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domingo, 16 de outubro de 2011

Heróis e bandidos


Por: Isabel Lustosa

 

Publiquei há pouco um livro sobre Lampião. Obra que me foi encomendada para uma coleção organizada por Lilia Schawrcz e Lúcia Garcia. A ideia da coleção é convidar escritores, jornalistas e historiadores para traçarem perfis de personagens da história do Brasil, contextualizando-os e propondo no final, alguma atividades a serem desenvolvidas em sala de aula pelo professor. Enfim, um livro paradidático que seja também agradável e útil para qualquer leitor que se interesse pelo assunto.

Há muito tempo eu tinha pensado em escrever um livro para crianças sobre Lampião partindo da história que mamãe me contou sobre a invasão de Cajazeiras na Paraíba. A história era muito boa, pois entre sustos e tiros, os cajazeirenses protegeram seus bens e suas famílias dos bandidos e enxotaram-nos da
cidade. Mamãe sempre me dissera que, na verdade, o ataque fora levado a cabo por Sabino, cabra de lampião.


Quando me convidaram para escrever esse livro voltado para um público mais amplo, pensei em incluir a história que mamãe me contou. Ela tinha me dito que a invasão de cajazeiras tinha sido em 1928. Eu procurei e não achei nada sobre o assunto e, mais, vi que na data da suposta invasão, Sabino já tinha morrido.

Achei muita coisa sobre a invasão de Sousa, também na Paraíba e sobre o papel que Sabino desempenhara na mesma. Fiquei achando que mamãe se enganara, que com sua idade avançada talvez estivesse confundindo as histórias. Ou ainda, que o medo que toda a gente da Paraíba tinha dos cangaceiros era tão grande que a história que acontecera em Sousa passara a ser lembrada com tendo acontecido na própria cidade.

Mas foi aí que encontrei o livro do meu saudoso confrade de Sabadoyle, Ivan Bechara: "Carcará". Quando conheci o ex-governador da Paraíba e escritor Ivan Bechara na casa de Plínio Doyle, ele me disse que lembrava bem de mamãe e me deu um de seus livros. Não era "Carcará" e não me lembro se conversamos sobre aquele episódio nos poucos encontros que tivemos ali.

O romance dele relata minuciosamente a invasão, naturalmente incluindo elementos ficcionais. Está tudo lá e mamãe errara só na data: ela trocou o dia, 28, pelo ano, 26. De modo que mamãe tinha 12 anos e lembrava detalhadamente das sensações de pavor que tomou conta de Cajazeiras quando se soube que o bando tinha entrado na cidade. Sua irmã mais velha, Sinhá, tinha ido à igreja com os gêmeos recém-nascidos e ela ficara em casa junto com vovó Chaguinha, de resguardo, os irmãos mais novos e o pai, vovô Piano. Este queria a qualquer custo sair, mas foi convencido a ficar em casa por minha avó. O resto da história, com a corajosa e inteligente reação do povo de Cajazeiras ao ataque está muito bem contada no livro de Bechara.

Mas o que quero falar aqui é o que sempre soube e o que as pessoas da geração de minha mãe sabiam: os cangaceiros eram violentos, cruéis e impiedosos. E isto eu disse em meu livro sobre eles e sobre Lampião em particular. Não disse nada de novo. Em seu excelente livro sobre Lampião, publicado nos anos 1980, Billy Jane Chandler já havia refutado a tese de Hobsbawn sobre o banditismo social no que dizia respeito ao cangaço. Depois do livro de Chandler, inúmeros trabalhos foram publicados e, por mais entusiasta que se seja das teses sobre a necessidade da violência para mudar o mundo, essa extensa bibliografia já deveria ter consolidado a certeza de que não era de jeito nenhum o objetivo de Lampião mudar o mundo no sentido de melhorar a vida do pobre.


Lampião jamais roubou dos ricos para dar aos pobres, a muitos dos quais roubou, torturou e matou com requintes de crueldade. Sua motivação sempre foi pessoal e ele, desde a juventude, junto com os irmãos, se metera em várias brigas na vizinhança, fazendo seus primeiros inimigos entre essas pessoas às quais continuaria a perseguir pela vida afora.

De onde vem a crença de que esse bandido inteligente, astucioso e bom estrategista mas também violento e cruel era uma espécie de Robin Hood? Algumas pessoas que leram meu livro pareceram muito surpreendidas com essa constatação.

Estou convencida que esse mito foi construído no âmbito de uma certa cultura de esquerda que predominou no Brasil entre os anos 1950 e 1970. O fascínio por Lampião surgiu ainda durante o seu longo reinado. A imprensa sensacionalista, tal como ainda hoje faz com alguns bandidos, também contribuiu para fixar a imagem de Lampião, repercutindo seus crimes, batalhas e fugas mais impressionantes. Ela, junto com a literatura de cordel, ajudou a criar e a difundir toda a mítica que cercaria a imagem do cangaceiro rico, poderoso e invencível com o qual, certamente muitos moços pobres sonharam em se equiparar, vendo no cangaço uma chance de vitória sobre o triste destino que lhes estava reservado.

Mas foi só com a emergência da luta pela reforma agrária no final dos anos 1950, as famosas Ligas Camponesas, que o cangaço foi escolhido como símbolo maior da luta do povo sertanejo contra a opressão e a miséria. O herói redentor tinha que vir do meio do povo e, se a violência era o caminho legítimo para o sucesso da luta de classes, o cangaceiro tinha os elementos estéticos mais adequados para preencher a imagem daquele herói. A classe média urbana de esquerda com seu desconhecimento da realidade sertaneja sendo preenchido por imagens românticas da literatura, se traduziria em obras que buscaram sua lírica em elementos da paisagem da caatinga e em uma representação do sertanejo que era herdeira direta da descrição feita por Euclides da Cunha.

Se o sertanejo era antes de tudo um forte, concluía aquela gente bem intencionada, só podia ser com o objetivo de lutar pelos direitos de seu povo que ele se fazia cangaceiro. Quem ler com atenção a história de Virgulino Ferreira da Silva vai constatar que, infelizmente, não era bem assim.

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Autor:   Isabel Lustosa - caderno3@diariodonordeste.com.br

Extraído do blog: "O Cangaço em Foco",
do Dr. Archimedes Marques - Delegado de Polícia Civil no estado de Sergipe. (Pós-Graduado em Gestão Estratégica de Segurança Pública pela UFS)
archimedes-marques@bol.com.b

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