Foliões no
Bloco Carnavalesco Os Cão, na praia da Redinha, em Natal. Na foto, os foliões
saem de dentro do mangue, onde se pintaram com a lama característica do local –
FOTO ED FERREIRA/AE – Fonte – http://gilvandejacana.blogspot.com.br/2014/03/bloco-os-cao-completa-50-anos-pelas.html
Que Estranho
Cortejo Percorria as Ruas da Cidade do Natal, Com Homens Pintados de Negro, Imitando
Demônios e Realizando uma Comemoração? Teria algo Haver Com Um Moderno Bloco
Carnavalesco da Redinha?
Autor –
Rostand Medeiros
Tradição é
tradição e, quer você goste, ou não, uma das manifestações mais tradicionais,
autênticas e originais do moderno carnaval de Natal é o irreverente bloco “Os
Cão”.
Em 2016 “Os
Cão” (no singular mesmo) comemorou 52 anos de tradição e muita folia na região
da Praia da Redinha, na Zona Norte da capital potiguar. Segundo Francisco
Ribamar de Brito, Seu Dodô, um dos criadores do bloco, tudo começou quando ele,
Zé Lambreta, Chico Baé e mais dois amigos brincaram a festa de Momo de 1964 em
um bloco chamado “Brasinhas”, que só saia nas ruas até a segunda-feira de
carnaval. Eles resolveram esticar a festa até a terça, mas não tinham nenhuma
fantasia para usar naquele último dia de folia!
Enquanto
pensavam em como resolveriam esta questão, os rapazes resolveram pegar camarões
para servir de tira gosto em um local conhecido como Porto D’água, na área de
mangue do estuário do Rio Potengi. Quando lá estavam Chico Baé melou seus
cabelos de lama, querendo estirar o cabelo crespo. Todos acharam idéia
engraçada e igualmente melaram o corpo de lama. Completaram a fantasia com
pedaços de galhos e saíram se divertindo pelo mercado e ruas da Redinha.
Logo quem
passava, ou se recusassem a dar cachaça ao grupo, eles assustavam e as pessoas
diziam – “Lá vem os cão!”. Nos anos seguintes eles repetiram a brincadeira e o
grupo foi crescendo.
É patente que
o “Grand Monde” natalense jamais teve maiores simpatias por este bloco
carnavalesco da Redinha. No máximo eles e sua lambuzada festa são vistos como
“exóticos” e aturados, pois os políticos da cidade dos Reis Magos não podem
ficar indiferentes a uma festa que arrasta mais de 2.000 pessoas para as ruas.
Mesmo com pouco apoio os “Os Cão” vão resistindo com sua festa original. Sempre
brincando pela Redinha, acompanhados por uma legião de demônios usando como
fantasia basicamente a lama do mangue do Potengi, muitos portando tridentes,
chifres de animais e galhos de árvores. Sempre pedindo cachaça nas
terças-feiras de Momo e com muita irreverência.
O interessante
é que descobri uma nota de jornal onde temos a informação que há quase um
século e meio, de uma maneira diferenciada e bem distinta, já circulou pelas
velhas ruas de Natal algumas pessoas que se fantasiaram de demônios enegrecidos
em meio a um festejo religioso, mas que estranhamente parece possuir algumas
similaridades com o moderno bloco “Os Cão”.
O
Correspondente
Em setembro de
1862 o Brasil ainda era um imenso Império com vastas extensões de terras quase
virgem, com forte economia agrícola, tocada pela mão de obra escrava, poucas
modernidades e grande número de analfabetos. Apesar de todas as deficiências já
existiam muitos jornais nas capitais das Províncias, que hoje chamamos de
Estados.
Antônio Carlos
Mariz e Barros, comandante da corveta Belmonte em 1862, que visitou Natal e foi
morto na Guerra do Paraguai.
Este era um
dos principais meios de circulação de informações, onde os melhores jornais
contratavam correspondentes nas Províncias vizinhas para reproduzirem notícias
regionais. Este era o caso do “Jornal de Recife”, um dos principais jornais de
Pernambuco na época, que em Natal tinha como correspondente Joaquim Ignácio
Pereira Junior, um súdito português, que também era o Vice-Cônsul honorário de
seu país no Rio Grande do Norte. Este informava de Natal, principalmente os
eventos sociais e políticos. Notícias do interesse de uma pequena parcela de
potiguares, membros da elite local, que tinham negócios, ou estudavam na
capital pernambucana.
Há quase 154
anos, na edição do “Jornal de Recife” de quinta-feira, dia 17 de setembro de
1862, Joaquim Ignácio, como era de costume, iniciou sua coluna informando que
na manhã do dia 24 de agosto, Pedro Leão Veloso, então Presidente da Província
do Rio Grande do Norte, recebeu no Palácio do Governo o jovem primeiro tenente
Antônio Carlos Mariz e Barros, comandante da corveta Belmonte, da Marinha do
Brasil, que se encontrava no porto para concertar uma pequena avaria na hélice.
O encontro protocolar ocorreu no sobrado localizado no bairro da Ribeira, na
então Rua do Comércio, atual Rua Chile, a mais imponente e alta edificação (com
apenas dois andares) existente em Natal na época[1].
Nota da edição
do “Jornal de Recife” de quinta-feira, dia 17 de setembro de 1862.
Então na
sequência do seu informativo, até com certa surpresa, o correspondente Joaquim
Ignácio apresentou uma outra notícia que não tinha nenhum caráter oficial.
O Estranho
Cortejo
Cerca de vinte
“marmanjões” haviam desfilado pelas ruas de terra da pequena Natal, trajando
muito pouca roupa, pintados completamente de preto (seria de lama do mangue?) e
figurando demônios. Durante o desfile estes homens eram “açoitados” por um
figurante vestido de São Miguel, o santo guerreiro, que protegia uma pobre alma
vestida de branco da ação dos pretensos membros da legião do mal.
Mesmo estando
com a presença de São Miguel, aquele estranho cortejo fazia parte de uma
comemoração pelo dia de São Bartolomeu, um dos doze primeiros apóstolos de
Cristo.
Consta que São
Bartolomeu nasceu em Caná, a quatorze quilômetros de Nazaré, na Galiléia, tendo
sido apresentado a Jesus pelo apóstolo Filipe, seu maior amigo. Assim como o
apóstolo Tomé, Bartolomeu foi um grande viajante e teria passado por locais no
Irã, Síria, Índia, Armênia e por algum tempo na Grécia, com Filipe,
especialmente na região da Frigia. Na Índia o apóstolo Bartolomeu pregou a
verdade do Senhor Jesus, segundo o Evangelho de São Mateus, onde conseguiu
converter muitas pessoas naquela região. Já na Armênia ele conseguiu converter
o rei Polímio, sua esposa e muitas outras pessoas em mais de doze cidades.
Essas conversões, no entanto, provocaram uma enorme inveja dos sacerdotes
locais, que, por meio do irmão do rei Polímio, conseguiram a ordem de tirar a
sua pele e depois decapitá-lo[2].
Imagem de São
Bartolomeu.
Apesar daquele
cortejo em Natal glorifica a figura de um santo católico, percebemos na pequena
e, para tristeza deste pesquisador, econômica nota, que aquele ato público
causava estranheza em pessoas da comunidade. Tanto que o correspondente do
“Jornal de Recife” apontou que ele estava na função de “transmitir factos, que
demonstrem o progresso” e, após informar sobre este estranho evento
religioso-teatral pelas ruas da urbe, completava afirmando em tom jocoso se
aquilo “É, ou não, civilização!”.
Personagens
Estranhos
Segundo Luís
da Câmara Cascudo, em seu livro “História da Cidade do Natal” (Edição do
IHG-RN, 1999, páginas 122 a 124), ninguém soube lhe dizer como começou aquele
estranho cortejo, mas soube que ele não era autorizado pela igreja católica,
tinha um aspecto um tanto macabro e havia sido iniciado por pessoas do povo.
O evento
ocorria sempre pela tardinha do dia 24 de agosto, na medida que as ruas
estreitas da cidade começavam a ficar no escuro[3].
Entre hurros,
gritos, risadas histéricas, pulos, guinchos e outras diabruras, os jovens
surgiam pintados de preto, com chifres na cabeça, estirando suas línguas
cobertas de tecidos vermelhos feitos de baeta e trazendo pequenas asas. Fico
imaginando o choque dos natalenses daqueles tempos coloniais.
Mas o Mestre
Cascudo aponta algumas diferenças entre o que ele registrou através da memória
dos mais velhos que assistiram estes desfiles e o relato de Joaquim Ignácio.
Entre estas estava a que existia uma pessoa fantasiada como o próprio demônio,
comandando a sua legião de diabos negros e um homem vestido com um larguíssimo
hábito de monge, com cordões de São Francisco na cintura, grande capuz que
escondia seu rosto e afugentava os “filhos do cão” com chicotadas cênicas.
Outra
diferença apontada e que fazia o medo se estampar tanto na cara dos pequenos,
quanto dos marmanjões, era a figura da morte.
O ator que
interpretava a figura que lembra o fim de todos os seres viventes
apresentava-se andando em pernas de pau, com uma roupa alva, que arrastava pelo
chão. Mas os textos nada trazem sobre alguma foice estilizada levada pelo
pretenso ator.
Uma outra
representação da morte em um jornal carioca no fim do século XIX.
Independentemente
disso ele parecia realizar sua função com esmero, pois a figura sinistra era
temida e batiam-lhe portas e janelas na cara. Como resposta a afronta, a morte
então riscava no ar uma cruz latina e bradava a plenos pulmões “Vá se
preparando! Vá se preparando! Eu volto em breve para vim buscá-lo…” Daí a pouco
o cortejo parava em frente a alguma outra casa e, se recebesse porta na cara,
vinha nova praga rogada. Pelos escritos de Cascudo, essa era a parte mais
“terrível” do cortejo[4].
Certamente
aquele cortejo fazia muita criança natalense daquele tempo se mijar de medo e
seria desaprovada pelas modernas técnicas e normas da psicologia infantil.
Não nós
esqueçamos que esta era uma época de medicina limitadíssima, onde morrer por
doenças variadas era algo comum e uma sentença dessas proferida na porta de
casa, mesmo por brincadeira, certamente deixaria muitos se benzendo, se
ajoelhando diante de seus oratórios e declamando benditos.[5]
Estranhamente
o fim do cortejo acontecia diante da Igreja Matriz, na antiga Rua Grande, atual
Praça André de Albuquerque, com todos os integrantes rezando uma solene ave
maria.
Antiga Rua
Palha em festa –
Para Cascudo o
fim desta estranha manifestação popular ocorreu com um fato pitoresco e
bastante hilário…
Não sabemos a
data exata, mas entre os anos de 1836 e 1838, o capitão Antônio José de Moura
exercia o cargo de primeiro comandante do recém criado Corpo Policial, atual
Polícia Militar, e tinha a sua residência na Rua da Palha (atual Rua Vigário
Bartolomeu, no Centro). Durante um destes anos, quando o cortejo de 24 de
agosto passou em frente à casa do policial, dois cachorros de sua propriedade
ficaram extremamente agoniados com a gritaria, pularam a janela da residência e
partiram para cima dos integrantes do desfile. Foi literalmente um Deus nos
acuda, com satanás e sua legião de demônios fugindo para todos os lados, gente
caindo no chão, o capitão Moura no meio da rua apenas vestido de chambre (um
roupão caseiro comprido) e com muito trabalho para segurar os seus endiabrados
mastins. Paradoxalmente quem mais sofreu foi à morte, pois o ator despencou das
pernas de pau e foi mordido “na parte mais carnuda do corpo”.
Ainda segundo
Câmara Cascudo o cortejo caiu em desgraça diante do escárnio pelo ocorrido, perdeu
força e sumiu.
Eterna
Estranheza
Mas diante da
nota publicada pelo correspondente do “Jornal de Recife”, vinte anos depois do
ataque dos cães do capitão Moura na Rua da Palha, mesmo sendo vistos com
estranheza, como algo diferente e burlesco, o desfile do dia de São Bartolomeu
em Natal resistiu e continuou de alguma forma.
Nada sabemos
quem eram seus participantes, apenas que eram pessoas “conhecidas de todos”.
Mas acredito que provavelmente não pertenciam as classes privilegiadas da
provinciana cidadela e não existe nada sobre a presença feminina no desfile.
O desfile foi
esquecido e São Bartolomeu em Natal é lembrado atualmente na
comunidade de Vila Paraíso, na Zona Norte, por uma capela que inclusive
desabou devido a chuvas em julho de 2013. Não sei se esta pouca lembrança nos
dias atuais seria devido ao desfile do dia de São Bartolomeu no século XIX,
mais que festejar o santo, servir para que uma parte da população, de maneira
alegre e irreverente, afrontasse indiretamente a elite e as instituições da
cidade?
Em tempo –
Nada encontrei que ligasse o desfile do dia de São Bartolomeu, com seus
demônios pintados de negro, ao moderno bloco carnavalesco “Os Cão”.
A não ser uma
estranheza da elite de outrora e atual, com tudo que é espontaneamente criado
pelo povo de Natal, que parece nunca acabar e onde se percebe muito
preconceito.
NOTAS
[1] Quatro anos depois este mesmo tenente
Mariz e Barros se tornaria um dos grandes heróis da Marinha do Brasil, quando
no comando do encouraçado Tamandaré em plena Guerra do Paraguai, morreu no
combate travado contra o forte Itapiru.
[2] O dia de São Bartolomeu é bastante
festejado em Portugal, possuindo extensa tradição. Em vários locais deste país
este dia é dedicado àquele que é conhecido como padroeiro das crianças, fazendo
reviver tradições que se misturam com a fé e devoção. Na foz do rio Douro, no
Porto, norte de Portugal, ainda hoje se acredita que o banho de mar tomado no
dia 24 de Agosto serve para a cura e prevenção contra o mal, sendo todo
malefício exorcizado pela ação da água tornada miraculosa nesse dia por parte
de São Bartolomeu. Nesta região além do banho ritual existe a tradição do
cortejo de São Bartolomeu, também conhecido como Cortejo do Traje de Papel.
Trata-se de um desfile, com centenas de figurantes com trajes feitos de papel
crepe de diversas cores, onde ao final os participantes se juntam para um banho
coletivo.
[3] Pesquisando nos jornais antigos eu
descobri que o evento de 1862 ocorreu no início da lua nova do mês de agosto,
quando provavelmente as velhas ruas natalenses, que não tinha mesmo muita
iluminação pública, estavam bem escuras.
[4] Provavelmente a propagação da sentença
final ocorria defronte a casa de alguém que recusava dar aos integrantes do
cortejo algum alimento, ou uma bebida.
[5] Joaquim Inácio, o correspondente do
“Jornal de Recife”, na mesma nota sobre o cortejo do dia de São Bartolomeu,
descreveu que naquele agosto de 1862 a cólera não apareceria em Natal, que
havia se extinguido na Penha, atual Canguaretama, mas grassava no engenho
“Estrella”, próximo à comunidade de Flores.
Extraído do blog Tok de História do historiógrafo e pesquisador do cangaço Rostand Medeiros
https://tokdehistoria.com.br/2016/07/10/1862-o-estranho-desfile-dos-demonios-negros-da-noite-de-sao-bartolomeu/
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário