Por: Rangel Alves
da Costa(*)
Quando o
vigário recebeu o recado quase dá um troço. Tremeu, avermelhou, chegando mesmo
a arroxear. Foi preciso tomar meio copo de pinga para se equilibrar novamente.
Eis que não podia acreditar no que tinha ouvido.
Mas não podia
negar. Pedido vindo do coronel, dono de terra e bicho, e também das armas e dos
que apertavam os gatilhos, era pra ser obedecido. E sem demora. Contudo,
verdade é que era um pedido difícil demais de ser atendido. Isso não podia
deixar de reconhecer.
Ora, oferecer
a extrema-unção a jagunço, pistoleiro de mando, matador de mais de vinte, era
coisa que nunca tinha feito e que desafiava seu juramento religioso. Cometeria
imperdoável pecado. Por outro lado, devia favor demais ao coronel, sem falar
que corria o risco de lhe acontecer o pior acaso deixasse de prestar o último
sacramento ao pistoleiro.
Já tinha
ouvido falar pela própria boca do coronel - e isso como exemplo de menor monta
- que o tal jagunço tinha um carcará como bicho de estimação. E costumava
levá-lo no ombro quando ia fazer tocaia pelas redondezas. Depois de fazer
fumaçar o cano mortal e perceber que o cabra estrebuchava no chão, era só
soltar o bicho que ele ia certeiro na direção dos olhos. Arrancava tudo.
Mas pelo que
ouviu do emissário, o jagunço mais confiado pelo coronel estava no leito de
morte. Não que houvesse recebido uma resposta de fogo, um tiro igual a tantos
que disparou em tocaias e emboscadas. Não. Sabe-se apenas que de uma hora pra
outra o homem começou a ter remorsos e disse que ia morrer. Foi com essa intenção
que se retirou pro seu barraco e ali se jogou numa cama de varas.
Dizia que
queria morrer, que queria morrer, e nem uma rápida visita do seu patrão fez o
homem repensar sua decisão e levantar. Até que o coronel propôs dar logo cabo
na sua vida com um tiro certeiro na testa dado por outro da mesma laia, mas o
cabra rejeitou. Disse que morrer de morte matada seria ligeiro demais e menos
doloroso do que a dor verdadeira que queria sentir.
O patrão
perguntou por que falava daquele jeito, porque desejava morrer aos poucos, com
sofrimento penoso e demorado, e o jagunço simplesmente olhou na direção da arma
e fez derramar uma lágrima pelo canto do olho. Perguntado se estava com remorso
por já ter matado tanta gente, ele nada respondeu. Soltou outra lágrima. Mas
antes que o coronel saísse pediu que lhe arranjasse um vigário para uma última
confissão.
Quando o velho
sacerdote despontou na malhada da tapera já passava de uma semana do recado
recebido. A desculpa enviada ao poderoso amigo era de que estava em jejum
fechado. Mas não pôde adiar mais e subiu num lombo de burro. Assim que empurrou
a porta para entrar tomou-se de indescritível espanto. O jagunço estava jogado
por cima de uma esteira mais parecendo um fantasma.
No mesmo
instante o vigário viu que não era nem mais caso de confissão, mas de
extrema-unção mesmo, pois o cabra parecia nem estar mais respirando. De uma magreza
de bicho na seca, barba de muito tempo sem fazer, um verdadeiro frangalho
humano. Lentamente foi abrindo os olhos e ajeitando a cabeça assim que ouviu o
vigário anunciando que havia chegado. Sente, o sacerdote ouviu espantado.
Depois o
jagunço silenciou novamente e assim ficou por uns cinco minutos. Sentado num
banquinho adiante, o da igreja já preparava os óleos para o sacramento quando
ouviu, numa voz quase inaudível: Estou morrendo, estou morrendo... Então o
vigário apressou-se em derramar os preparos sobre sua testa, a fazer sinais, a
pronunciar as palavras apropriadas.
Dez minutos
depois, quando a respiração parecia já ter se esvaído e os olhos estavam sendo
fechados de vez, o lábio lanhoso se moveu e ele disse: Ainda tenho tempo de
confessar uma coisa padre. Chegue mais perto que quero dizer. Mas primeiro me
dê aquela arma que tá ali.
Em obediência
ao último pedido do moribundo, o vigário não viu nenhum pecado em atendê-lo.
Trouxe a arma e colocou-a perto da mão do jagunço. E depois ouviu de sua boca:
É que não posso morrer sem cumprir um pedido que me foi feito há muito tempo
pelo coronel. Uma vez ele mandou lhe matar. E tenho que cumprir agora...
E um estampido
ecoou pelas brenhas sertanejas. Mais uma bala certeira, mais uma morte. E em
seguida o vigário fugiu pelo mato com o seu jumento. Havia sido mais rápido que
o jagunço. Puxou a arma debaixo da batina e deu um tiro na testa do homem.
Mas não correu
da tapera sem antes derramar todos os frascos que tinha por cima do morto. Era
pra livrá-lo dos pecados no outro mundo.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
http://jmpminhasimpleshistorias.blogspot.com
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