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quinta-feira, 17 de março de 2016

O ROLÓ DE ZEJOÃO

Por Rangel Alves da Costa*

Antes de tudo, urge repassar uma informação para evitar que ponta de pedra e espinho pontudo fira a sola do pé e atrapalhe a caminhada pelas estradas adiante. Informação importante, pois se conta nos dedos quem sabe o que seja um roló. Na cidade grande, talvez um bicho de sete cabeças. Noutros lugarejos, talvez uma estripulia qualquer desde muito desaparecida. Nem mesmo no sertão o roló é conhecido por todos. Somente pelos mais velhos, aqueles que faziam uso e necessidade nos tantos afazeres matutos.

Roló até que parece ser um nome esquisito, coisa estrambólica mesmo. Contudo, nada mais que a própria feição sertaneja na sua originalidade maior, pois tão nordestino e caboclo como o chapéu de couro, a sela, o estribo, a cilha, o chicote, a cabaça, a cuia, o alforje, o aió e o embornal. Certamente que estava nos pés dos primeiros desbravadores das matarias, dos primitivos curraleiros, dos antigos caçadores, de toda uma gente primeira que tinha de suportar as durezas das veredas cortantes e dos caminhos tomados de pedras e tocos de paus afiados. E não saiu mais do pé do sertanejo.

E não saiu porque nem todo sapato ou chinelo consegue suportar as asperezas da terra e os tantos percalços da luta de todo dia, já desde a madrugada escura. Feito de couro cru, sem alisamento nem enfeitação, o roló nada mais é que o sapato do autêntico sertanejo nas suas lides debaixo do sol e da lua. Quando novo, assim que sai das mãos do coureiro, provoca certa estranheza pelo seu cheiro forte de couro curtido, mas nada que a labuta não transforme em aroma. E quem não haverá de sentir perfume no barrufo da chuva caindo sobre a terra, no cheiro da palma sendo pinicada, no leite da vaca caindo já no prato de estanho já com tiquinho de farinha?

Bem assim com o roló, que se torna tão amigo do homem quanto o cachorro perdigueiro e o velho alazão de vida e vaqueirama. Possui a cor da terra sertaneja quando de recente feitura, mas com o passar do tempo, com os usos e atropelos, então vai se tornando na mais pura feição cabocla: cor esturricada de sol, no avermelhamento do barro queimado e do massapê, cheirando a suor e a tronco de baraúna e umbuzeiro. Quanto mais desgastado fica mais ganha firmeza e cor. Por isso tão inseparável do homem e de sua história desde que teve de se proteger para não se lanhar.


Assim era o roló de Zejoão, celebrado por toda a região pelos feitos e pela fama de ter feito muito mais. Figura lendária sertões adentro, deixou no rastro de existência tanto a maestria nos ofícios que lhe eram confiados como afazeres outros até hoje só acreditados por alguns. Os feitos na vaqueirama, na pega de bicho brabo, na toada e no aboio, na caçada, na gestação da sobrevivência, estes não podiam ser contestados, pois confirmados de geração a geração, mas outros sempre se entremeavam de dúvidas. E assim porque também causos e mais causos dizendo de seu ofício de coiteiro, de cabra de mando de coronel e até lobisomem nas escuridões da quaresma.

Além da fama, de sua história ainda permanece o roló pendurado num pé de parede, lá pelas bandas da casa velha. Relíquia que ninguém ousa tirar dali, marcada para desaparecer somente juntos aos escombros do barro e cipó, na verdade não passa de uma lembrança carcomida pela idade, já quase sem jeito daquilo que um dia foi um sapato de couro cru. Certa feita, um parente tentou jogar fora o roló e então um vizinho logo acorreu para declarar guerra a todos e ao mundo se aquela desfeita fosse levada adiante. E esbravejou: Mando chumbo em quem tirar esse roló daí, e mais ainda se jogar fora.

Até que o vizinho não deixava de ter razão em deixar lá no cantinho aquela relíquia, principalmente pelas histórias guardadas naquele solado. E eram muitas, coisas de acreditar e outras de não dar a menor confiança, mas que mesmo assim foram sendo repassadas como verdadeiras através dos anos. A verdade é que muita gente jurava ter sido Zejoão quem tinha dado um nó no rio numa época de seca grande e fome ainda maior. Sentindo o povo prestes a morrer, ele se dirigiu até a beirada do São Francisco, lá pelas bandas de Curralinho, repetiu por sete vezes uma reza forte e logo as águas pararam. Com o nó dado, os peixes ficaram aprisionados à espera dos famintos da região.

Noutra feita, Zejoão cismou de ajudar seu amigo Lampião numa empreitada das mais difíceis. E fez tudo sozinho. Foi assim. Tendo conhecimento de que a polícia volante se encaminhava para o coito cangaceiro, ele logo correu e foi avisar ao Capitão. Este quis antecipar o ataque, porém foi impedido pelo amigo, que disse que daquela vez não se preocupasse que tomaria conta de tudo sozinho. E tomou mesmo. Correu por dentro do mato até encontrar a volante. Fingindo medo, foi logo dizendo: Avistei Lampião logo ali e tava junto com mais de duzentos cangaceiros.

Então a volante recuou para buscar reforço, pois seria morte certa aquele enfrentamento. O bando, em número menor que o da volante, já se distanciava àquela hora, e salvo pelas proezas de Zejoão.

Poeta e cronista
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