Por Rangel Alves
da Costa*
Os olhos
semicerrados, a face já sem vida, ofegante, na pele a névoa da morte. Não havia
mais qualquer força. Arfava somente em resposta ao último sopro de vida. E
então, num gesto de expressão misteriosa, devagarzinho foi movendo um braço.
Moveu o braço
e estendeu a mão na direção de quem estivesse ali para recebê-la. Talvez
soubesse, pela voz ou pela simples presença, quem estava ali ao lado, rente a
cama, quase se debruçando sobre o leito.
A mão
estendida logo foi recebida e amparada pela outra mão. A mão fria que se
entrelaçara logo deu sinais de alguma réstia de existência. Ao ser afagada e
acariciada, correspondeu com um leve aperto. E inexplicavelmente foi apertando
ainda mais a outra mão.
Era a forma de
dizer que dizer que estava ali, que ainda estava presente. Mas também um gesto
que expressava as palavras que não mais sairiam da boca. Um esforçado aperto
que tencionava não só falar, mas talvez também abraçar, dizer que apenas o
destino da vida naquele momento.
Nos olhos sem
vida, as pálpebras movendo-se lentamente. Talvez quisesse abri-los, olhar pela
última vez aquela paisagem ao redor. E que triste cenário. Sem a força da luz
não conseguiria avistar o terrível sofrimento, a dor impiedosa, a indescritível
aflição na face de cada um. E todos ali que eram tanto seus.
Um pingo de
lágrima irrompeu num canto de olho. A boca estremecia forçando uma palavra, mas
nada conseguia falar. Apenas a mão procurava apertar cada vez mais a outra mão.
Seria a mão da filha, do filho, do esposo, de um neto? Não importa, eis que
todos ali com um só nome: aflição.
E a lágrima
jorrou um pouquinho mais. Houve um tempo de paz, saúde e felicidade familiar. A
perfeição da vida, ainda que os desencontros e angústias também fossem
cotidianos naquele lar. Mas tudo dentro da normalidade da existência, cujo
prazer maior era mesmo a certeza da família.
Houve um tempo
em que aquela mesma mão que agora dava o último aperto preparava o bolo, o
doce, as iguarias tão apreciadas pelos seus. Mão abrindo a janela para o sol da
manhã, levantando a roupa no varal, passando o espanador sobre os retratos na
estante, chamando para o abraço.
Um tempo
diferente, muito diferente daquele instante de terrível sofrimento. A casa
sempre arrumada esperando a chegada de um e de outro, a cadeira de balanço
sendo levada até o lado da janela para o tricô nos momentos de folga, o pequeno
jardim sendo cuidado como criança nova.
Uma presença
de fé incontida, se ajoelhando diante do oratório, fazendo preces, conversando
com Deus, santos e anjos, mirando a luz da vela como se quisesse encontrar a
face maior. Deus estava mesmo no seu coração, e assim sempre permaneceu, e
muito mais presente assim que a saúde começou a fragilizar.
Não era
fraqueza de idade, não era doença pela fragilidade do corpo. Primeiro remédio
caseiro, depois o médico e os remédios de farmácia, e nada de melhorar. A
vivacidade deu lugar à tristeza, a feição tão alegre se transformou num mármore
melancólico. Parecia dez anos mais velha, parecia não ter mais tempo para
viver.
Implorou para
que não fosse entregue a um leito frio de hospital. Desejava partir entre os
seus, no mesmo lar de uma vida inteira. Passava o maior tempo amargando o
sofrimento em cima da cama, mas a família insistia em colocá-la numa cadeira de
rodas e deixar que o sol da manhã aquecesse seu corpo. Ela gostava, mas ficava
ainda mais triste.
Mas desde a
manhã anterior que pediu para não mais sair do seu quarto. A família logo
pressentiu o pior. E logo todos acorreram à sua presença. E naquela manhã quase
nem respirava mais. E ao anoitecer só teve forças para estender o braço,
segurar a mão e apertar.
Apertou ainda
mais numa força desconhecida naquela situação. Depois repentinamente abriu os
olhos e soltou a mão. A mão estendida foi juntada à outra e levada ao peito. Os
olhos foram fechados. Mas a lágrima permanecia ali.
E ali
permaneceu, eis que a morte também chora.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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