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sábado, 26 de novembro de 2011

Moreno e Duvinha - Viagem aos tempos de Lampião

Por: Jotabê Medeiros - Belo Horizonte


Casal de pistoleiros dos anos 30 fugiu a pé para Minas Gerais e foi reencontrado na semana passada.
Matou 21 - 1 deles com uma só facada. Pôs para correr três policiais na saída de um baile. Viajou de carona em trem de bóias-frias, pendurado do lado de fora, e afogou dezenas de bicho-de-pé com querosene. Andou três meses do sertão de Pernambuco até Montes Claros, em Minas, comendo miolo de chique-chique e casca de árvore. Na mão de um benfeitor de beira de estrada deixou a estimada pistola alemã Mauser. As balas, uma lata cheia, escondeu num tronco.
Isso tudo foi há 70 anos. Hoje, o antes temido cangaceiro usa camisa muito branca de mangas compridas com abotoaduras de plástico brilhante nos punhos, chapéu de feltro e sapato mocassim. Está afundado no sofá do andar superior do modesto sobrado no Jardim Tupi, bairro simples de Belo Horizonte. Não tem mais de 1,60 m de altura. Tenta levantar para cumprimentar o visitante, mas logo volta a seu posto compulsório no sofá, mal resignado. Aos 96 anos, sua saúde parece muito boa, danada de boa, mas ele guarda apenas como lembrança incômoda a memória espantosamente nítida daquele rapaz de 20 e poucos anos que ele foi, e que corria das volantes, se esquivando das balas e, eventualmente, extorquindo, matando e roubando.


José Antonio Souto, ou Zé Pernambuco, como é conhecido no bairro mineiro, foi o cangaceiro Moreno, do bando de Virgílio (cunhado de Lampião, um dos mais cruentos cangaceiros dos anos 30).
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Virgínio está sentado ao lado de Lampião
Sua mulher, Durvalina Gomes de Sá, a Duvinha, foi do bando de Lampião, companheira primeiro de Virgílio e, após sua morte numa tocaia, de Moreno. Se o leitor viu o filme Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (com imagens do raríssimo documentário do libanês

Benjamim Abrahão sobre Lampião e seu bando, feitas nos anos 30), Duvinha é aquela cangaceira bonita de cabelos compridos que brinca com uma pistola entre os homens de Lampião, apontando-a para a câmera e dançando.
Moreno lembra-se com precisão da data em que os dois deixaram o cangaço: 2 de fevereiro de 1940. Desde então, Moreno e Duvinha nunca mais falaram sobre seu passado, sobre os anos em que as balas ricocheteavam à sua volta e estavam entre os fora-da-lei mais procurados do País. Adotaram um código de silêncio. Nem os filhos sabiam de algo. Mas o segredo durou até a semana passada.
Moreno e Duvinha foram localizados há alguns dias pelo cineasta cearense
Wolney Oliveira (de Milagre em Juazeiro), em campo para colher depoimentos para seu novo documentário, Lampião, o Governador do Sertão.
Neli e o cineasta Aderbal Nogueira
Uma das filhas do casal, Neli, ajudou o cineasta - a chave foi um filho que Duvinha e Moreno deixaram com um padre, em Tacaratu, no sertão pernambucano, enquanto fugiam. Moreno só contou sobre o passado por medo de jamais reencontrar o filho,
Inácio e Rostand Medeiros
Inácio, antes de morrer (eles o reencontraram, ele vive hoje no Rio de Janeiro e opõe-se à idéia de que os pais dêem entrevistas sobre seu passado). "Na idade que estou, achei que morria logo. Não queria deixar eles enganados."
Existem pouquíssimos ex-cangaceiros vivos. Mais raro ainda é encontrar um casal do cangaço, testemunhas privilegiadas da organização social, afetiva, militar e estratégica daquele tipo de movimento que atravessou o século 19 e chegou à metade do século 20. Um movimento mitificado pelas esquerdas como uma experiência autônoma de guerrilha (e exemplo da insurreição do povo contra as injustiças dos poderosos) e definido pela direita apenas como grupos de saqueadores, estupradores e oportunistas explorando duplamente a população. O sobrado do Jardim Tupi já está ficando pequeno para tanta gente que está vindo fazer o refino da história.
É o único casal de cangaceiros sobrevivente que existe. “O mais importante é que eles têm fatos novos, que podem esclarecer muito sobre a história do cangaço e, por conseqüência, do Nordeste”, diz o escritor
Moreno e João de Sousa Lima
João de Sousa Lima, recém-chegado de Paulo Afonso (Bahia), anotando e fotografando tudo. "É uma beleza!", diz apenas
Expedita Ferreira, filha de Lampião, que foi a Minas com a filha Vera para ver e ouvir Moreno e Durvalina.

Ouvindo a palavra de Moreno, sempre minucioso nos detalhes, sempre passando ao largo da emoção, esquematizando sua vida apenas como uma seqüência de fatos definidos por forças alheias à sua vontade, tanto as teses da esquerda e da direita sobre o cangaço não parecem sólidas. "Matei para não morrer", diz Moreno, antes de começar a contar sua história. "Nasci em Tacaratu, Pernambuco, fui batizado em Mata Grande e criado em Brejo Santo (Ceará). Nunca tive documento, mas, pelas minhas contas, tenho 96 anos." Tinha muita vontade de ser polícia, e foi a Juazeiro para tentar um posto, mas só tinha 17 anos e não lhe deram atenção. Empregou-se então em uma propriedade rural em Cajazeiro do Rio do Peixe, na Paraíba.
Era o fim dos anos 20. Ali, em Cajazeiro, em sua versão, uma mulher chamada Antônia lhe atribuiu uma calúnia, sevícias numa sobrinha, o marido da mulher veio para cima dele e ele o matou com uma facada só. Foi quando seu caminho começou a entortar. Teve de ir para longe, viajou muito. Em Camela, Pernambuco, pegou uma febre tremedeira que o deixou seis meses doente. Quando sarou, envolveu-se em briga com três policiais em Santo Amaro e, em vez de conseguir inimigo, um sargento no qual bateu lhe arrumou um emprego num quartel. Mas não foi efetivado na polícia. Foi barbeiro, cavoqueiro e marreteiro e, um dia, trabalhava de segurança para um pequeno fazendeiro quando o lugar se encheu de cangaceiro.
Queriam 200 mil réis do fazendeiro, Moreno teve de intermediar a negociação. O chefe dos cangaceiros era Virgílio, que gostou da coragem do negociador. Convidou Moreno para tomar café no acampamento e a seguir com eles. Ele ficou de pensar. "Deu oito dias e eles voltaram para me buscar. Deram-me rifle, bala, cartucheira. Ficou aquele bobo lá no meio daquela homarada", conta.

Durante alguns dias, tudo parecia tranqüilo e bom na vida iniciante do cangaço. Mas um dia Virgílio chegou para Zé dizendo que trazia um presente para ele. "O presente era um homem. Eu entendi logo que era para eu matar", conta. Era o teste definitivo. Zé não tinha uma Mauser, eles lhe deram uma. Disse que não sabia atirar. Ensinaram a manobrar. Ele pensou e disse a Virgílio, sem angústia. "Seu expediente será feito." Caminhou até o sujeito. "Apertei o gatilho e o homem tombou para o lado. Nunca fiquei sabendo quem era e quem não era."
Deram-lhe então o chapéu e a roupa azul de couro, ensinaram a apagar o rastro no bico da alpercata, e a não passar por ramo de árvore sem deixar o ramo para trás. O apelido Moreno foi o cangaceiro Luís Pedro, do bando de Lampião, quem lhe aplicou. "Não tive caderneta, mas não foi pouco não", ele responde, quando indagado sobre o número de homens que matou. "Entre polícia e paisano são 21, que tenho certeza. Mas tinha muito coiteiro que avisava a polícia quando a gente ia para a cidade fazer compras. Aí a gente matava", lembra.

Só não fez judiação com ninguém, garante. "Urubu comeu muito cangaceiro. Mas eu nunca cortei a cabeça de ninguém. Já tá morto, para que fazer mais? Isso aí é uma brutalidade", diz. E quanto à castração de lavradores, crueldade também atribuída ao cangaço? "Essa conversa de capar eu assuntei, mas não assisti não."

"Por que a senhora entrou para o cangaço?" Dona Duvinha, que foi a mais bonita daquele bando de Lampião - bem mais formosa que Maria Bonita, Moça Velha ou Inacinha. Ela responde de bate pronto: "Porque eu gostava de um cangaceiro (Virgílio). Eu era medrosa. Tinha a Mauser, tinha rifle, tinha punhal. Mas era só de boniteza", lembra Duvinha. Do cangaço, a bela mulher de Virgílio traz, além do atual marido, um terrível ferimento de rajada de metralhadora na perna esquerda e um pé semiparalisado, conseqüência de picada de jararaca. Essa doeu. "No mesmo instante, eu fiquei cega. Urinava sem parar, puro sangue."
E Lampião, era mesmo aquele sujeito de ruindade pura que diziam? "Era bom. Ele andava na razão dele. Grosseria foi o que fizeram com ele, com a família dele, a mãe, os irmãos."

Sentados na sala do seu sobrado em Belo Horizonte, cercados pelos filhos João Batista, Murilo e Neli, Duvinha e Moreno assistem às imagens que mostram o bando de Lampião em seu acampamento. Vão reconhecendo velhos companheiros de cangaço. Moreno lembra-se de como teve de se opor a que Corisco matasse uma das mulheres do grupo, Maria de Pancada, e quase teve de enfrentar em duelo o terrível cangaceiro. Mas Corisco lhe deu razão e ele salvou Maria, que foi mandada embora.

Mas o momento-chave é quando Durvalina reconhece a si mesma, dançando e brincando com as armas. A filha Neli chora. "Como era bonita, minha mãe! E como era feliz!" O irmão João Batista a consola: "Não chora, minha irmã. O que passou, passou. Temos de viver no presente." João Batista diz que errado seria esconder esse passado, que é parte da história do País, que pode ajudar a esclarecer fatos importantes da vida da Nação. "Temos orgulho dos nossos pais."
Moreno, que detestava fotos recusa a tese de que sua figura aparece também nas imagens mostradas na TV. Segundo ele, trata-se de um outro cangaceiro também chamado Moreno, diz, só que este era paraibano. "Meu cabelo era grande, meu chapéu muito bem-feito. E eu não carregava a arma desse jeito. Nunca estive do outro lado da Bahia. Declarei hoje coisas que deveria ter guardado silêncio. Agora, um cangaceiro que não sou eu vou dizer que sou eu?", reage indignado.
Observação: Este trabalho foi publicado no dia 24-06-2006

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