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domingo, 25 de agosto de 2013

A EXTREMA-UNÇÃO DO JAGUNÇO

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

Quando o vigário recebeu o recado quase dá um troço. Tremeu, avermelhou, chegando mesmo a arroxear. Foi preciso tomar meio copo de pinga para se equilibrar novamente. Eis que não podia acreditar no que tinha ouvido.

Mas não podia negar. Pedido vindo do coronel, dono de terra e bicho, e também das armas e dos que apertavam os gatilhos, era pra ser obedecido. E sem demora. Contudo, verdade é que era um pedido difícil demais de ser atendido. Isso não podia deixar de reconhecer.

Ora, oferecer a extrema-unção a jagunço, pistoleiro de mando, matador de mais de vinte, era coisa que nunca tinha feito e que desafiava seu juramento religioso. Cometeria imperdoável pecado. Por outro lado, devia favor demais ao coronel, sem falar que corria o risco de lhe acontecer o pior acaso deixasse de prestar o último sacramento ao pistoleiro.

Já tinha ouvido falar pela própria boca do coronel - e isso como exemplo de menor monta - que o tal jagunço tinha um carcará como bicho de estimação. E costumava levá-lo no ombro quando ia fazer tocaia pelas redondezas. Depois de fazer fumaçar o cano mortal e perceber que o cabra estrebuchava no chão, era só soltar o bicho que ele ia certeiro na direção dos olhos. Arrancava tudo.

Mas pelo que ouviu do emissário, o jagunço mais confiado pelo coronel estava no leito de morte. Não que houvesse recebido uma resposta de fogo, um tiro igual a tantos que disparou em tocaias e emboscadas. Não. Sabe-se apenas que de uma hora pra outra o homem começou a ter remorsos e disse que ia morrer. Foi com essa intenção que se retirou pro seu barraco e ali se jogou numa cama de varas.


Dizia que queria morrer, que queria morrer, e nem uma rápida visita do seu patrão fez o homem repensar sua decisão e levantar. Até que o coronel propôs dar logo cabo na sua vida com um tiro certeiro na testa dado por outro da mesma laia, mas o cabra rejeitou. Disse que morrer de morte matada seria ligeiro demais e menos doloroso do que a dor verdadeira que queria sentir.

O patrão perguntou por que falava daquele jeito, porque desejava morrer aos poucos, com sofrimento penoso e demorado, e o jagunço simplesmente olhou na direção da arma e fez derramar uma lágrima pelo canto do olho. Perguntado se estava com remorso por já ter matado tanta gente, ele nada respondeu. Soltou outra lágrima. Mas antes que o coronel saísse pediu que lhe arranjasse um vigário para uma última confissão.

Quando o velho sacerdote despontou na malhada da tapera já passava de uma semana do recado recebido. A desculpa enviada ao poderoso amigo era de que estava em jejum fechado. Mas não pôde adiar mais e subiu num lombo de burro. Assim que empurrou a porta para entrar tomou-se de indescritível espanto. O jagunço estava jogado por cima de uma esteira mais parecendo um fantasma.

No mesmo instante o vigário viu que não era nem mais caso de confissão, mas de extrema-unção mesmo, pois o cabra parecia nem estar mais respirando. De uma magreza de bicho na seca, barba de muito tempo sem fazer, um verdadeiro frangalho humano. Lentamente foi abrindo os olhos e ajeitando a cabeça assim que ouviu o vigário anunciando que havia chegado. Sente, o sacerdote ouviu espantado.

Depois o jagunço silenciou novamente e assim ficou por uns cinco minutos. Sentado num banquinho adiante, o da igreja já preparava os óleos para o sacramento quando ouviu, numa voz quase inaudível: Estou morrendo, estou morrendo... Então o vigário apressou-se em derramar os preparos sobre sua testa, a fazer sinais, a pronunciar as palavras apropriadas.

Dez minutos depois, quando a respiração parecia já ter se esvaído e os olhos estavam sendo fechados de vez, o lábio lanhoso se moveu e ele disse: Ainda tenho tempo de confessar uma coisa padre. Chegue mais perto que quero dizer. Mas primeiro me dê aquela arma que tá ali.

Em obediência ao último pedido do moribundo, o vigário não viu nenhum pecado em atendê-lo. Trouxe a arma e colocou-a perto da mão do jagunço. E depois ouviu de sua boca: É que não posso morrer sem cumprir um pedido que me foi feito há muito tempo pelo coronel. Uma vez ele mandou lhe matar. E tenho que cumprir agora...

E um estampido ecoou pelas brenhas sertanejas. Mais uma bala certeira, mais uma morte. E em seguida o vigário fugiu pelo mato com o seu jumento. Havia sido mais rápido que o jagunço. Puxou a arma debaixo da batina e deu um tiro na testa do homem.

Mas não correu da tapera sem antes derramar todos os frascos que tinha por cima do morto. Era pra livrá-lo dos pecados no outro mundo.

(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.

Poeta e cronista
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