Por José Lins do
Rego
Conta-se por
toda parte a “mulher rendeira” da melodia sertaneja. A doce e triste música das
caatingas chegou até aos ouvidos dos mestres cineastas de Cannes. E muito
gostaram da toada maravilhosa. É que esta música envolve de poesia e que há de
brutal na vida dos bandoleiros. O cangaceiro passa a ser aquilo que a
imaginação do povo deseja que ele seja: uma força de rebelião, qualquer coisa
de romântico como os cossacos de Don ou os terríveis mafiosos da Sicília. Entra
a funcionar o poder imaginativo do homem para fundar-se uma galeria de heróis.
Os poetas matutos, os cantadores anônimos descobrem no homem que não tem medo
da morte, que mata sem dó nem piedade, uma força fora da natureza. Jesuíno
Brilhante tinha poderes de encantar-se para fugir das tropas que o perseguiam.
Contava-se que o cangaceiro cearense (o escritor equivocou-se aqui em afirmar que Jesuíno Brilhante era cearence, Jesuíno Brilhante era Potyguar) vinha por uma estrada e de repente via-se
cercado pela polícia. Aí acontecia o milagre. A tropa passava por ele, que era
no momento um pé de mato ou um jumento pastando. Para pegar Lampião – dizia um cantador
– nem um frade de boa vida, nem uma mulher enxerida, nem as prosas dos
doutores, nem vinte governadores, nem o bamba da nação; para pegar Lampião, só
mesmo Nosso Senhor. A força desembestada, o ímpeto feroz para a luta absorvem
as admirações ingênuas. Outro cantador chegou a dizer: “Para haver paz no
sertão e as moças poder prosar e os rapazes poder casar e o povo poder se rir e
os meninos se divertir, é preciso uma eleição para fazer Lampião governador do
Brasil”. Dominando desta maneira pelo terror, pela arrogância contra os poderes
constituídos, o cangaceiro conseguia vencer as resistências morais dos
sertanejos. Já não há o governo como único senhor de tudo; há também um rei do
cangaço que casa e descasa, capaz de impor-se aos agentes do fisco, aos padres,
aos juízes. Então se cria o romanceiro, aparecem os ABC, espécie de cação de
Rolando das Caatingas, vendidos nas feiras, a tostão. O povo dominado pelas
coragens de fúria dos bandoleiros, refugia-se na arte para acreditar em alguma
coisa que supere a crueldade das correrias e crimes. Todos nós, meninos
nordestinos, sabíamos de cor as histórias que vinham nos folhetos de cordel.
Todos tínhamos na memória a luta de Antônio Silvino com a onça, as brigas de
Brilhante e Liberato. Mas o outro lado dos cangaceiros, a vida bestial de
homens tremendos, é o que nos assombra. O cangaceiro não é só a legenda de
lutas; é muito mais a sua vida seca como pedra, é o seu vírus de cobra pelo
chão de pedra e espinhos. Neste sentido temos que toma-lo como natureza humana
que excede a toda a normalidade. Para ele não há limites à resistência contra
os elementos. Vence a fome e a sede como se fossem feitos de ferro.
Assombra-nos como uma espécie à parte de gente. Retraem-se, encolhem-se como
serpentes e quando saem de seus covis têm mais força. Dobram-se lhes os fuzis
assassinos. E quando, saciados de sangue, de sexo, de tudo, param para
descanso. Basta que um gemido de viola quebre o silêncio para que caiam por
cima dos corações de pedra aqueles orvalhos da madrugada das cantorias. Às
vezes de um rochedo brota o vermelho ou o azul de uma flor de trepadeira. De
manhã, poderão sair para matar um pai honrado, ou desgraçar uma donzela.
“O Globo” –
04/09/53
Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa
Sobrinho
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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