Por Matias Arrudão
"O SERTANEJO VÊ NO CANGACEIRO O INSTRUMENTO INCONSCIENTE DE UMA VINGANÇA BRUTA E CEGA..."
INOFENSIVO, de
olhos parados, um machucado sangrento na testa, as tranças negras pendentes.
Capitão Virgolino Ferreira.
Lembram-se dele?
De couro era o seu chapéu fabricado em Caruaru. A aba imensa se revirava em quarto de lua, enfeitada de medalhas. De couro eram a sua jaqueta, as perneiras, os seus sapatos. De couro o mocó da comida, o cantil, a mochila, a bruaca, o embornal de milho e os arreios de seu cavalo. De couro a sua barraca e a sua cama. E de couro, finalmente, a bainha da sua faca, a alça de seu rifle, a capa do seu revólver, a sua cinta e as suas cartucheiras.
Virgolino era um homem do couro. Com um pouco menos seria um homem do ouro. Contudo, a legra c, não conseguiu cortá-la, talvez porque fosse analfabeto. Então, com ela cravada na carne, acabou assim. Os olhos imóveis, as tranças paradas, incapaz de fazer mal a ninguém, exceto provavelmente às crianças que estão para nascer.
Capitão Virgolino reside num vidro de álcool, no Museu Nina Rodrigues, na cidade do Salvador. Isto é, quem mora ali é a sua cabeça. O resto ficou na fazenda dos Angicos, ao lado dos corpos degolados de Maria Bonita, Azulão, Zabelê, Maçarico e outros. Sua presença, porém, irradia-se por esta campanha. E eu mesmo, que sou da Praia Grande, mas criado no Butiá, eu mesmo o encontrei, na sua roupa de couro, com o chapéu levantado, galopando na caatinga e dando tiros a esmo.
Foi o caso que há muito tempo, no vale seco de Santana do Ipanema, no sertão salitroso das Alagoas, Virgolino me apareceu, quando, comprando um chapéu de vaqueiro, pensei alto em que com ele faria sucesso.
Nessa hora o comerciante me atalhou: - olhe, prefiro o cangaço.
Calmamente, firmemente, contou-me que um dia Lampião acampara na sua fazenda e lhe prendera o pai de refém. Mandou buscar vinte contos, senão punha fogo no paiol e queimava o velho. Eu fui, levei dois contos e chorei de verdade, porque não possuía mais. O capitão teve dó. Aceitou e prosseguiu. Não carneou nem uma vaca. Uma semana depois chegaram os homens da polícia e me chamaram de coiteiro. Mataram meu gado e incendiaram o resto.
Foi nessa hora que Virgolino, cujo espírito andava perto se encarnou. Ganhou corpo e fez questão de vir comigo na direção do interior da Bahia.
O automóvel foi comendo a estrada, subindo e descendo as montanhas do sistema de Moxotó. A noite começou a cair e as estradas entraram a piorar. Estrelas profusas no céu quase equatorial. Vultos estranhos, mulas sem cabeça, um padre vestido de branco, andando para trás. Noite fechada e o carro perdido. Perdido nas mil trilhas brancas da caatinga esquálida.
Varamos por um atalho, por outro. Na curva, os faróis bateram numa porta de couro. Alumiada por quatro velas de carnaúba, lá estava a mulher morta, amortalhada, sobre um estrado raso de couro. Vestida de branco, a carpideira puxava a ladainha. Vozes esganiçadas cortavam o silêncio negro – tende piedade dela.
Pergunto-lhe: - capitão, sabe o caminho?
Virgolino Ferreira não se ofende com minha indagação. Ora se... Nem é bom falar. A planura de Mata Grande ele a conhece como a palma da sua mão. Vai entrar na cidadezinha, pacificamente, outra vez. Vai me obter uma rede para o corpo exausto na pensão daquelas velhinhas surdas, de camisola, andando feito sombra no sobradão assombrado.
Lampião já agora me parece um bom sujeito. O mal está em que foi o homem do couro, quando devera ter sido, como tantos outros, um homem do ouro. Simples degraus da civilização, diferença de uma letra do alfabeto. Tão pouco...
Diz que não morreu de tiro, em combate, mas envenenado por arsênico, à traição. Depois é que os macacos lhe fizeram o buraco na cabeça e estouraram o crânio de Azulão. Mutilaram os cadáveres e embolsaram os prêmios do governo.
Passa a mão no pescoço e exclama: - polícia que degola também envenena, também assalta, também cangaceia.
Faz uma pausa, como se puxasse pelas recordações, e ajeita os óculos. Continua.
Prova está em que o povo do sertão gosta de mim. Não viu aquele vendeiro de Santana? Ninguém sabe. Nem eu, que agora estou morto e poderia descobrir a verdade. Só sei que vingo. É alguma coisa que ninguém avalia, nem define, nem compreende. Uma vingança sem rumo, uma força que ninguém segura. Alguma coisa está errada para que haja tanto sofrimento em meio do meu povo. Ainda agora, desfeito em pó, eu represento a dor das vítimas e luto contra o que desconheço. Por isso é que essa gente se lembra.
Imagino que Lampião está certo. Se a reação é violenta surge o bandido, se mística, aparece o fanático. Antonio Silvino é o mesmo que Corisco, Antonio Conselheiro é o mesmo que o padre Cícero.
Virgolino, palidamente humano, prossegue, como se tivesse perdoado. Compre o meu ABC. Leia os versos que me fizeram os homens simples do sertão. Os versos, que eles cantam nas tardes tristes, nas tardes calmas, nas noites sem orvalho, nas noites secas, quando o luar se reflete nos mandacarus e traça formas estranhas no chão. Quando morri, padre Albuquerque, de São Miguel Campos, celebrou missa por minha alma e sessenta pessoas me ofereceram a sagrada comunhão...
Penso um instante. No folclore efetivamente transpira a simpatia da massa – humilde pelos bandoleiros audazes, que enfrentam os poderosos, e pelas suas mulheres guerreiras, que nas costas carregam o fuzil e um perdido amor dentro do peito. Aí estão as cerâmicas, tão ingênuas, que retratam a vida dos homens errantes do cangaço...
“Parece – explica Djacir Menezes – que o sertanejo vê no cangaceiro o instrumento inconsciente de uma vingança bruta e cega, a agir indefinida e estupidamente contra “qualquer coisa” invisível e má. Essa mentalidade está duplamente preparada pela série de fatores telúrico-sociais discriminados: - reclama Conselheiros, padres Cíceros ou Josés Lourenços”.
Reanimado pela gasolina de lata o motor ronca outra vez.
Convido-o.
- Vamos, capitão?
Virgolino faz um gesto negativo.
- Vai, meu filho, eu fico. Volto daqui. Lá adiante expuseram as cabeças dos meus cabras e tiraram aquela fotografia que horrorizou o mundo. Vá sozinho. Visite Paulo Afonso e escreva um artigo sobre o sonho morto de Delmiro. Sobre a fábrica de linhas que ele fundou, que funcionava, dava trabalho a centenas de sertanejos e que os “seus” homens do ouro... compraram, para jogar as máquinas no rio São Francisco.
Quis obter pormenores, mas não mais o vi.
Não houve estampido nenhum. Nem estouro, nem cheiro de enxofre.
Inteiramente alcoolizado, Virgolino simplesmente evaporou.
Por Matias
Arrudão
“ESTADO DE S.
PAULO” – 30.06.1957
Fonte: facebook
Página: Antonio Correia Sobrinho
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