Por Cleidiana Ramos
Em 1963, a
redação de A TARDE recebeu a visita de Antônio dos Santos, descrito como baixo,
magro e aparentando 50 anos, em reportagem publicada na edição de 14 de março
daquele ano. O visitante era o ex-cangaceiro conhecido como Volta Seca no bando
liderado por Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Lampião. Volta Seca foi
admitido no grupo, segundo afirmou, quando tinha 11 anos. Aos 14 foi condenado
a mais de cem anos de prisão que depois foram reduzidos para 30 anos. Foi
levado, mesmo sendo menor, para a Penitenciária do Estado. Ficou preso por 20
anos, pois, em 1951, o presidente Getúlio Vargas assinou o seu indulto. Em
liberdade, Volta Seca continuou a fascinar as mídias.
“– Vim fazer
uma visita a A TARDE para mostrar que não sou aquilo que inimigos afirmavam a
meu respeito e que mudei muito de vida sendo agora um brasileiro digno e
trabalhador, pai de numerosa família” (A TARDE 14/3/1963, p. 4).
Nesta visita,
Volta Seca reiterou, por diversas vezes, seu objetivo de desmentir histórias
que considerava prejudiciais à sua reputação, como a de que fazia crochê na
prisão. Isso parece ter lhe incomodado muito, pois contou que chegou a
procurar, sem sucesso, pelo repórter que escreveu o texto, mas tomou o cuidado
de garantir que não ia adotar nenhuma postura violenta caso o encontrasse.
“– O que me
danava – diz o antigo cangaceiro – eram as notícias de que eu vivia fazendo
crochê na prisão dando a entender que eu era afeminado. Procurei o repórter,
quando saí da cadeia, durante meses. Não queria evidentemente tirar vingança,
mas saber onde ele colheu as informações contra minha moral”. (A TARDE,
14/3/1963, p. 4).
No livro Volta
Seca e
o estranho
mundo dos cangaceiros, Estácio de Lima apresentou informações que podem
explicar a origem do boato sobre o crochê. Lima, diretor do Instituto
Médico-Legal Nina Rodrigues (IML), foi também presidente do Conselho
Penitenciário, o que o fez envolver-se com o caso de Volta Seca, especialmente
devido à sua condição de menor em ambiente prisional. O correto, de acordo com
a legislação da época, seria interná-lo em uma instituição correcional, mas
destinada a menores de idade. De acordo com Lima, no presídio, Volta Seca foi
direcionado à fabricação de flores com miolo de pão.
“Ora, sendo o
ambiente prisional favorável a deformações do caráter, com os desvios da
libido, o fato de escalarem o rapaz para essa habilidade, era deixá-lo exposto
aos motejos dos demais, afora os prejuízos resultantes da falta de um trabalho
de caráter viril”. (Volta seca e o estranho mundo dos cangaceiros, coleção
e-poket, pp 49-50).
O incômodo de
Volta Seca, portanto, era por conta de insinuações, ao que parece, sobre uma
inclinação homossexual, aspecto que foi citado mais diretamente em uma
reportagem.
“Na
Penitenciária dedicou-se a tarefas mais próprias às mulheres, executando
trabalhos em ‘tricot’ de fino gosto! Quando parecia que deixava a prisão
marcado por uma anomalia sexual, casa-se cá fora ‘Volta-Seca’, hoje já sendo
pai por duas vezes”. (A TARDE, 27/3/1957, p. 3).
O trecho
citado é da reportagem que anunciou, em 1957, quando Volta Seca já estava em
liberdade, a sua estreia como cantor. Ele gravou um LP intitulado Cantigas
Sertanejas. No disco, Volta Seca entoa canções que contou ser a trilha sonora
da rotina nos acampamentos do bando de Lampião.
“Atendendo
pedido do repórter, ‘Volta Seca’ canta algumas (músicas). Confirma que ‘Mulher
Rendeira’ era a preferida de todos e quase que o hino do cangaço. O LP chama-se
‘Cantigas Sertanejas’ e foi gravado pela Todamérica”. (A TARDE 14/3/1963, p.
4).
Midiático
Volta Seca foi
o preso mais jovem entre os integrantes do cangaço. Ele contou, na entrevista
que concedeu em 1963, que foi acolhido por Lampião após fugir de casa e
perambular pelos sertões. Estácio de Lima afirmou que ele tinha dez anos quando
entrou no cangaço. Natural de Itabaiana, Sergipe, Antônio dos Santos fez
pequenos serviços para o bando até que aos 13 anos começou a participar de
ações, como o assassinato de policiais em Queimadas, o crime que lhe deu
notoriedade e resultou na sua condenação.
Praticante da
abordagem que fazia a mistura explosiva – associação de traços físicos a
comportamento criminoso – seguindo os passos de Nina Rodrigues, Estácio de Lima
relata exames, como radiografia, em Volta Seca como um dos métodos para
investigar os motivos da sua inclinação para o crime. Mas criticou o que
considerava um interesse exagerado da imprensa pelo personagem.
“Volta Seca
passou a meio falastrão. E a reportagem ávida das novidades e das sensações
invadiu a Penitenciária da Bahia, no velho Engenho da Conceição, para as
entrevistas repetidas”. (Volta seca e o estranho mundo dos cangaceiros, p. 31).
Realmente,
Volta Seca foi tema de seguidas reportagens publicadas em A TARDE, pois sempre
estava envolvido em lances fascinantes. A edição de 18 de janeiro de 1946, por
exemplo, deu detalhes sobre Percilia da Cruz, uma lavadeira que morava na
região da Capelinha de São Caetano e que era tida como a companheira de Volta
Seca. A casa de Percilia foi um ponto de busca por informações quando ocorreu a
sua segunda fuga do presídio.
A escapada foi
noticiada no dia 17 de janeiro, mas 12 dias depois, um texto na capa do jornal
informou que Volta Seca havia retornado ao presídio. Ele explicou que ao perder
o horário marcado para se recolher temeu ser punido e resolveu ficar
perambulando por Salvador. Na fuga anterior chegou a sair da capital, mas
retornou quando o seu companheiro na ação ficou doente.
Revisão
Literatura,
estudos acadêmicos e o cinema começaram a abordar o cangaço por outras
perspectivas que não apenas a criminal. Há narrativas que enfocam, como no caso
dos movimentos messiânicos, a pobreza, a ausência do estado e o contexto dos
enfrentamentos de poderes locais como bases do fenômeno. As alianças de
Lampião, por exemplo, envolveram proprietários de terra interessados no poder
que essa relação poderia ofertar especialmente para amedrontar adversários.
“O cangaço é
um movimento que comporta as mais variadas narrativas, relatos, versões e é um
fenômeno antigo. O cinema foi fundamental na retomada desse assunto,
especialmente o feito por Glauber Rocha e outros integrantes do chamado Cinema
Novo”, analisa Gilfrancisco, 69 anos. Historiador, jornalista e escritor, ele
tem cerca de 40 livros publicados sobre temas e personagens relacionados,
especialmente, à história da Bahia e de Sergipe, onde mora atualmente.
Gilfrancisco é
autor de uma interessante obra que mapeia as notícias sobre Lampião no Diário
Oficial do Estado de Sergipe dando uma dimensão das estratégias adotadas para
tentar conter os ousados movimentos do herói para uns e bandido para outros. “O
Diário tinha uma coluna que fez parte da estratégia de comunicação oficial,
envolvendo até rádios para dar alertas sobre as ações de Lampião”, diz
Gilfrancisco. O livro intitulado Lampião no Diário Oficial tem belíssimas
ilustrações do artista plástico Leonardo Alencar.
Com o cangaço
no radar dos seus escritos, Gilfrancisco, um pesquisador cuidadoso e
detalhista, conheceu Volta Seca. Ainda menino, acompanhou o pai, Odilon
Francisco dos Santos, funcionário da Ufba e radialista, ao restaurante da
famosa cozinheira Maria de São Pedro. Lá, Volta Seca encontrou-se com Jorge
Amado.
“Na minha
cabeça de menino a sensação era de um certo temor, afinal ele era definido como
um matador, alguém que cometia atrocidades. Lembro que ele estava acompanhado
por dois homens. É natural, pois alguém que tinha uma história como a dele
podia ser um alvo para várias pessoas”, diz Gilfrancisco.
Esse encontro
tinha ainda um ingrediente a mais sobre a midiatização da história de Volta
Seca. Contava-se que ele tinha ficado furioso ao saber que Jorge Amado deu seu
nome a um dos personagens do livro Capitães da Areia. Segundo a rede do fuxico,
Volta Seca teria ameaçado fazer Jorge Amado engolir as páginas do livro. Mas ao
menos esse encontro, de acordo com as lembranças de Gilfrancisco, não teve
demonstrações de ressentimento.
De alguma
forma, Volta Seca parece ter contado com uma certa simpatia de alguns setores
da imprensa. Um repórter de A TARDE que, infelizmente, não tem o seu nome
registrado, pois na época não se usava rotineiramente o recurso de assinar
reportagens, conseguiu permissão para dar pessoalmente ao ex-cangaceiro a
notícia da redução de sua pena.
“Quando lhe
comunicamos que o presidente da República havia comutado sua pena e que ele
brevemente iria ser solto, “Volta Seca”, meio desconfiado, disse: “Deixe de
história seu repórter, o que eu quero é paz e dinheiro e daqui a uns dez anos a
minha liberdade”. Mostramos-lhe então o telegrama e ele exclamou que já podia
ir embora”. (A TARDE, 8/11/1951, p. 2). Mas a liberdade de Volta Seca ainda
demorou alguns meses e teve o cômputo de punição pelas duas fugas. Solto em
abril de 1952, foi trabalhar no IML, dirigido por Estácio de Lima. Sete meses
depois surgiu o boato de que ele havia sido morto em uma confusão. Além disso
ninguém conseguia localizá-lo em Salvador.
Mas na edição
de 5 de dezembro do ano seguinte, A TARDE noticiou que o Comitê de Imprensa da
Câmara do Rio de Janeiro estava à procura de um emprego para Volta Seca. O
texto também informou que ele havia auxiliado na divulgação do filme O
Cangaceiro, de Lima Barreto, e uma das atrizes, Marisa Prado, havia batizado
uma de suas filhas. Em 7 de dezembro de 1953, A TARDE informou que ele
conseguiu um emprego de vigilante, mas estava receoso, pois achava parecido com
a função de “macaco”, que era a forma como os integrantes do cangaço chamavam a
polícia.
Ferrovia
Quando visitou
A TARDE em 1963, Volta Seca estava trabalhando na ferrovia, na Estação Barão de
Mauá, conhecida como Leopoldina, no Rio de Janeiro. Contou que tinha um salário
superior ao mínimo da época, que era de 21 mil cruzeiros, e outros detalhes da
sua vida como um homem regenerado. Na despedida, o repórter foi abraçá-lo e
notou que ele estava armado, detalhe que registrou no texto assim como a
resposta de Volta Seca:
“– Tenho porte
de arma e carrego uma pistola. Meu serviço na Leopoldina exige. E o fato da
polícia me conceder porte de arma é uma prova que mudei e que a polícia confia
em mim”. (A TARDE, 14/3/1963, p. 4).
Volta Seca
morreu em 1997 quando morava em Minas Gerais. Não manteve a promessa de silenciar
sobre o cangaço, como afirmou para a reportagem de A TARDE em 1963, pois,
posteriormente, concedeu entrevistas a jornais, como O Globo e o Pasquim. Em
1995 foi entrevistado pela TV Globo onde mais uma vez abordou o tema que o
fazia ser lembrado: a condição de sobrevivente do bando de Lampião, uma
história que ainda move paixões intensas.
Cleidiana
Ramos é jornalista e doutora em Antropologia
*A reprodução
de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.
Fontes:
Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE
Para saber
mais: Volta Seca e o estranho mundo dos cangaceiros, Estácio de Lima, coleção
E-Poket, 2020; Lampião no Diário Oficial, Gilfrancisco, Edições GFS, 2021.
Pedidos:gilfrancisco. santos@gmail.com; Os Cangaceiros. Direção: Lima
Barreto, 1953
https://atarde.com.br/colunistas/atardememoria/a-trajetoria-de-volta-seca-o-menino-do-bando-de-lampiao-1158622
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário