não fazíamos maldade com sertanejo, tinha que viver sem ódio no coração, tinha que ser amigo de todo mundo, se não estava perdido.
É, é verdade que quando não davam o que a gente pedia, tinha que tirar à força, mas não era comum.
História de usar banha de gente para lubrificar parabelo, mentira é que é. Nunca faltou o óleo nem a lixa para tirar ferrugem. Arma também tinha muita, os fazendeiros davam, se não nós perseguíamos.
Tinha fuzil, mosquetão, rifle, parabelo, mauser, tudo calibre grande, 7 milímetros, 30, 38. A gente atirava no ombro, apertando bem para não dar tranco ou, quando a coisa apertava, apoiava no braço, mas muito raro atirar de cima do cavalo. As balas, também, não ficavam, furou meu braço aqui, a perna do Balão, o ombro do Marinheiro, mas era bala boa, de fuzil, entreva e saia do outro lado, tudo bala bonita, de aço, niquelada”.
- “Mas esse tempo passou, hoje é diferente, vivo com a família em São Paulo, faço economia, gasto muito pouco, tenho três casinhas aqui.”
Paulo Afonso, a morte do Sertão
Faz alguns anos, Pitombeira voltou ao sertão. Hoje, ele não reconhece mais aquilo, nada é como onde nasceu.
“Paulo Afonso, a usina, ela matou o sertão. Hoje, não teria mais cangaço nem guerrilha, nem nada. A Usina de Paulo Afonso devorou o sertão, está comendo a caatinga, pondo civilização; muita gente sabe ler, as fazendas são diferentes, caminhão anda por tudo, tem televisão, tem pontes, tem luz chegando a todo lugar. O meu sertão, o sertão de Lampião, do cangaço, ele não existe mais.
Não há mais precisão do cavalo para a caatinga, nem o culote, meia sobre a calça, alpercata, não existe nem mais o chapéu bom para fazer chapéu de cangaceiro. Bem que em São Paulo eu vi uns que serviam, mas não é como no cinema; a gente usava chapéu de couro, bem macio, de camurça enfeitado. Comia a carne seca, às vezes um cabrito ou o boi dos outros, matando na bala”.
Maria Bonita
Do outro lado do saguão do aeroporto, Balão está fazendo graça, dizendo que cava tão fundo para cravar estacas que algum dia acha um japonês do outro lado do mundo. Dadá, mulher de Corisco, olha para ele, comenta com uma amiga: “Piada sim, mas valente, isso é uma fera”.
Balão fala ainda. “Eu brincava com Maria Bonita, lutava com ela, derrubava, rolava no chão. Lampião ria, dizia para a gente não zangar, para não dar briga. Nem parece que faz tempo que ela morreu com Lampião, pondo sangue pela boca. E hoje, eu tenho 60 anos, não tenho mais bala no corpo, o chumbo tiraram em São Salvador.
Doença? Não, cangaceiro nunca adoece, não carecia de médico. Só agora, em São Paulo, cavando um poço de estaca na Consolação é que bebi água sem saber que tinha suco do cemitério. Passei doze dias vomitando sangue, mas, no sertão, nunca adoeci. Duro era ver companheiro ferido, sabendo que a polícia degolava, implorando me leva, e não poder”.
Mulheres
Criança também tem lembranças, fala das mulheres. “Tinha pouca mulher no bando, só dos chefões, ninguém mais queria, mas era valente, brigava junto com a gente. E tudo respeitava, respeitava mesmo, muito mais que aqui, em São Paulo”.
O avião está atrasado, os descendentes de Lampião demoram a chegar. Vera, com 14 anos, quer estudar medicina, espera que São Paulo lhe arranje um dia uma bolsa. Sua mãe mal conheceu os pais; criança ainda, foi entregue a um fazendeiro para criar. Lampião não gostava de criança no bando, ficava bravo quando um cabra apresentava sua mulher, de 13 ou 14 anos, perguntava se ia criar.
Pitombeira está falando de novo, achando difícil entender o que quer dizer o objetivo final.
Cangaceiros, sem remorsos
Os cangaceiros não dizem, mas, pela sua conversa, por suas histórias, eles não estão muito arrependidos de seus crimes. Acham que fizeram as coisas certas. Na hora de denunciar quem lhes vendeu as armas, dizem “que não se cospe no prato em que se come”. São desconfiados: na hora de dizer o nome verdadeiro, relutam muito.
Lampião era um grande líder. Representava a luta contra a opressão dos fortes, os fazendeiros da época. Essa é a opinião de Balão, Zé Sereno, Labareda, Criança, Dadá e Marinheiro. As histórias de cangaceiros são sempre iguais, só o começo é um pouco diferente. Todos se dizem injustiçados, fugidos da arbitrariedade da polícia. Acabaram na vida de crimes por consequência da situação que enfrentavam. Ninguém teve culpa. É o caso de Lampião, contado por Balão, ou Guilherme Alves. Esse cangaceiro afirma ter sido amigo e confidente do cabra Lampião:
- Lampião era comboieiro – pessoa que toca a tropa de burros de uma cidade para outra, vendendo mercadorias. Um dia, ele vortô pra casa e encontrô a famia morta. Foi uma outra famia, os Fulô. Lampião ficô revortado e entrô no grupo do padre Luiz Pereira Fagundes. Depois ele passó a liderá o grupo. Muitas vêis eu ouvi ele falá que ia se entregá pra poliça. Mais tudo mundo tirava isso da cabeça dele: se ele se entregasse, era homi morto.
Depois, Balão conta que o que estragava a moral do cangaceiro era a fama que eles tinham, quase sem culpa. Os jornais falavam mal do cangaceiro – que só queria viver, sem se sujeitar à opressão dos “coronéis de fazenda”. Para isso, é que os homens se internavam na caatinga. Geralmente, fugiam para o interior acuados pela polícia, a “volante”, por terem se insurgido contra alguma injustiça. Às vezes, eram apanhado pela “volante”, que os torturava para descobrir os cangaceiros. Eles eram obrigados a fugir e, para não morrer, matavam como cangaceiros.
E o cinema, Balão, você assistiu aos filmes de cangaceiro?
- Sisti, tudo mintira, elis qué imitá, mais num consegue.
Balão viu a morte de Lampião, viu quando o amigo tombou de costas, varado por diversas balas.
Existem algumas hipóteses segundo as quais o cangaceiro teria sido morto com veneno.
O sangue de Lampião saía, pelo nariz e pela boca. Balão fugiu do lugar. Posteriormente, ficou sabendo que os “volantes” cortaram-lhe na mesma hora a cabeça e a de Maria Bonita. Consta inclusive que ela teria sido decapitada ainda viva, pois seu ferimento não era dos piores.
- Ninguém morre de um tiro só.
Quando Balão fugiu, com o seu grupo, mandou um rapaz saber se Lampião tinha sido salvo. O rapaz voltou com fotografias das cabeças do cangaceiro e sua companheira. Os volantes decapitaram-nos e colocaram as cabeças em latas com vinagre e sal. Levaram depois essas latas pelas cidades, para intimidar o povo.
Zé Sereno, ou José Ribeiro Filho, perna quebrada, bengala. Ele conta que comprava suas armas de muita gente, até de “coronéis”. Pagava 600 cruzeiros por um mosquetão e 2 cruzeiros (antigos) por uma bala.
Mas o cangaceiro não podia fazer suas compras com a mesma tranquilidade de quem entra no armazém. Ele não podia se arriscar. Por isso, utilizava os serviços de um coiteiro. Era a pessoa encarregada de fazer as compras dos cangaceiros.
Zé Sereno, você pode dizer quem lhe vendia as armas? Não moço, num mi peça isso, tem muita gente viva lá ainda, num quero cumplicá ninguém.
Dadá, a mulher de Corisco, ouve a resposta de Zé Sereno e comenta:
- Num si cospe no prato que si come.
Isso mostra que, passados muitos anos das lutas, dos crimes e de toda aquela epopeia sangrenta, eles ainda continuam acreditando no que fizeram, não achando errado. Num si cospe no prato qui come diz Dadá, que é Sérgia da Silva Chagas, a mulher de Corisco.
Criança, ou Vitor Rodrigues Lima. Outrora uma fera; ontem, de terno e gravata, passou carregando uma criança no colo. Foi gozado, disseram-lhe: ao que chegou um cangaceiro, a pajem de criança.
Labareda, ou Ângelo Roque, 65 anos, parece muito mais velho. Quase não fala. Seus companheiros falam mais do que ele. Suas palavras são difíceis de ouvir, está muito velho. Mesmo assim, ele é muito objetivo, não gosta de muitos detalhes. Até repreende seus companheiros, quando estes contam suas histórias e se perdem nas minúcias. Marinheiro não fala nada, até o nome certo não quer dizer. Finalmente diz, é Antônio Paulo dos Santos.
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