Do acervo do Antonio Corrêa Sobrinho
O JORNAL – RIO DE JANEIRO – QUINTA-FEIRA, 5 DE OUTUBRO DE 1944
]SEIS ANTIGOS CANGACEIROS EXPLICAM O CANGAÇO
Volta Seca, Ângelo Roque, Saracura, Deus Te Guie, Cacheado e Caracol na mais movimentada e estranha de todas as “mesas-redondas”
“A primeira impressão que tive de Lampião foi o de um homem sujo” – Volta Seca: “Nunca vi Lampião brigar sozinho” – Lampião dizia: “Falar alto prejudica” – Cacheado: “Os coiteiros sempre foram a nossa perdição” – Mencionado, entre os coiteiros, o pai do Secretário de Justiça de Pernambuco – Saracura: “A gente nunca sabe como se começa” – Caracol: “O povo do sertão tinha mais confiança na gente do que nos macacos da volante” – O penitenciarista mais moço do mundo – Deus Te Guie: “Houve muita injustiça por estes sertões”
(Reportagem de JOEL SILVEIRA – Fotos de JOSÉ BRITO, da Agência Meridional)
Na Penitenciária da cidade de Salvador, o repórter Joel Silveira, da Agência Meridional, continuando a série “O Caminho do Norte”, reuniu seis antigos companheiros de Lampião na mais estranha, movimentada e pitoresca das mesas-redondas. Volta Seca, Ângelo Roque, Saracura, Deus Te Guie, Caracol e Cacheado, antigos reis das caatingas e dos cangaços, durante perto de três horas falaram ao jornalista sobre suas vidas, sobre os motivos que os levaram à vida do crime, sobre suas esperanças e tristezas. A figura do capitão Virgulino Ferreira da Silva é retratada e analisada fielmente pelos seus ex-comandados, e um dos fenômenos mais típicos do cangaço, o coiteirismo, surge aqui através de tintas novas e fortes.
À “mesa-redonda do cangaço”, na Penitenciária baiana, estiveram também presentes o diretor do estabelecimento, Sr. Paulo Barreto de Araújo, O jornalista Odorico Tavares, diretor do “Estado da Bahia” e do “Diário de Notícias”, além de dois médicos.
CIDADE DO SALVADOR, setembro – Fiz, em meio à conversa, a pergunta repentina: os antigos companheiros e comandados de Lampião, se entreolharam, silenciosos. Ângelo Roque baixou a cabeça e Saracura, com os olhos mais tristes do mundo, pôs-se a olhar pela janela aberta. Segundo depois, porém, Cacheado me encara com o seu rosto de criança, ilumina-se num sorriso cândido e me diz:
- A gente matava como uns danados.
- E acrescenta:
- Mas a culpa não era da gente.
Ângelo Roque, o ‘velho Ângelo”, aprovou com a cabeça. E Cacheado continuou:
- Se os homens educados não auxiliassem a gene com munição, a história seria outra. Não teria se dado nada do que se deu. Pensando bem, os criminosos são eles. Uma pessoa que enxerga não ajuda um bandido.
RESOLVI FAZER JUSTIÇA COM AS MINHAS MÃOS
É uma tarde de quinta-feira, e estamos aqui, num dos mais amplos salões da penitenciária do Salvador, diante de seis famosos homens do cangaço: Volta Seca, Ângelo Roque, Saracura, Cacheado, Deus Te Guie e Caracol. Deus Te Guie é quase um menino, apenas dois anos de banditismo nas caatingas, mas Ângelo já vai se aproximando dos cinquenta: tem um rosto grave, de uma tristeza séria, e o sertão deixou nele profundas marcas – as faces cortadas por rugas como talhos e um brilho de sol inclemente nos olhos. Antes do repórter haver começado a tomar os seus apontamentos, o Dr. Paulo Barreto de Araújo, diretor da Penitenciária, fizera um pequeno discurso aos seis antigos bandoleiros. Aquilo ali era uma espécie de “mesa redonda do cangaço”, na qual seria debatido, entre o jornalista e os homens da caatinga, tudo que lhe dissesse respeito. Que cada um contasse sua história, as razões que o haviam levado a deixar a existência legal e ordeira de suas roças e seus empregos para a tremenda aventura do banditismo sertanejo. E que falassem livremente, com a toda a sinceridade.
- Eu sempre falei com sinceridade.
E me conta, dando início à conversa, que entrou para o cangaço para desafrontar sua honra.
“Sempre fui um homem da ordem. Sempre vivi honestamente do meu trabalho”.
Sua história, em resumo, é simples, e a escuto na própria voz do “velho Ângelo”, uma linguagem seca e típica de sertanejo. Ângelo Roque da Costa nasceu em Jatobá, Itacaratu, em Pernambuco. Entrou para o banditismo em 1928, quando conheceu Lampião. Seu primeiro encontro com Virgulino foi na fazenda Arrasta-Pé, na margem baiana do São Francisco.
- Não me esqueço da primeira impressão que Lampião me deu: a de um homem sujo que dava nojo.
Pouco antes de 28, em Jatobá, um soldado da força local deflorou uma irmã de Ângelo, é o que ele me diz. O caso foi para a justiça, mas o soldado era protegido da política “de cima” – as queixas e revoltas de Ângelo nada conseguiram.
- Então resolvi fazer justiça com as minhas próprias mãos. Fui na casa do soldado, mas só estava lá a mulher dele. Esperei na porta até que ele chegasse. De noitinha ele apareceu, e então lhe disse que ia morrer. Atirei duas vezes. O praça caiu de bruços, mas não morreu. Me disseram depois que andou muito tempo à beira da morte, mas não morreu.
O medo da prisão jogou Ângelo Roque na caatinga; durante vários meses, andou como um seu pouso pelos áridos caminhos do sertão. Pouco aparecia nas cidades. Trabalhou em roças, fez plantações, dormia no mato. Conheceu, depois, Corisco e Arvoredo, e os dois lhe explicaram que a única maneira de viver tranquilo, longe da polícia, era entrar para o cangaço. Em 1928, quando conheceu Lampião, se decidiu. Mas ficou pouco tempo com Virgulino:
- Lampião não podia ficar parado num canto, e eu nunca fui homem viageiro. Além disso, de vez em quando a gente se encrencava. Um dia tive uma briga mais séria com ele, por causa de uma coisa sem importância. A gente estava de emboscada, na caatinga, com a polícia defronte. Uma sede medonha me queimava a garganta, e em dado momento reclamei por água em voz alta. Lampião me disse: “Se falar mais, lhe liquido”. Respondi que isto era difícil. Virgulino me respondeu: “Falar alto prejudica”. Retruquei que também ele, Lampião, gostava de falar alto e reclamar. Virgulino me respondeu que era o chefe; podia fazer o que bem entendesse. “Todo chefe deve dar o exemplo”, disse. Depois outros companheiros se meteram no meio, e tudo ficou aí. Mas compreendi logo que nunca poderia me dar bem com Lampião.
Meses depois, Ângelo falou claro ao capitão Virgulino: ia deixa-lo, formar outro bando, como Corisco. Lampião não protestou, e o “velho Ângelo”, com mais dois companheiros, ficou como residente fixo na zona baiana do São Francisco.
- Mas confesso ao senhor que a vida do crime nunca me seduziu. Eu havia entrado para o cangaço sem querer, mas sempre compreendi que aquilo não estava certo. Quando 1939 começou, eu já estava com a resolução acertada: me entregaria à polícia. Não fizera isto antes, com medo da prisão. Um sertanejo livre não gosta de viver metido entre quatro paredes. Se os doutores me prometessem a liberdade, eu me entregaria com os meus companheiros, acabaria com o bando e iria viver de meu trabalho. Entrei em negociações com os capitães Felipe Castro e Salomão Rehen, da força policial de Coité, no norte da Bahia. Os dois se entenderam com as autoridades da capital e a resposta veio depois: que eu podia me entregar com meus cabras, sob garantia oficial de liberdade. Então nos entregamos. A princípio tudo correu bem. Passei uns seis meses na Bahia sem ninguém me incomodar. Meus companheiros foram para o interior, à procura de trabalho. Com umas economias que tinha, entrei como sócio de um caminhão. Mas depois aconteceu a desgraceira.
O culpado da “desgraceira”, me explica Ângelo Roque, foi o promotor de Coité, que, em 1941, requereu da justiça estadual a prisão do “velho” e dos seus companheiros.
- Este homem sempre me quis mal, não sei porque. Nunca fiz nada com ele.
A justiça foi implacável para com os antigos reis do cangaço: Ângelo e seus amigos foram condenados, cada um, a 30 anos de prisão.
VOLTA SECA BRIGA COM LAMPIÃO
O doutor Paulo Barreto de Araújo (é o mais jovem diretor de Penitenciária de todo o mundo, me explicaram na Bahia – ele tem 25 anos de idade) me diz que, na prisão, o comportamento de Ângelo Roque tem sido exemplar. Há meses atrás, o antigo bandoleiro trabalhou numa ‘Horta da Vitória” da Legião Brasileira de Assistência, e diariamente, sem qualquer vigilância, seguia, a bonde, para o bairro de Brotas, como qualquer outro passageiro da Circular. E de todos os seis ali presentes, o único que tentou fugir foi Volta Seca. Pergunto ao famoso “cabra” de Lampião, seu lugar-tenente, o que pretendia ele fazer ao se sentir livre o seguro. Volta Seca- é o mais vivo, o mais alegre e o mais inteligente de todos – me responde num sorriso:
- Ia cuidar de minha vida.
E depois:
- Me meteria num lugar bem longe, mas tão longe que ninguém ouvisse falar de mim. Mudaria de nome e ia viver tranquilo. O que passou, passou.
Sua fuga, há pouco mais de um ano, foi um pródigo de habilidade e sangue frio: com uma lima rústica, Volta conseguiu serrar uma das grades da prisão, e seu corpo fino e elástico, corpo de menino, deslizou pela pequena abertura e, depois, por um reduzido espaço entre os fios elétricos do muro da Penitenciária.
- Em pouco mais de vinte dias, fui a pé daqui da Bahia até Santa Luzia, em Sergipe. Não fui em menos tempo, porque um companheiro meu, que também havia conseguido escapar, adoeceu no caminho.
Converso com este rapaz de 28 anos de idade (parece ter apenas vinte), e às vezes me esqueço que foi ele próprio, há dez anos atrás, que comandou uma série de horrores numa fazenda de uns parentes meus, no sul de Sergipe. Seu bom humor é contagiante, e é impossível deixar de rir quando Volta nos revela, na sua maneira dialogada, ecos de sua fuga recente:
- Uma tarde cheguei numa roça e pedi emprego. A dona da roça me olhou, perguntou depois: - “Você não é o Volta Seca? ” Dei um pulo para trás, gritei: “Deus me livre, minha senhora! Isto é coisa que se diga! ” Então a moça continuou: “Pois já vi o retrato de Volta Seca e o senhor se parece muito com ele. ” Respondi: “Pois então, dona, me pareço com o diabo! ”
Pergunto a Volta Seca sua opinião pessoal sobre Lampião, e ele me responde:
- Lampião sempre foi um homem difícil de explicar.
- Mas era valente?
- Homem, não sei. Rodeado de amigos bem armados e dispostos, todo mundo é valente... Nunca vi ele brigar sozinho. Lampião só andava rodeado, e assim qualquer trabalho é fácil.
Aponta para Ângelo Roque, afogado na sua gravidade:
- Valente era aquele ali. Isto sim. Já vi várias vezes o velho Ângelo enfrentar sozinho vários “macacos” (macacos são os soldados das volantes).
Também Volta Seca brigou, certa vez, com Lampião. Foi uma briga muito séria, me diz ele, e Deus Te Guie confirma:
- Naquele dia, eu tinha certeza que um dos dois ia acabar de viver: ou Volta ou o capitão.
O mal-entendido entre o chefe do bando e o seu cabra mais importante e famoso teve lugar em 1931, após um duro combate com a força policial. Um dos bandoleiros, Bananeira, havia sido ferido pelos “macacos” e ficara estendido na estrada. Volta Seca procurou Lampião e pediu-lhe autorização para ir buscar o amigo ferido. Virgulino achou que a empresa era perigosa e que a saída de Volta poderia facilitar aos soldados a pista do bando. Mas Volta Seca não podia deixar o companheiro morrer, me diz. Então surgiu o primeiro atrito entre os dois. Em companhia de Caracol, que também está aqui presente, com seu rosto parado, Volta conseguiu arrastar Bananeira até um lugar bem seguro. Mas Bananeira estava muito ferido, e teve que ser transportado numa rede.
- Bananeira pesava como o diabo, me dia Volta Seca.
Quando os dois chegaram, com o companheiro ferido, Lampião e o resto do bando já haviam ido embora. Voltaram depois, e Virgulino procurou Volta Seca.
- Menino, a gene tem que andar depressa. Os macacos estão por perto. Solte o ferido aí e monte no seu cavalo.
Volta Seca respondeu que não podia fazer aquilo. Bananeira iria com ele – e montou o ferido no seu próprio cavalo. Virgulino, cheio de raiva, ordenou a Volta que desmontasse Bananeira.
- Então o sangue me subiu para a cabeça. Disse que não desmontava. Lampião pegou na carabina, mas fui mais ligeiro do que ele. Apontei bem no peito, e lhe disse: “Se o senhor com as pestanas, atiro” – Lampião estava verde de raiva. Ficamos assim um tempo grande, um olhando para o outro. Depois os companheiros serenaram a coisa. De noite, no meu rancho, fui avisado por Quixabeira e Gavião que Lampião ia me matar no dia seguinte. Então dei o fora.
“QUASE TODO DONO DE FAZENDA ERA COITEIRO”
Volta Seca tinha apenas 14 anos quando entrou para o bando de Virgulino Ferreira da Silva. Nascera em Itabaiana, no centro de Sergipe, fugiu de casa e andou sozinho pelo sertão. Encontrou-se com Lampião em Guloso, no município de Bom Conselho, na Bahia. Ele me diz agora que, quando menino, apanhava quase que diariamente de Lampião. De Virgulino e dos outros:
- Todo mundo gostava de enxugar a mão em mim. Até o velho Roque. Mas depois endureci o cangote, e o primeiro que me apareceu com ares de pai, recebi com a mão no rifle.
Volta Seca me garante que metade das histórias que contam a seu respeito não são verdadeiras.
- Gostam de contar, por exemplo, que eu só matava à traição. Uma calúnia. Eu posso ser tudo, meu senhor, posso ser ruim de doer, mas uma coisa não sou: covarde e traidor. Nunca matei ninguém pelas costas, sempre em defesa própria. E sempre fui amigo dos meus amigos. Eu podia ter matado Lampião, naquele dia da briga, matar pelas costas, friamente. Mas não matei, porque era feio.
Pergunto a Volta Seca os nomes de alguns dos coiteiros mais importantes e mais chegados ao bando. Ele sorri e responde:
- O que passou, passou.
Mas Cacheado toma a palavra:
- Quase todo dono de fazenda era coiteiro. Os coiteiros sempre foram a nossa perdição. Eles nos davam dinheiro, comida e munição. E eram sempre eles que nos entregavam aos macacos.
Cacheado lembra-se de dois coiteiros importantes: Antônio Caixeiro, do noroeste de Sergipe, e do Dr. Odalio, de Pau Ferro, em Pernambuco, pai do atual secretário de Justiça do Estado de Pernambuco, no governo do interventor Agamenon Magalhães.
Volta Seca tenta inocentar os coiteiros, dizendo:
- Eles tinham que ajudar a gente. Senão a gente queimava a fazenda e matava o gado.
VOLTA SECA CONTRA O SR. BERILO NEVES
Pouco antes de iniciarmos a longa conversa de mais de três horas, Volta Seca falou baixinho ao repórter, num vão da sala:
- Lhe digo ao senhor que tenho muita raiva de jornalista.
E agora ele revela que sua raiva toda nasceu de uma calúnia que, a seu respeito, divulgou “um tal de Dr. Neves”. O doutor Neves é o cronista Berilo Neves, essa teimosa preciosidade da subliteratura nacional. Numa de suas crônicas diárias do vespertino, Berilo, comentando a fuga de Volta Seca, escreveu várias coisas que o antigo bandoleiro julga extremamente injuriosas à sua pessoa. Segundo Berilo Neves, a prisão transformara inteiramente o antigo lugar-tenente de Lampião, tornando-o um rapaz pacato e acomodado, de voz fina e gestos femininos, apenas preocupado com a ciência de tricô, que aprendera recentemente. Mas a verdade é que venho encontrar um Volta Seca viril, de fala dura. Ângelo Roque me diz:
- Foi uma maldade o que o jornalista fez com Volta. Volta sempre foi um homem.
E o próprio Volta Seca me diz:
- Um amigo me mandou o artigo e nunca mais o perderei. Está cortado, muito direitinho, e guardado no meu baú. Não sou um cabra vingativo, mas gostaria de procurar aquele doutor, quando sair da prisão, para ensinar a ele a fazer crochê. Por causa de seu Neves, tomei raiva de jornalista. Só vim aqui para esta reunião porque o Dr. Paulo pediu muito, e ele é bom para comigo. E agora que o senhor está aqui, quero lhe pedir um favor: desminta lá fora o que disseram de mim. Escreva no seu jornal que sou um homem sério. Digam que sou bandido, que sou criminoso, não há de ser nada. Mas não me chamem de cabra safado, que eu não sou.
Todos os outros companheiros de Volta ficaram também revoltados com a calúnia do cronista carioca. Caracol, um homem de poucas palavras, quebrou o seu silêncio para dizer:
- Isto não se faz. Com a honra de um homem não se brinca.
A GENTE NUNCA SABE COMO SE COMEÇA
Saracura, a pele esverdeada pelo impaludismo, o olhar distante, se perde no mundo lá de fora que a janela aberta deixa ver: o telhado comprido da estação de Calçada, as casas equilibradas no morro ao lado, a chaminé comprida da fábrica. É um rapaz calado que de vez em quando morde os lábios. Suas respostas são quase monossilábicas. Pergunto:
- Como você começou essa vida de bandoleiro, Saracura?
Ele responde:
- A gente nunca sabe como se começa.
Ângelo Roque é da mesma opinião:
- Nunca se sabe. Uma coisa digo ao senhor: ninguém nasce bandido. Vamos dizer que aquele soldado casado não tivesse feito mal à minha irmã – tudo teria sido diferente. Eu continuaria na minha rocinha, talvez tivesse hoje umas economias, talvez até já fosse dono de um sítio. Nunca fui um homem da maldade. Depois que a gente cai no caminho do crime, é que é o diabo. O medo da prisão transforma o indivíduo numa fera.
Caracol, tão calado, parece despertar, e começa a falar numa espécie de explosão:
- Por aí só se fala nas crueldades dos bandidos. Mas o senhor ande pelo sertão, converse com o povo pobre de lá – todo mundo dirá ao senhor que muito mais barbaridades do que nós, praticavam os soldados da força volante. Eu poderia aqui citar casos e mais casos de coisas horrorosas que eles praticaram por estes sertões. Bandidos como a gente. Por isto é que, em muitas cidades e povoados, nós, os cabras, éramos recebidos como salvadores. Em certos lugares, meu senhor, o povo tinha mais confiança na gente do que nos macacos da volante.
Volta Seca aparteia:
- É isto mesmo: os crimes dos macacos foram iguais aos nossos. Mas nada aconteceu com eles. E com os coiteiros? Os homens importantes e ricos do sertão, que nos ajudavam, nos davam armas e víveres, continuam ricos e importantes. Quando fui interrogado pelo júri, denunciei “seu” Petronilio, de São José da Glória, aqui na Bahia, como o maior coiteiro de todo o sertão. Mas a denúncia ficou por isso mesmo.
Cacheado volta com o seu riso de menino:
- A gente matava muito, a gente matava como uns danados. Mas a polícia matava mais.
Ângelo Roque faz um gesto com a mão, e o silêncio volta para a sala. Agora só se ouve a voz grossa do “velho Ângelo”, que diz muito sério:
- Mas não vamos falar mais nisso. O que passou, passou, já disse. O que adiante agora é que nos deem a liberdade prometida. Sou ainda um homem moço, quero ficar livre, trabalhar e cuidar de minha vida.
Volta Seca volta-se para o repórter: - Veja o que o senhor pode fazer por nós. Até agora ninguém nos ajudou. Chegam aqui uns doutores, pedem para ver a gente e saem prometendo mundos e fundos. Mas a verdade é que continuamos aqui. Já passei um tempo medonho na prisão, mais de dez anos, quero a liberdade. Fugi, há pouco tempo, porque não aguentava mais. Se eu não fugisse, ficava maluco.
Deus Te Guie acrescenta:
- “Seu” Ângelo não gosta que a gente fale, mas é preciso que se diga que houve muita injustiça por estes sertões. Por que foi que “Arvoredo” ficou criminoso? Por causa das barbaridades que os macacos fizeram com sua família.
E é Volta Seca quem me conta a história:
- O pai de Arvoredo vivia em Santo Antônio da Glória. Numas eleições, o velho deixou de voltar no chefe político do lugar. O chefe mandou os volantes no seu sítio, e eles fizeram horrores: estupraram as duas filhas e mataram os quatro filhos do velho, inclusive duas criancinhas de berço. Só escapou Arvoredo, que tratou de fazer justiça com suas mãos. Acabou bandido e o velho se tornou coiteiro. Foi preso um dia e acabou morrendo aqui nesta Penitenciária, há dois anos atrás, quase com oitenta anos.
O próprio Saracura parece, agora, sair do seu sono triste. Pede a palavra e conta:
- Posso falar também do meu caso. Peguei na espingarda quase que obrigado, para vingar as misérias que fizeram com meu pai. Um dia, no Coité, as volantes invadiram o nosso sítio. Queriam à força que meu pai desse notícia dos bandidos, como se ele fosse coiteiro. O velho não sabia de nada, e então os macacos começaram a supliciar o pobre: arrancaram as barbas dele fio por fio, arrancaram suas unhas com alicate. Se o senhor pensar que estou mentindo, vá no Coité e procure André Paulo do Nascimento, que mora nas redondezas. É o meu pai. Ele dirá ao senhor se estou ou não falando a verdade. Ele mostrará ao Sr. o estado em que ficaram seus dedos. E eu próprio, antes de pegar na espingarda, fui um dia violentamente espancado na fazenda Curral, perto de Coité. Os macacos haviam dito que eu era coiteiro, mas a verdade é que, até então, eu nunca vira um bandido na minha vida.
Saracura me revela mais que é casado e tem três filhos, que de vez em quando o visitam. A última carta que recebeu do seu pai veio com a data de 6 de agosto do ano passado.
“QUERO TIRAR UM RETRATO OLHANDO LÁ PARA FORA”
A palestra chega ao seu fim, e peço agora aos antigos companheiros de Lampião que permitam ao meu fotógrafo uma série de instantâneos, coletivos e individuais. Instintivamente, Deus Te Guie abotoa a blusa e passa a mão pelos cabelos envernizados. Volta Seca diz num sorriso:
- Só deixo tirar meu retrato se o senhor mandar uma cópia para mim.
E quando o violento magnésio do meu amigo Brito rebenta na sala, como um tiro de canhão, o ex-lugar tenente do capitão Virgulino dá um pulo da cadeira:
- Um tiro desgraçado! Parece pólvora seca.
E quando lhe peço uma pose especial, Volta chega até a janela aberta e diz:
- Quero tirar um retrato olhando lá para fora com cara triste. Para mostrar aos doutores que estou doidinho para sair daqui.
Há uma larga distribuição de charutos e, ao se despedir, o velho Ângelo aperta minha mão com força:
- Disponha aqui de um criado às ordens. Desminta as calúnias que fizeram a Volta e veja o que o senhor pode fazer por nós.
Nas imagens: Na da esquerda - Saracura, Cacheado, Volta Seca, Deus Te Guie, Caracol, e o jornalista Odorico Tavares (de perfil). Nas seguintes: Ângelo Roque (Labareda), Volta Seca e o jornalista e escritor Joel Silveira.
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