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quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Maria Bonita: a mulher e o nome - Parte I

Por: Frederico Pernambucano de Mello

Em agosto de 1928, fechando a cortina sobre ciclo de correrias que ocupara uma década inteira, todo ele desenvolvido nas porções rurais de cinco Estados do Nordeste situados ao norte do rio São Francisco, Lampião invade a Bahia. 


Bando reduzido em face de perseguição sistemática movida nos três anos derradeiros por forças volantes do seu Pernambuco de berço, ao menos por um tempo, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas e o próprio Pernambuco irão respirar a salvo daquele exército de chapéu de couro que transitava a cavalo pela estrada real, não por veredas, muito bem armado de fuzis e mosquetões militares de último modelo, ordens transmitidas ao toque de clarim, efetivo beirando os duzentos homens. 

Para os baianos do nordeste do Estado e, logo depois, para os sergipanos da fronteira, o forasteiro não era um desconhecido. A fama atravessara o rio havia alguns anos. Uma fantasmagoria só, no juízo do barranqueiro do rio e do residente do miolo da caatinga, o perfil daquele caboclo alto, seco, acorcundado ao peso dos bornais, cego do olho direito, óculos de professor no rosto estreito, a se deslocar em movimento de pêndulo acentuado, por ter de sacudir o pé – também o direito - baleado nos longes de 1924, moedas de ouro faiscando ao sol, costuradas por todo o equipamento. Uma figura inesquecível ao primeiro encontro, até por conta da mistura forte de perfume francês com o suor de muitos dias...

A poesia de gesta, cantada nas feiras pelo repentista, viola ao peito, ou pelo cego rabequeiro de ponta de rua, rivalizando com o folheto de cordel cuspido da prensa oportunista do poeta letrado, havia muito fizera de Lampião uma celebridade para além do sertão e do Nordeste: desde 1926, os jornais do Rio de Janeiro se ocupavam das  façanhas do bando em registros recorrentes. Como irá fazer o The New York Times entre os anos de 1930 e 1938. Outro tanto ficando para o semanário Paris-Soir.

Passados meses da travessia, meava o ano de 1929 quando o bando chega num final de tarde à sitioca da Malhada da Caiçara, vindo de mais uma visita de negócios a coiteiros protetores no Sítio do Tará, tudo do município de Jeremoabo, nos sertões da Bahia. Apressado, o chefe risca a burra de sela no terreiro da casa, levantando poeira, apeia e manda a cabroeira botar abaixo para um descanso. Como não costumasse andar à toa, já estava informado de que o casal Zé de Felipe e Maria de Déa - como eram conhecidos José Gomes Oliveira e Maria Joaquina da Conceição - residia ali em meio a uma filharada que se contava pelos dedos de ambas as mãos. Costume da terra e do tempo. Pela parte de cima da porta de duas folhas, Dona Déa vê o forasteiro crescer à sua frente e lhe dar as horas, emendando com perguntas apressadas: “Tem água, tem queijo, tem farinha, tem rapadura, tem café?”

- Tem de um tudo, Seu Capitão Virgulino, pode tomar chegada. Esteja a gosto com seus  rapazes.

Lampião tomará não somente chegada como saída, dali a dois meses de muitas visitas e de conversas intermináveis com uma Dona Déa metida na pele de alcoviteira eficiente, levando na garupa a segunda das filhas do casal, 


Maria, de sobrenome Gomes  Oliveira, nos dezoito anos de brejeirice, casada de pouco, sem sucesso, com parente obscuro, José Miguel da Silva, o Zé de Neném.

 

Um sapateiro de profissão, incapaz de cair na admiração da esposa, e de dar calor àquele corpo alvo, de formas cheias, pernas torneadas com perfeição, cabelos castanhos, finos e longos, testa alta, nariz afilado. Bonita, divertida – adorava dançar – e prendada: boa na agulha e nas linhas.

Da primeira troca de palavras com o cangaceiro e futuro marido, Maria ouve deste que precisava bordar três lenços. E se surpreende com a delicadeza de espírito daquele espantalho dos sertões. Logo se inteira de que o chefe de cangaço dominava tão bem a arte de matar gente quanto a da costura, em pano e em couro, e a do bordado. Ninguém superava Lampião na máquina Singer de mesa. Um arcaísmo sertanejo, esse da costura em mãos de homem, antes que um traço de efeminação. Boa higiene mental, em todo caso. O dia inteiro a girar o veio da máquina de costura faz esquecer os problemas. As angústias de um cotidiano de violência indissociável da idéia de cangaço. De uma concepção de vida que se baseou invariavelmente na dominação pelo terror. Mas nada impedia o chefe de se fiar nas mãos hábeis de terceiros, andasse avexado, olho no relógio, em meio a alguma missão. Encomendava, nessas horas, especificando com minúcia, e exigia perfeição no resultado, sujeito caprichoso em todas as atividades a que se dedicou na existência de quarenta anos. Alfaiate de couro na adolescência, vaqueiro do gadinho da família, amansador de burro brabo por toda a ribeira do Pajeú, tropeiro pelos quatro cantos do Nordeste, em tudo o Virgulino dos anos verdes deixara nome no sertão.


Maria não se faz de rogada. Toma a encomenda e corresponde no prazo, caindo no agrado do novo amor. Que teve de romper com a tradição do cangaço para aceitá-la no seio do grupo. Rechaçar as recomendações de seu primeiro mestre de guerrilha móvel, o cangaceiro Sinhô Pereira, neto do Barão do Pajeú e nome celebrado nas armas, que não admitia a presença feminina nos bandos. Uma perdição, trovejava do alto de ascetismo tornado proverbial o professor de cangaço de Lampião, no que por anos se alongou em  sentença irrecorrível entre cangaceiros. 

Ao ceder à novidade imposta pelo amor, Lampião não apenas dava rumo diferente ao cangaço: sem o saber, perfilava a vida da espingarda, de existência secular na caatinga, na tradição de presença feminina que faz parte da história militar brasileira desde as guerras coloniais. Há registros dessa presença na Primeira Batalha dos Montes Guararapes, de 1648, às mulheres cabendo o “amasso do pão” na cozinha móvel do exército holandês. 

Outro tanto na Guerra do Paraguai, de 1864, em que se afirma a saga da vivandeira, cantada em prosa e verso ao final do conflito, por conta do heroísmo de acompanhar o homem amado ao campo de batalha, credenciando-se à gratidão dos nossos Voluntários da Pátria e despertando as lágrimas da opinião pública do Sudeste nos primórdios da afirmação da imprensa periódica em nosso país. O mesmo se pode dizer da Guerra de Canudos, de 1897, nos sertões da Bahia, em que a mulher precisou enrijecer-se em amazona para fazer frente à agressividade da jagunça de arma na mão. A Coluna Prestes arma o cenário seguinte em que a vivandeira abrirá espaço em nossa história - às cotoveladas, como sempre - entortando as normas vigentes à época. Por mais que fizesse – dirá um Luiz Carlos Prestes risonho, em entrevista a Nelson Werneck Sodré cinquenta anos depois – não conseguiria evitar a presença das mulheres na Coluna.

Integrantes da Coluna Prestes

É sabido que o Rei do Cangaço observou atentamente a passagem dos revoltosos de Prestes pelo sertão de Pernambuco, em dias de fevereiro de 1926. Invicta, depois de tantos combates pelo Brasil afora, só um tolo desprezaria as lições que vinham da flor do Exército Brasileiro, que de outro recheio não se integrava a Coluna rebelde. De maneira que as lições de 1926 devem ter vindo à mente do apaixonado de 1929 como um conforto providencial, não é demais supor.  

Maria abriu a porteira do cangaço para a entrada de um sem-número de mulheres, algumas rivalizando na fama com a “baianinha” de Lampião. Uma Dadá, de Corisco, por exemplo, das primeiras a chegar - menina de treze anos, como tantas outras - uma Cila, de Zé Sereno, ou ainda a Neném, de Salamanta, o poderoso lugar-tenente do bando.  

De 1929 a 1932, nada de jornadear com os maridos: reclusão amena em casa de coiteiros de confiança. Por mais de ano, foi o Raso da Catarina a servir de refúgio - um deserto impenetrável a se perder de vista no nordeste da Bahia - recomendadas a índios quase puros, os pancararés. Raptada por Corisco quase menina, Dadá nos contou ter chegado ao primeiro esconderijo com as bonecas de pano debaixo do braço. 

Passados os meses de desmontagem da repressão policial, por conta das revoluções de 1930 e 1932 terem drenado as forças para o litoral, Lampião dá o aviso de que as mulheres teriam que passar a viver em cima das alpercatas, o chapéu por telheiro. A adaptação não se mostra difícil. Andar a pé era a regra no sertão velho, sem poupar as mulheres. E havia compensações. Arejavam-se os cenários. Novos conhecimentos. Alguns destes valiosos, como a convivência com a elite sertaneja, com as esposas e as filhas de coronéis poderosos, chefes políticos de prestígio no governo, cúmplices sem remorso do cangaço. Sócios deste, em muitos casos.

Benjamin Abrahão e o Rei do Cangaço

Da convivência resultará o aprimoramento da estética presente em trajes e equipamentos, beirando o abuso no final da década. E o aburguesamento de maneiras. A máquina de costura, o gramofone, a lanterna elétrica portátil - e logo, sem ter de pedir licença, a filmadora alemã em 35 mm e a câmera fotográfica, pelas mãos do sírio Benjamin Abrahão - chegam ao centro da caatinga, amenizando os esconderijos mais seguros, levados pelos coiteiros. É o tempo dos bailes perfumados a Fleurs d’Amour, da casa Roger & Gallet, ou Atkinsons, da Royal Briar. Do brandy Macieira, do Old Tom Gin e do uísque White Horse, este último, privativo do chefe Lampião, talento reconhecido na logística de um bando a que não costumava faltar coisa alguma.

Há ocasos que se mostram portentosos. O do cangaço foi um destes. Porque, em 1938, tudo aquilo vinha abaixo pelas balas da volante do tenente João Bezerra, na grota do Angico, próxima à margem sergipana do rio São Francisco.
Continua...


Frederico Pernambucano de Mello
Historiador, Academia Pernambucana de Letras
Palestra lida no Museu do Estado de Pernambuco, Recife, a 14 de dezembro de 2011

Extraído do blog: Cariri Cangaço

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