Por Rangel Alves
da Costa*
Toda vez que
sonha chega há um barco dentro do sonho. Toda vez que sente pesadelo o barco
naufraga e se vê à deriva.
Não precisa
fazer exercício de interpretação para compreender o significado de um barco dentro
de um sonho. Até porque o barco é colocado pelo sonhador e não pelo sonho.
Quando
adormece e uma névoa de sonho vai se aproximando, logo procura saber se tem um
barco ou não. Acaso não tenha, manda a névoa de sonho em direção ao primeiro
cais.
E no cais da
memória, onde sempre há um barco de partida levantando vela, afasta da margem a
embarcação e aponta a distância verde e azulada na linha do horizonte e além.
Não somente no
sonho como nos momentos que o antecedem. Ao deitar, logo começa a mirar para o
alto. E lá em cima sempre um mar no telhado, sempre uma barco no cais.
De olhos
abertos, mas envolto em viagem, fica imaginando o barco partindo rumo ao
desconhecido. É a viagem no pensamento, o desejo de experimentar novas
realidades.
Com os olhos
ainda abertos, nada mais existe ao redor. O barco segue no voo de gaivotas,
vencendo barreiras, se distanciando cada vez mais. E muito deverá encontrar.
Fugindo de seu
instante noturno, simplesmente sonha de olhos abertos. Não quer estrada nem
asas, não quer montanha ou jardim, mas um barco para singrar sem destino.
Uma das coisas
boas da vida: sonhar, ainda que de olhos abertos. E melhor ainda: fugir da
realidade num barco cujo cais de partida está logo adiante, no telhado do
quarto.
É neste barco
que se desprende do cansaço, dos problemas, das fadigas cotidianas. Precisa
viajar para viver, precisa da ilusão para continuar pulsando, precisa sempre
sonhar.
Precisa ir
além de tudo, da conta, da fatura, do calendário, do relógio, da receita, da
bula cotidiana. Depois de um dia inteiro na dureza da luta, então surge o cais
com seu barco.
O ser humano
necessita dessas ilusões para suportar as agruras reais. Ninguém merece
simplesmente deitar e acordar com os mesmos problemas. Há um instante de querer
viajar.
É no instante
da viagem que sai de si. Caminha até o cais pelo olhar, encontra o barco no
olhar, segue adiante no mar que encontra no olhar. E vai até onde desejar
chegar.
E assim, nessa
viagem que conforta alma e enternece o espírito, numa leveza de onda boa, de
calmaria e canto, como boa música que faz voar, então vai aos poucos
adormecendo.
E no sono o
mar continua, o barco continua, a viagem continua. E ao sonhar já encontra na
mente seu leve destino: remansando, balançando nas águas, sentindo o mar.
Não deseja
encontrar uma ilha e seus nativos, não deseja encontrar um porto e seus
marinheiros, não deseja encontrar sereias chamando ou penhascos. Apenas seguir
no sonho.
Também não
deseja encontrar tempestades, vendavais, turbilhões, nada que ameace sua calma
viagem, sua calmaria sem pressa. É que o sonho precisa ser brando, terno,
singelo.
As saudades
não vão neste barco. Os amores desfeitos e os adeuses chorados também não
possuem lugar neste barco. Não quer sofrer numa viagem assim, apenas seguir
contente.
A noite
avança, os minutos e as horas vão passando, irrompe a madrugada, o galo canta,
mas está noutra realidade. Numa viagem boa não se deseja logo retornar.
Mas o cheiro
da maresia, a força do vento, o leve vai e vem da embarcação e o tempo nas
águas, tudo vai cansando o viajante, o sonhador. Então sente que precisa
descansar.
Deita no barco
e adormece inteiro. Deixa que o barco siga agora sozinho o seu destino.
Certamente singrará mansamente até que acorde e prepare o percurso de volta.
Dorme um sono
profundo. Nem gaivotas nem barulho das ondas conseguem despertar. Até que uma
luz brilha no seu olhar: um farol de cais, no cais de partida e de chegada.
Mas não é um
farol, e sim o despertador. Então desce do barco, caminha pela areia e retoma o
seu mundo, o seu dia, sua realidade. E vai abrir a janela para o sol entrar.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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